A leitura da obra do
escritor riverense Hipólito Zas Recarey nos mostra um narrador pródigo de
memórias e um historiador conectado com seu tempo. Muito além da
literatura – sua obra nos traz as transformações culturais, sociais, políticas
e econômicas de sua amada Rivera. Hipolito era filho de libaneses, criado em
meio à cultura árabe dos primeiros imigrantes, mas também castelhana e “gaucha”.
Sua obra, portanto, será o produto dessa miscigenação cultural. Ler seus
escritos é retornar ao tempo, a uma época em que Rivera e a fronteira fluíam,
respirando ares do velho mundo.
As histórias reunidas
por Recarey tem em comum o tema da identidade regional, onde o memorialista
leva o leitor às profundezas do ser
fronteiriço. E o faz com maestria, quando nos convida a percorrer as páginas de
seu livro ”Rivera Fronteiriza e Romântica”,
e também em “Cerro del marco, 30
aquarelas”. Ali nos deparamos com uma memória mágica, impregnada pelas calles daquela Rivera antiga, perdida entre personagens vívidos,
flanando entre os cafés literários, as casas comerciais e os patrimônios da
cultura local das primeiras décadas do século 20. Tempos de vigor cultural, econômico e de refinada cena boêmia. Através
de pequenas histórias, o escritor vai tecendo a identidade de sua cultuada
cidade, mas também da vizinha Santana.
A fronteira está
constantemente dentro do poeta, como um órgão vital. Buscando celebrar e
perpetuar esse lugar coletivo da memória, ele indaga o que é a linha? Não é uma tarefa fácil defini-la. Para ele a divisa entre os dois países
não se encontra na geografia, na diplomacia, senão na alma dos seres que
habitam o lugar. A linha divisória possui distintos significados para cada
período de sua existência: infância, juventude e maturidade. Uma zona de
características variáveis, conforme o desenvolvimento da região. A divisa o leva ao inicio de tudo, ao lugar onde todos
desfrutavam o espaço coletivo, como o apaixonante Areial - um canavial de
bambus que se estendia até o Fortin - lugar
mágico e maldito, conforme as lembranças de cada um.
Território de uma
infância repleta de aventuras, de troca de figurinhas, campeonato
de pedradas, pandorgas e circos. A adolescência transforma-se em espaço de
desconfiança, curiosidade e conquista, pois ”a Leste das esbeltas palmeiras, em direção ao Cerro do Marco,
encontram-se os quiosques Ribot, Biquita, o jogo de bocha e os ruivos chopps
Gazapina, circulando generosos entre os jogadores e expectadores”. As cores
da linha noturna definem ao jovem poeta que é chegado a hora de entrar ao mundo
dos homens que o invade, levando-o a filmes mudos do Cinema Internacional, aos
cafés e rodas de amigos, as comidas das cantinas com menus baianos e aos
mistérios do mundo dos Cabarés.
A cidade que Recarey
nos mostra aparece então, melancólica e distante. É nesse momento que o
memorialista busca o reencontro com sua Rivera, em pleno processo de desfiguração
daquele tempo dos gloriosos dias de sua juventude, com os cafés, os amigos, o
basquete e os clubes. Na maturidade, acerca-se
da cidade imbuído de escrever suas memórias , e deixar seu testamento às novas
gerações. Empenhado nesta difícil tarefa, Recarey inicialmente transporta seu
leitor para a mítica fronteira, onde Rivera e Santana ainda são povoados recém oficializados
a cidade.
O autor,
deliberadamente, como nas estórias de fábulas infantis, encanta, ao iniciar
seus relatos com a frase: “Hace ya muchos años” quando se faz necessário,
direcionando o leitor ao fato histórico de grande importância, como os
escolhidos para apresentar o Cerro do
Marco, os personagens riverenses, a Plaza
Internacional ou o muy nuestro y
querido la Bica.
A Bica d´agua, onde os
riverenses costumavam aprovisionar-se de água para suas casas é tratada como
uma personagem feminina, que possui alma, o bem maior daquele lugar, pois
é “aquella pequeña maravilla de la naturaleza,
misteriosa e generosa” que abastece e revigora a população da jovem cidade. A maioria de suas obras
foram publicadas nos anos 80, quando o autor atingia a maturidade, levando-nos
a refletir o motivo que o levou a escrever suas reminiscências nessa década. Sua
Rivera estaria perdendo as feições daquela antiga cidade? Seria a chegada das
construtoras e seus monumentos de vários andares trazendo o convite da
“modernidade”? Estaria a sua Santana agonizando economicamente, perdendo seu
patrimônio histórico, em uma fase de baixa estima?
O poeta recorria as
ruas de Santana e Rivera para buscar uma resposta! Havia deixado a fronteira em
meados dos anos 40, apogeu da cena cultural das cidades para ir estudar na
capital, Montevideo, e quando retornou algumas décadas mais tarde, avistaria o
caos urbano!
Seus escritos tão
melancólicos e urgentes arrastam o leitor mais sensível a submergir naquela
outra cidade, provocando sensações anacrônicas. Ouvia o Cerro do Marco, seu
altar fronteiriço, gemer de dor ao ser amputado e desfigurado; o apito da usina
de luz,
O farfalhar dos
cristais e as conversas ao longe, nas mesas de jogo do Casino
Internacional. Ainda podemos espiar o Pinga
anunciando suas balas de Mocotó no antigo Areial, aceitando o convite do autor
para uma viagem ao tempo. Recarey retorna a
infância, e ouvimos a trombeta do Pinga ressoar pelo Areial. Pronto, não
faltava mais nada na paisagem fronteiriça! Embora para a maioria das pessoas
Pinga fosse apenas um vendedor ambulante, para o cronista a era “más, mucho mas”. Pinga refletia a
alegria, a alma que vivia comodamente em
um corpo que recorria os quatro rincões da fronteira. Talvez fosse essa
essência que o aproximava do carismático vendedor, pois para o cronista os
“andarilhos” apresentavam alto valor cultural dentro da comunidade, eram
sábios, ídolos que conheciam a fundo a alma dos habitantes e dos lugares. De
suas lembranças emergem figuras populares inesquecíveis daquela Rivera, nos
divertimos ouvindo Maria dos cachorros maldizer os rapazes que a perseguem pelas ruas com suas brincadeiras inocentes.
Recarey nasceu em uma
cidade de fluência cultural e econômica distinta, que atualmente sequer podemos
encontrar seus rastros. Viveu intensamente os anos dos ateneos e cafés
literários, Cassinos-Cabarés, clubes desportivos e também da apaixonante política
uruguaia e fronteiriça. Foi fundador do lendário Clube Esportivo Atlas, quando
os rapazes de sua geração estavam persuadidos em ser “homens-ação”, acompanhando
o chamado dos anos pós Primeira Guerra.
Convivendo com a
geração anterior a sua, participou da formação do clube literário Ateneo de
Rivera, com os mestres fundadores, Maria Luiza Larena, Augustin Bissio, Olintho
Maria Simões, Alfredo Lepro e Tejera. No Clube Uruguay, Olintho Simões,
solidário e apaixonado pela literatura, costumava receber os rascunhos de
jovens poetas. Entre os anos 30 e 60, havia reuniões literárias nos cafés da
Sarandí, lembrados pelo jornalista Ariel Pereyra como verdadeiros templos literários.
Pacientes, ouviam e sugeriam as poesias e contos dos jovens aprendizes, como os irmãos Zas. Dependendo do fervor das conversas e debates, que podiam girar em torno dos mais diversos assuntos - da poesia a ciência, da política a cultura universal- os cafés proporcionavam momentos de deleite para uma plateia composta de comerciários e transeuntes, que se aglomeravam em torno das mesas de conversas, que reuniam os poetas, os políticos ou os médicos. Homens das mais variadas vertentes, colorados, blancos, socialistas e comunistas dividiam a mesma mesa.
Recarey emerge no tempo
e, como um fantasma andando pelas calles
desertas daquela Rivera, vibrante e tomada de lugares, de círculos literários,
da cultura e do lazer, aponta-nos seus valiosos altares. Podemos escutá-lo
dizer: “Yo quiero mucho a Rivera!”
Liane Chipollino Aseff
texto apresentado no Seminário Una Mirada al Medio Oriente, Cultura, Religiosidad y Politica, Unipampa- Campus Santana do Livramento - RS. 13 de Outubro de 2014.
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