sábado, 10 de outubro de 2020

Santos Soares e a organização operária na fronteira

por Marlon Aseff


Santos Soares foi líder dos trabalhadores fronteiriços, organizador de uma Liga Operária que constituiria um impulso importante na constituição futura do Partido Comunista do Brasil. Ele nos surge, em relatos orais e nos raros textos que anotam sua trajetória, como um homem cercado pelo mistério do líder comunista, idealizado pela imprensa partidária como o modelo exemplar do transformador social, a ser construído e seguido com a exaltação comum ao mito recorrente do ideário comunista. Para encontrarmos os primeiros rastros de Santos Soares, voltemos ao começo do século, quando a fronteira gaúcha de Santana do Livramento e a cidade uruguaia de Rivera vivia  a euforia da inauguração da Cervejaria Gazzapina (1908) e o pleno funcionamento de estabelecimentos comerciais como a Padaria Aragonez, que junto ao setor de construção civil incorporavam os núcleos de trabalhadores filiados a ideias anarquistas que muitos operários argentinos, uruguaios e espanhóis alimentavam. Os ecos dessas novas demandas políticas seriam estampados no jornal anarquista A Evolução, que viria a ser impresso em português e espanhol, em Santana do Livramento, a partir de 1911. Nesse ambiente gesta-se a figura de líderes operários que viriam a ser fundamentais na organização dos trabalhadores na região, primeiramente filiados aos ideais anarquistas, e mais tarde associados ao emergente partido comunista. Surgem nesse início de século o anarquista espanhol Antônio Apoitia, e pouco depois Santos Soares, mentor da organização comunista local. A atuação de Soares, que viria a criar em 1918 a Liga Operária, uma das primeiras ligas comunistas do país, consolidou-se durante a primeira greve que eclodiu nos frigoríficos Armour e Wilson, a 13 de março de 1919. Na greve de 1919, a pauta de reivindicações exigia redução da jornada de trabalho de dez para oito horas, aumento de salários para os trabalhadores braçais e um acréscimo de 25% sobre o salário das mulheres. Também pedia a instituição de horas extras para o trabalho nos domingos ou fora de horário. O evidente desalinho entre as leis trabalhistas vigentes no Uruguai e no Brasil ganhava nova conotação no ambiente de trabalho do frigorífico. Ali, trabalhadores uruguaios, brasileiros e de outras nacionalidades submetiam-se a um ordenamento laboral arcaico.[1]

Do outro lado da linha divisória, os trabalhadores uruguaios começavam a vivenciar as mudanças preconizadas pelo presidente José Batle y Ordóñez, que criara a partir de seu primeiro mandato, em 1903, uma série de normas legais de proteção aos trabalhadores, posteriormente reforçadas pela Constituição de 1917, que incluia jornadas de trabalho de oito horas, indenização por acidentes de trabalho, licença maternidade, proteção aos idosos e inválidos e a intermediação estatal em casos de conflitos laborais. Convém lembrar aqui, conforme aponta Gustavo López, que as normas laborais uruguais, extremamente avançadas para a época, não foram  um “presente” do governo de Batlle, mas fruto de anos de lutas cruentas do movimento sindical uruguaio.[2]  Durante a greve de 1919, os operários das companhias Armour e Wilson, conseguiram que as empresas concedessem um aumento de 10% nos salários e a redução de 10 para 9 horas de trabalho diário. Mesmo sob a repressão da força militar, a greve se fazia vitoriosa. Santos Soares cria nesse momento uma associação para promover a ajuda mútua entre os trabalhadores, o Centro de Assistência e Ofícios Vários, que iria originar em 1920 o Sindicato dos Ofícios Vários.

Em 1921, conforme aponta Marçal, Santos Soares editava um semanário de pequeno formato, “O Socialista”, um “desdobramento da Liga Operária, que não tardou a ser assaltado pela polícia” e teve vida efêmera.[3] Um texto assinado pelo jornalista e militante comunista Isaac Akcelrud, em 1952, permanece como um raro relato de cunho biográfico acerca da atuação do líder santanense. Marcado pela exaltação revolucionária do período stalinista, Soares é elevado a mito do movimento comunista naqueles anos de organização dos trabalhadores na fronteira:

A Primeira Greve Contra uma Empresa Imperialista -  Na folha de serviço de Santos Soares à causa do proletariado inscreve-se em relevo a sua atuação como organizador e dirigente da primeira greve contra uma empresa imperialista no Rio Grande do Sul. Foi a greve dos trabalhadores do Frigorífico Armour. Organizada a Liga, Santos Soares não permitiu que os comunistas se fechassem num estreito círculo sectário. Esta é a segunda grande lição de sua vida. Ele comparava os efetivos do pequeno núcleo de vanguarda com as massas dispostas à luta e reclamando a direção dos comunistas. O lugar do comunista é no Sindicato. — De onde é que nós saímos? Não foi da luta sindical? É no Sindicato, lutando pelos interesses dos trabalhadores, que está o ABC. Assim, com palavras simples, utilizando a própria experiência dos trabalhadores, Santos Soares organizou uma verdadeira campanha de sindicalização. Surgiram organizações sindicais de diversas profissões. Nas assembléias, um jovem tribuno operário inflamava as massas. Aos 28 anos, Santos Soares era um líder querido dos trabalhadores, reconhecido como seu chefe.[4]

O relato de Ackcelrud elenca as lutas do líder operário, legitimando a aura da honorabilidade comunista, conforme o mito alimentado pelos anos do stalinismo, quando os herdeiros da revolução soviética eram elevados a uma condição de “super-homens”, construídos por uma moral inabalável e intocáveis em sua conduta. Perseverando Santana, pecuarista e militante do partido, reforça a imagem de Soares como o melhor condutor da luta operária na fronteira em todos os tempos. Desde sua modesta atuação como funcionário da Correaria Cruz, tradicional loja da cidade, Perseverando recorda do líder “respeitado por advogados e pessoas da burguesia local”, graças a um posicionamento firme e idealista, que professsava uma fé inabalável na revolução soviética e seus desdobramentos.[5] Ackcelrud também enfatiza o aspecto da moral inabalável de Soares:

Ele não perdia oportunidade e não desprezava nenhum setor. Operários da construção civil, padeiros, pequenos contingentes de trabalhadores de diversas profissões ele unia e organizava em seus respectivos sindicatos e no sindicato de ofícios vários. Participou de diversas diretorias e invariavelmente os trabalhadores exigiam que Santos Soares ficasse responsável pelos fundos e pelo patrimônio das suas organizações. Era a homenagem pública à honestidade dos comunistas representados por Santos Soares.[6]

Porém não tardaria para que o aglutinador da força operária na fronteira encontrasse “a empresa fundamental”, nas palavras do biógrafo comunista.

(...) o jovem dirigente à medida que ia se temperando na luta, aprendendo e acumulando experiência, compreendeu que era preciso dar atenção especial à empresa fundamental. Santos Soares lançou-se à tarefa de organizar e levar à luta os trabalhadores do Frigorífico Armour. Ali era a cidadela dos patrões estrangeiros e dos fazendeiros. Mas ali também era que se concentravam os trabalhadores. No frigorífico, Santos Soares se defrontou com um inimigo de larga experiência na repressão ao movimento operário, experiência que se aliava aos métodos mais brutais dos senhores feudais das fazendas de gado e contrabandistas da fronteira. Com paciência e tenacidade preparava a luta e a vitória. Cada escaramuça com o inimigo lhe dava a noção das forças dos trabalhadores, do seu amadurecimento para o combate, revelava os homens que deviam ser chamados para o Partido, mostrava erros que era preciso corrigir.

 

Adoentado, Santos Soares já não mais comandava a linha de frente do partido quando os gestos extremos da repressão contra os comunistas começam a intensificar-se. Conforme veremos no capítulo seguinte, o chamado massacre dos trabalhadores e militantes comunistas em frente ao Parque Internacional, no dia 24 de setembro de 1950, iria abalar a militância e cobrir de suspeitas a direção do frigorífico como mandatária do ato de repressão, que resultou em quatro mortes.  Isaac Ackselrud traz à luz o nome dos militantes mortos pela repressão, ao enfatizar a ligação do operário Aladim Rosales com Santos Soares.

 

Aladim Rosales foi assassinado em 1950 por ordem dos anglo-americanos. Pereceram com ele os camaradas Kulman, Abdias e Aristides. Esse crime monstruoso foi executado pela policia dos traidores da pátria Eurico Dutra e Walter Jobim. Santos Soares procurava capitalizar todas as lutas para o Partido. Sim, dizia, é importante e é necessário conseguir melhorias para a classe operária. Mas não estava se vendo que os fazendeiros e os gringos do frigorífico continuavam donos de tudo, permanecem no governo, com o poder na mão, mesmo quando os operários conseguem uma reivindicação? A importância da luta pelas reivindicações não está só nas melhoras que pode trazer, mas principalmente porque une os trabalhadores, abre seus olhos, mostra que são fortes e que devem empregar essa força contra os patrões sempre prontos a anular as melhorias obtidas na primeira oportunidade. Portanto, em cada luta, para que seja uma luta de verdade, é preciso ter uma perspectiva revolucionária. Somente o Partido garante que todas as lutas reforcem a causa da revolução e impede que forças da classe operária se desmanchem em mil e um pequenos combates que ficam nas pequenas melhorias.[7]

 

Filho de Favorina e Domingos Soares, Santos viveu os primeiros anos no bairro São Paulo, nas cercanias da charqueada Livramento, de Pedro Irigoyen. Casado, transferiu-se para as proximidades do batalhão da Brigada Militar, em um local ainda com características rurais, constituído por pequenas chácaras. Sempre trabalhando na construção, mudou-se com a família para os arredores do parque municipal da Hidráulica e posteriormente, para Rivera, local escolhido por aqueles que deveriam zelar por uma proteção natural às perseguições em solo brasileiro e que faziam desse pêndulo entre os dois países, se não um salvo conduto, ao menos uma forma de ganhar tempo quando fosse necessário. Gecy Rodrigues Soares, filha mais jovem de uma família de três mulheres e um homem, lembra do pai como zeloso e trabalhador. Em meados dos anos 30, ela relembra de uma prisão que o pai sofrera, quando foi levado para Porto Alegre.

O ano eu não lembro, mas eu era bem guria. À noite, quando ele estava lendo, na beira da mesa. E bateram na porta e era a polícia, e reviraram toda a casa, e aí levaram ele preso. Mas não encontraram nada, papel nenhum. Ele sempre tava prevenido, né? E esteve uns três dias preso ali em Livramento, e mandaram para Porto Alegre. E lá, em seguida se avisou um tio meu, que era capitão da Brigada, e ele foi e tirou ele da cadeia. Ele teve uns três meses, que não podia vir, depois veio e seguiu trabalhando. Mas lá quando estava solto já trabalhava lá mesmo em Porto Alegre. Eu lembro, eu tinha uns oito anos. (...) Era, pelo sindicato e pelo partido. E daí a uns meses começaram a perseguir ele de novo, aí ele passou para o Uruguai. (...) Só sei que o sargento que foi prender ele, a mãe falou muita coisa para ele, porque meu pai tinha ajudado muito ele, esse sargento era muito pobre e o meu pai com o que tinha ajudava muito ele, dava comida para essas crianças dele, e a minha mãe falava e falava, mas ele era mandado também né?[8]

Nos dois últimos anos de vida, Santos Soares, mesmo enfermo, mantinha a voz ativa entre trabalhadores e expoentes do partido, como Perseverando e Aquiles Santana, Francisco Cabeda e Hugo Nequesauert. Em janeiro de 1951, a morte do líder que, conforme Perseverando, “sabia lidar com todo mundo, tinha uma autoridade moral muito grande e não gostava que o operário fizesse qualquer deslize”, foi sentida com pesar entre as lideranças e boa parcela dos trabalhadores, especialmente os envolvidos na idealização mítica do militante revolucionário do período stalinista. O poeta Mário Santana registrou no jornal do partido uma singela homenagem ao homem que possuía predicados tão fortes como “um bloco inteiriço de valor humano, social, político e privado”:

 

Livramento perdeu com a morte de Santos Soares um de seus mais dinâmicos elementos, o quadro mais completo. Autentico tipo de lutador, apresentando sua personalidade por todos os quadrantes, um bloco inteiriço, solidamente feito de valor humano, quer político ou privado. Foi sempre tido no seio do partido como um guia de confiança, coerente e lúcido, acatado e ouvido com respeito, certos de seu equilíbrio e ponderação como organizador sindical, condutor de massas.[9]

 

Como se pode constatar pelas palavras do poeta santanense, o guia dos operários fronteiriços que acabava de falecer encarnava as qualidades que um legítimo militante da causa comunista poderia ostentar: verdadeiro homem de ferro, acima de seu tempo e de seus pares, na melhor definição do mito do mensageiro eleito. Jorge Ferreira, ao analisar as origens das concepções messiânicas que elevaram o proletariado como redentor da humanidade conclui que o sucesso obtido pelo Manifesto Comunista não se restringiu apenas a revelação de determinadas “realidades que se fundaram como verdades”, mas também a uma série de imagens, simbologias e representações imaginárias que, ao final, cumpriam a função de resgatar estruturas mitológicas milenares. Utilizando-se das reflexões propostas pelo filósofo Mirceade Eliade, argumenta que, no limite entre o político e o profetismo social, as idéias mais vulgarizadas de Marx “retomaram e prolongaram um dos grandes mitos escatológicos de sociedades antigas (...), a narrativa do modelo redentor do Justo, também conhecido em diversas versões como o ‘eleito’, o ‘ungido’, o ‘inocente’, o ‘mensageiro’, que nos tempos modernos, sobreviveu entre os comunistas, mesmo que dessacralizado, na imagem do proletariado revolucionário.[10] Imbuído das homenagens póstumas e da construção do mito, prossegue Mário Santana:

 

Nunca teve um só instante de esmorecimento ou vacilação, uma única fenda por onde penetrasse a cunha do oportunismo, sectarismo ou comodismo deformadores dos princípios no processo político. Comedido e tenaz, enérgico e ponderado, dotado de um grande senso psicológico. Incansável sempre estava em todas as frentes de luta; mesmo nos últimos momentos antes de morrer ainda se fazia ouvir aconselhando com eficiência, lamentava não poder dar mais para o seu partido: O PARTIDO COMUNISTA. Achando que a morte lhe vinha inoportunamente aniquilar, no momento em que se aproximava a luta decisiva. A compleição moral deste homem pode servir de padrão para quem quiser ser um líder de vanguarda. A estatura de sua personalidade foi sempre uniforme em tudo, porque em tudo foi honesto e sincero e bom: como político, como chefe de família, como amigo, como irmão e como filho. O nobre e grande lutador da Serrilhada se impôs no seu partido por este conjunto de qualidades excepcionais.[11] 

Hélio Santana Alves foi parceiro das lutas sindicais junto a Santos Soares. Participante do ato de pichação no Parque, ele rememorou a importância do amigo nas lutas em comum, que muitas vezes envolvia os comunistas uruguaios.

 

Eu sempre tive, na minha concepção, que nós não entendíamos de marxismo-leninismo, nós entendíamos de esquerdismo. Marxista era esse velho, Santos Soares, que mesmo com a saúde abalada, dava orientação de cima da cama. Todos os operários de fábrica e padaria lidavam com ele. Tinha mil e tantos operários militantes, entre o Armour, a Padaria Aragonez e outras, uma quantidade enorme. Foi um baluarte das lutas políticas entre Santana do Livramento e Rivera. Tinha uma biblioteca marxista, que era notável que um operário tivesse uma biblioteca tão perfeita(...) Para se analisar a situação da fronteira naquela época, era como se fosse um partido só. Tanto se militava no partido brasileiro como se militava no partido uruguaio (...) Mas o fundamental para mim é que o marxismo-leninismo vinha de Santos Soares, que muitas vezes dava aula no partido comunista uruguaio. Foi o único elemento que mais se aproximou do marxismo naquela época.[12]

 Como um legítimo território em comum para os comunistas, a fronteira que surge nas lembranças de Hélio é a que unificava a militância e as solidariedades, onde havia um ato do partido iam quase todos das duas cidades. Aos grandes atos do partido comunista brasileiro, compareciam os comunistas do partido uruguaio, e assim também do outro lado.

 

* Este texto é parte modificada da tese " No portão da fábrica: trabalho e militância política na fronteira de Santana do Livramento/ Rivera (1945-1954)", apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; Programa de Pós Graduação em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 



[1] João Batista Marçal, pesquisador do movimento operário no Rio Grande do Sul, nota que as greves de 1919, nos Frigoríficos Armour, em Santana do Livramento, e Swift, em Rosário, foram duramente reprimidas. Na cidade de Rosário, distante cerca de 100 quilômetros da fronteira, dois dos líderes grevistas - um maquinista uruguaio e outro espanhol - foram degolados, no caminho de uma suposta deportação para o Uruguai. MARÇAL, João Batista. Comunistas Gaúchos. A vida de 31 militantes da Classe Operária. Tchê!: Porto Alegre, 1986. Pg. 118.

[2] LOPEZ, Gustavo. Uma breve história do movimento operário uruguaio. Revista Marxismo Vivo. Nº 15. P.116.

[3] MARÇAL, João Batista. Op. Cit., Pg.119.

[4]  Idem. Pg.120.

[5] Perseverando Fernandes Santana. Depoimento ao autor.  Documentário “Conversas com Perseverando”. Santana do Livramento, dezembro de 2015.

[6] MARÇAL. João Batista. Op. Cit., Pg.121

[7] Idem.Pg.122

[8] Gessy Rodrigues Soares. Entrevista concedida ao autor, em 23 de julho de 2011, Rivera, Uruguai.

[9] A Morte de Santos Soares. Unidade. Santana do Livramento, 20 de janeiro de 1951. Pg.1

[10] FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito. Cultura e Imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956). Rio de Janeiro: Eduff. 2002. Pgs 34, 35.

[11] A Morte de Santos Soares. Op.Cit.

[12] Hélio Santana Alves. Depoimento ao autor e Liane Chipollino Aseff em 5 de julho de 2005, Santana do Livramento.