quinta-feira, 15 de maio de 2014

As negociações secretas com Geisel para a volta de Jango ao Brasil

Em junho de 1973, Peron retorna à Argentina, após dezoito anos de exílio na Espanha. Retorna e após uma eleição em que obteve mais de 60% dos votos, assume a Presidência, com o assentimento das Forças Armadas comandadas pelo General Lanusse e a posse e renúncia negociadas do Presidente Campora, justicialista que ocupara a Presidência por menos de dois meses.
 
Apesar de exilado, Peron nunca perdeu o controle da Segunda Sessão do Exército Argentino, encarregada de espionagem. O Presidente João Goulart, exilado no Uruguai, passou a residir também na Argentina, onde adquiriu uma fazenda, em Mercedes, próxima à Uruguaiana, desde que o General Lanusse assumiu o poder. Jango era grande amigo de Peron, que sempre lhe transmitia informações sobre a situação e o desempenho da Ditadura no Brasil. Com Peron na Presidência da República, Jango teria condições de fazer da Argentina uma grande plataforma, a partir da qual atuaria politicamente no Brasil, perturbando assim o livre curso da ditadura, que governava com todos os instrumentos de exceção cristalizados no Ato Institucional Número 5. Seria melhor para a ditadura brasileira ter o Presidente Goulart morando no Brasil.
 
Logo que ficou constatada a tendência para uma esmagadora vitória de Peron nas eleições de 21 de setembro, o Presidente João Goulart viaja para a Europa, como sempre pela rota do Pacífico, direto a Paris, hospedando-se como de hábito no Hotel Claridge, nos Champs Èlysees. Dona Maria Tereza desembarcou de outro voo pela rota do Atlântico, acompanhada dos filhos João Vicente e Denise.
 Dois dias após sua chegada, chega também a Paris o General Chefe do Estado Maior do Exército brasileiro, acompanhado do jornalista Carlos Castelo Branco (Castelinho), que fazia parte do círculo de amizades do General Geisel, já escolhido para substituir o General Médici na Presidência, em março de 1984. Castelinho tinha em comum com o Presidente Jango saber de cór o “Almanaque do Exército”. Vinham em missão do General Ernesto Geisel, para negociar com o Presidente Goulart seu retorno ao Brasil.
 
Foram três dias de conversações, das quais participavam apenas os dois emissários e o Presidente Jango. Durante essas conversações foi transmitido a Jango o interesse do General Geisel em que ele retornasse ao Brasil após sua posse. Algumas condições propostas e não aceitas por Jango eram: seu retorno para São Borja ou para o Rio de Janeiro, de onde só poderia sair com autorização da autoridade competente; também era proposta a exclusão de alguns nomes, entre todos aqueles que deveríamos voltar, após o retorno de Jango. Praticamente nenhuma condição foi aceita, porque o Presidente achava que ele tinha que ser o último exilado a retornar ao Brasil. De todas as condicionantes, a que mais desagradou foi a que excluía Prestes, Brizola, Arraes, Chico Julião e o Padre Lage, indicando que estes não fariam parte daquele acordo verbal.
Desde 1971, por indicação de Darcy Ribeiro, eu representava o Presidente João Goulart na Europa. À época recebi dele missão especial no sentido de coordenar uma assessoria ao ex-presidente da Argentina, Juan Peron, municiando-o com dados sobre o avanço científico e tecnológico e os complexos e sofisticados recursos humanos dos países industrializados. A assessoria na área de economia ficara a cargo de Celso Furtado.
 
Desde aquela época, portanto, o Presidente Jango se empenhava em que Peron pudesse voltar ao poder na Argentina. Todavia, embora Lopes Rega, secretário particular de Peron, soubesse que estávamos todos trabalhando pela volta do Presidente para a Argentina, ele nos fazia restrições, dificultando nosso acesso a Peron, pois estávamos ligados à esquerda peronista que nada tinha a ver com ele que representava à direita, reacionária e corrupta, como bem ficou comprovado mais tarde no escândalo da P2, Loja Maçônica que aliciou mais de mil personalidades italianas, ibéricas e latino-americanas, culminando com o escândalo do Banco Ambrosiano e o sequestro do Ex-Primeiro Ministro Aldo Moro. Internamente, na Argentina, as ligações de Jango se faziam através do Oficial do Exército Pablo Vicente, vinculado às esquerdas peronistas. Na Europa, suas ligações se faziam por intermédio de Jorge Antônio, que cuidava de interesses imobiliários de Peron, e cujo escritório situava-se no Paseo de la Castellana, no centro de Madrid.  
As conversas com os emissários do futuro Presidente do Brasil, especialmente com Castelinho, serviram para que o Presidente Jango fizesse uma avaliação de como seria o comportamento do General Geisel em relação aos exilados, servindo de termômetro para a segurança daqueles que pretendiam voltar. Uma coisa ficou evidente: retornar ao Brasil, enquanto Medici estivesse no poder, era uma temeridade.
 
O Presidente precisava ir a Lyon para uma revisão médica na Clínica Cardiológica do Doutor Froment. Iríamos de carro, e de lá, até Genebra, onde tinha encontro marcado com banqueiros judeus, a fim de alavancar recursos, a pedido de Peron, destinados a recuperar a indústria frigorífica argentina. Tinha também encontro marcado com Miguel Arraes, Paulo Freire e outros exilados que trabalhavam na Suíça. Arraes estava impedido de entrar na França, por uma denúncia feita ao Quai d’Orsay pela Embaixada do Brasil de que ele usava um passaporte argelino com nome árabe.
 
João Vicente viajou conosco, enquanto sua mãe, acompanhada de Denise, foi a Londres à procura de colégio para os filhos, que não mais voltariam ao Uruguai, onde a situação era extremamente tensa e insegura, depois do Golpe de Estado dado por Juan Bordaberry, com apoio dos militares, no dia 27 de junho.
 
Sobre essa viagem a Genebra, falarei em outra oportunidade, pois lá chegamos na véspera do Yom-Kippur, dia sagrado dos judeus, escolhido pela Síria e Egito para um ataque surpresa aos israelenses, que, naquele dia, se encontravam em orações nas sinagogas.
No retorno a Paris, passamos por Lyon, a fim de recuperarmos os medicamentos que o Dr. Froment iria fazer manipular, com doses específicas para o tratamento do Presidente João Goulart.
Em Paris, Jango me avisou que tínhamos que ir a Madrid, onde ele deveria encontrar um diretor de banco inglês, que gerenciava para ele os recursos advindos de exportações de seu frigorífico no Uruguai e ligado ao banqueiro com quem tratou dos empréstimos em Genebra dos empréstimos aos frigoríficos argentinos.
O Presidente então me disse que não iríamos a Madrid no meu carro, mas sim num automóvel Toyota que ia comprar para dar de presente ao genro do Presidente Stroessner. Tratava-se de um amigo muito bom, que supervisionava uma fazenda que ele tinha no Paraguai.
 
Deixamos João Vicente sob os cuidados de um jovem engenheiro que estagiava no escritório de Oscar Niemeyer, em Paris, Paulinho Baiano, e de outro jovem exilado, amigo do Presidente, Pedro Toulois. Lembro-me, era um domingo e saímos muito cedo de Paris. Revezando-nos ao volante, chegamos, cerca das dezenove horas, a um paradouro a quarenta quilômetros de Madrid, onde resolvemos pousar depois de percorrer mais de mil e duzentos quilômetros de estrada com mão dupla. No dia seguinte, saímos às onze horas mais ou menos, hospedando-nos pouco longe dali em um hotel pequeno e agradável, localizado em Puerta de Hierro, onde o Presidente João Goulart já se havia hospedado, pois ficava próximo à residência do Presidente Peron.
 
    Por volta das dezesseis horas, o Presidente Jango ao volante, saímos para cumprir uma agenda que ele havia definido por telefone: passaríamos no banco às dezoito horas; de lá sairíamos para visitar sua amiga Eva, que se encontrava hospedada no apartamento de Paula, sua conterrânea argentina, não muito longe, a leste do Paseo de Recoletos. Passamos em uma florista, onde compramos dois buquês de rosas vermelhas, pois daríamos um também a Paula, que aniversariava naquele dia. Chegamos à rua indicada por Paula ao anoitecer. Era uma rua larga e curta, quase uma praça, aonde se chegava pela parte de cima, voltando-se à direita, dai descendo até metade da rua, onde ficava o prédio, morada de Paula. Ao dobrarmos a esquina de chegada, o Presidente dirigia o automóvel, e eu vi, na parte de cima da rua, um caminhão parado e descarregado. Descemos e paramos à direita, na metade da rua, em frente ao edifício, onde se localizava o apartamento que procurávamos. 
 
O Presidente Jango desliga o motor do carro e abre a porta e, quase saindo, eu lhe chamo a atenção para as flores que estavam no banco traseiro. Ele se volta para o interior do carro à procura dos buquês, a porta do carro aberta, quando passa o caminhão que estava estacionado na parte de cima e, acelerando, praticamente arrancou a porta do carro, saindo em disparada, rua abaixo. As flores salvaram o Presidente Jango de um “acidente” fatal. Num átimo, não sabíamos o que havia acontecido. Saímos do carro, no qual a porta quase arrancada das dobradiças vergava-se sobre o capô. Assustados, ficamos sem entender o que se passou, naquela rua deserta, em que só algumas pessoas dos apartamentos da frente do prédio vieram às janelas, procurando ver o acontecido. Naquela época Madrid tinha poucos carros. A Espanha e Portugal eram um apêndice subdesenvolvido da Europa. A rua estava praticamente vazia.
 
Recuperados do susto, pegamos as flores e subimos ao apartamento de Paula que ficava nos fundos do prédio. As duas nem viram nem ouviram o ocorrido conosco na chegada. Forçando naturalidade, Jango entregou o buquê a Eva, e eu, a Paula, com apresentações, beijos e cumprimentos. Jango pediu para usar o telefone e ligou para o escritório de Jorge Antônio, e, uma hora depois, o Toyota era recolhido. Providenciou-se no dia seguinte seu embarque por via férrea para Paris, onde seria recuperado e despachado para Buenos Aires por Pedro Toulois.
 
Passamos mais três dias em Madrid e voltamos a Paris no final semana, por via aérea.
No seu retorno à Argentina, em meados de novembro, o Presidente João Goulart deveria fazer uma pequena parada em Caracas para um encontro agendado com o então Deputado Tancredo Neves.
 
por Ubirajara Brito, do Instituto João Goulart.