Em junho de 1973, Peron
retorna à Argentina, após dezoito anos de exílio na Espanha. Retorna e
após uma eleição em que obteve mais de 60% dos votos, assume a
Presidência, com o assentimento das Forças Armadas comandadas pelo
General Lanusse e a posse e renúncia negociadas do Presidente Campora,
justicialista que ocupara a Presidência por menos de dois meses.
Apesar de exilado, Peron nunca perdeu o
controle da Segunda Sessão do Exército Argentino, encarregada de
espionagem. O Presidente João Goulart, exilado no Uruguai, passou a
residir também na Argentina, onde adquiriu uma fazenda, em Mercedes,
próxima à Uruguaiana, desde que o General Lanusse assumiu o poder. Jango
era grande amigo de Peron, que sempre lhe transmitia informações sobre a
situação e o desempenho da Ditadura no Brasil. Com Peron na Presidência
da República, Jango teria condições de fazer da Argentina uma grande
plataforma, a partir da qual atuaria politicamente no Brasil,
perturbando assim o livre curso da ditadura, que governava com todos os
instrumentos de exceção cristalizados no Ato Institucional Número 5.
Seria melhor para a ditadura brasileira ter o Presidente Goulart morando
no Brasil.
Logo que ficou constatada a tendência
para uma esmagadora vitória de Peron nas eleições de 21 de setembro, o
Presidente João Goulart viaja para a Europa, como sempre pela rota do
Pacífico, direto a Paris, hospedando-se como de hábito no Hotel
Claridge, nos Champs Èlysees. Dona Maria Tereza desembarcou de outro voo
pela rota do Atlântico, acompanhada dos filhos João Vicente e Denise.
Dois dias após sua chegada, chega
também a Paris o General Chefe do Estado Maior do Exército brasileiro,
acompanhado do jornalista Carlos Castelo Branco (Castelinho), que fazia
parte do círculo de amizades do General Geisel, já escolhido para
substituir o General Médici na Presidência, em março de 1984. Castelinho
tinha em comum com o Presidente Jango saber de cór o “Almanaque do
Exército”. Vinham em missão do General Ernesto Geisel, para negociar com
o Presidente Goulart seu retorno ao Brasil.
Foram três dias de conversações, das
quais participavam apenas os dois emissários e o Presidente Jango.
Durante essas conversações foi transmitido a Jango o interesse do
General Geisel em que ele retornasse ao Brasil após sua posse. Algumas
condições propostas e não aceitas por Jango eram: seu retorno para São
Borja ou para o Rio de Janeiro, de onde só poderia sair com autorização
da autoridade competente; também era proposta a exclusão de alguns
nomes, entre todos aqueles que deveríamos voltar, após o retorno de
Jango. Praticamente nenhuma condição foi aceita, porque o Presidente
achava que ele tinha que ser o último exilado a retornar ao Brasil. De
todas as condicionantes, a que mais desagradou foi a que excluía
Prestes, Brizola, Arraes, Chico Julião e o Padre Lage, indicando que
estes não fariam parte daquele acordo verbal.
Desde 1971, por indicação de Darcy
Ribeiro, eu representava o Presidente João Goulart na Europa. À época
recebi dele missão especial no sentido de coordenar uma assessoria ao
ex-presidente da Argentina, Juan Peron, municiando-o com dados sobre o
avanço científico e tecnológico e os complexos e sofisticados recursos
humanos dos países industrializados. A assessoria na área de economia
ficara a cargo de Celso Furtado.
Desde aquela época, portanto, o
Presidente Jango se empenhava em que Peron pudesse voltar ao poder na
Argentina. Todavia, embora Lopes Rega, secretário particular de Peron,
soubesse que estávamos todos trabalhando pela volta do Presidente para a
Argentina, ele nos fazia restrições, dificultando nosso acesso a Peron,
pois estávamos ligados à esquerda peronista que nada tinha a ver com
ele que representava à direita, reacionária e corrupta, como bem ficou
comprovado mais tarde no escândalo da P2, Loja Maçônica que aliciou mais
de mil personalidades italianas, ibéricas e latino-americanas,
culminando com o escândalo do Banco Ambrosiano e o sequestro do
Ex-Primeiro Ministro Aldo Moro. Internamente, na Argentina, as ligações
de Jango se faziam através do Oficial do Exército Pablo Vicente,
vinculado às esquerdas peronistas. Na Europa, suas ligações se faziam
por intermédio de Jorge Antônio, que cuidava de interesses imobiliários
de Peron, e cujo escritório situava-se no Paseo de la Castellana, no
centro de Madrid.
As conversas com os emissários do futuro
Presidente do Brasil, especialmente com Castelinho, serviram para que o
Presidente Jango fizesse uma avaliação de como seria o comportamento do
General Geisel em relação aos exilados, servindo de termômetro para a
segurança daqueles que pretendiam voltar. Uma coisa ficou evidente:
retornar ao Brasil, enquanto Medici estivesse no poder, era uma
temeridade.
O Presidente precisava ir a Lyon para
uma revisão médica na Clínica Cardiológica do Doutor Froment. Iríamos de
carro, e de lá, até Genebra, onde tinha encontro marcado com banqueiros
judeus, a fim de alavancar recursos, a pedido de Peron, destinados a
recuperar a indústria frigorífica argentina. Tinha também encontro
marcado com Miguel Arraes, Paulo Freire e outros exilados que
trabalhavam na Suíça. Arraes estava impedido de entrar na França, por
uma denúncia feita ao Quai d’Orsay pela Embaixada do Brasil de que ele
usava um passaporte argelino com nome árabe.
João Vicente viajou conosco, enquanto
sua mãe, acompanhada de Denise, foi a Londres à procura de colégio para
os filhos, que não mais voltariam ao Uruguai, onde a situação era
extremamente tensa e insegura, depois do Golpe de Estado dado por Juan
Bordaberry, com apoio dos militares, no dia 27 de junho.
Sobre essa viagem a Genebra, falarei em
outra oportunidade, pois lá chegamos na véspera do Yom-Kippur, dia
sagrado dos judeus, escolhido pela Síria e Egito para um ataque surpresa
aos israelenses, que, naquele dia, se encontravam em orações nas
sinagogas.
No retorno a Paris, passamos por Lyon, a
fim de recuperarmos os medicamentos que o Dr. Froment iria fazer
manipular, com doses específicas para o tratamento do Presidente João
Goulart.
Em Paris, Jango me avisou que tínhamos
que ir a Madrid, onde ele deveria encontrar um diretor de banco inglês,
que gerenciava para ele os recursos advindos de exportações de seu
frigorífico no Uruguai e ligado ao banqueiro com quem tratou dos
empréstimos em Genebra dos empréstimos aos frigoríficos argentinos.
O Presidente então me disse que não
iríamos a Madrid no meu carro, mas sim num automóvel Toyota que ia
comprar para dar de presente ao genro do Presidente Stroessner.
Tratava-se de um amigo muito bom, que supervisionava uma fazenda que ele
tinha no Paraguai.
Deixamos João Vicente sob os cuidados de
um jovem engenheiro que estagiava no escritório de Oscar Niemeyer, em
Paris, Paulinho Baiano, e de outro jovem exilado, amigo do Presidente,
Pedro Toulois. Lembro-me, era um domingo e saímos muito cedo de Paris.
Revezando-nos ao volante, chegamos, cerca das dezenove horas, a um
paradouro a quarenta quilômetros de Madrid, onde resolvemos pousar
depois de percorrer mais de mil e duzentos quilômetros de estrada com
mão dupla. No dia seguinte, saímos às onze horas mais ou menos,
hospedando-nos pouco longe dali em um hotel pequeno e agradável,
localizado em Puerta de Hierro, onde o Presidente João Goulart já se
havia hospedado, pois ficava próximo à residência do Presidente Peron.
Por volta das dezesseis horas, o
Presidente Jango ao volante, saímos para cumprir uma agenda que ele
havia definido por telefone: passaríamos no banco às dezoito horas; de
lá sairíamos para visitar sua amiga Eva, que se encontrava hospedada no
apartamento de Paula, sua conterrânea argentina, não muito longe, a
leste do Paseo de Recoletos. Passamos em uma florista, onde compramos
dois buquês de rosas vermelhas, pois daríamos um também a Paula, que
aniversariava naquele dia. Chegamos à rua indicada por Paula ao
anoitecer. Era uma rua larga e curta, quase uma praça, aonde se chegava
pela parte de cima, voltando-se à direita, dai descendo até metade da
rua, onde ficava o prédio, morada de Paula. Ao dobrarmos a esquina de
chegada, o Presidente dirigia o automóvel, e eu vi, na parte de cima da
rua, um caminhão parado e descarregado. Descemos e paramos à direita, na
metade da rua, em frente ao edifício, onde se localizava o apartamento
que procurávamos.
O Presidente Jango desliga o motor do carro e abre a
porta e, quase saindo, eu lhe chamo a atenção para as flores que estavam
no banco traseiro. Ele se volta para o interior do carro à procura dos
buquês, a porta do carro aberta, quando passa o caminhão que estava
estacionado na parte de cima e, acelerando, praticamente arrancou a
porta do carro, saindo em disparada, rua abaixo. As flores salvaram o
Presidente Jango de um “acidente” fatal. Num átimo, não sabíamos o que
havia acontecido. Saímos do carro, no qual a porta quase arrancada das
dobradiças vergava-se sobre o capô. Assustados, ficamos sem entender o
que se passou, naquela rua deserta, em que só algumas pessoas dos
apartamentos da frente do prédio vieram às janelas, procurando ver o
acontecido. Naquela época Madrid tinha poucos carros. A Espanha e
Portugal eram um apêndice subdesenvolvido da Europa. A rua estava
praticamente vazia.
Recuperados do susto, pegamos as flores e
subimos ao apartamento de Paula que ficava nos fundos do prédio. As
duas nem viram nem ouviram o ocorrido conosco na chegada. Forçando
naturalidade, Jango entregou o buquê a Eva, e eu, a Paula, com
apresentações, beijos e cumprimentos. Jango pediu para usar o telefone e
ligou para o escritório de Jorge Antônio, e, uma hora depois, o Toyota
era recolhido. Providenciou-se no dia seguinte seu embarque por via
férrea para Paris, onde seria recuperado e despachado para Buenos Aires
por Pedro Toulois.
Passamos mais três dias em Madrid e voltamos a Paris no final semana, por via aérea.
No seu retorno à Argentina, em meados de
novembro, o Presidente João Goulart deveria fazer uma pequena parada em
Caracas para um encontro agendado com o então Deputado Tancredo Neves.
por Ubirajara Brito, do Instituto João Goulart.