segunda-feira, 31 de maio de 2010

Até quando ???

Os capítulos da história são tão claros, quanto dramáticos. Primeiro os judeus obtêm a aprovação da ONU para a construção do Estado de Israel. Para isso expulsam milhões de palestinos que ocupavam a região. Em seguida, aliados aos EUA, impedem que o mesmo direito, reconhecido igualmente pela ONU, seja estendido aos palestinos, com a construção de um Estado soberano tal qual goza Israel.

Depois, ocupação dos territórios palestinos, militarmente, seguida da instalação de assentamentos com judeus chegados especialmente dos países do leste europeu, recortando os territórios palestinos.

Não contentes com esse esquartejamento dos territórios palestinos, veio a construção de muros que dividem esses territórios, buscando não apenas tornar inviável a vida e a sustentabilidade econômica da Palestina, mas humilhar a população que lá resiste.

Há um ano e meio, o massacre de Gaza. A maior densidade populacional do mundo, cercada e afogada na sua possibilidade de sobrevivência, é atacada de forma brutal pelas tropas israelenses, com as ordens de que “não há inocentes em Gaza”, provocando dezenas de milhares de mortos na população civil, em um dos piores massacres que o mundo conheceu nos últimos tempos.

Não contente com isso, Israel continua cercando Gaza. Um ano e meio depois nem foi iniciado o processo de reconstrução, apesar dos recursos recolhidos pela comunidade internacional, porque a população continua cercada da mesma maneira que antes do massacre de dezembro 2008/janeiro 2009. As epidemias se propagam, enquanto remédios e comida apodrecem no deserto, do lado de fora de Gaza, cercada como se fosse um campo de concentração pelas tropas do holocausto contemporâneo.

Periodicamente navios tentavam levar comida e remédios à população de Gaza, chegando por mar, de forma pacífica, mas sistematicamente eram atacados pelas tropas israelenses. Desta vez a maior comitiva internacional de paz, com cerca de 750 pessoas de vários países, se aproximou de Gaza para tentar romper o bloqueio cruel que Israel mantêm sobre a população palestina. Foi atacada pelas tropas israelenses, provocando pelo menos 19 mortos e várias de dezenas de feridos.

Quem representa perigo para a paz na região e para a paz mundial? O Irã ou Israel? Quem perpetra massacres após massacres contra a indefesa população palestina? Quem impede que a decisão da ONU seja colocada em prática, senão Israel e os EUA, bloqueando a única via de solução política e pacifica para a região – o reconhecimento do direito palestino de ter seu Estado? Quem comete os piores massacres no mundo de hoje, senão aqueles que foram vítimas do holocausto no século passado e que se transformaram de vítimas em verdugos?

O texto acima é de autoria do sociólogo Emir Sader, publicado em www.cartamaior.com.br, sob o título "Israel: novo massacre humanitário?" Na foto, mulheres da comunidade palestina de Santana do Livramento, em protesto contra o massacre de Gaza, de dezembro de 2008.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Humberto Bisso testemunha a truculência


" Tu sabe, de repente foi aquele fogueteio, parecia um mundo de foguete e eu digo, óia Seu Sabino, e esse mundo de foguete o que será, vamos ver o que é? E saímos, nós não tinha chegado na esquina quando uma bala assobiou. Eu digo: -olha Seu Sabino, é tiro isso. E fomos até lá, o Seu Sabino ficou na esquina em frente aonde é hoje o (supermercado) 300 e eu entrei sozinho pela calçada. Fui passá num auto e já tinha um caído aí na calçada, arruinado, morto. Caminhei mais um pouco e num canteiro já tinha outro caído, um rapaz bom que eu conhecia, morava perto da casa da minha irmã lá. E no meio da rua tinha um, que estava ventando, e a roupa dele abanava assim, tava morto, mataram uma porção de gente. E eu quando entrei caminhando no Largo, um sargento da Brigada vinha com um revólver na mão correndo atrás de mim, e eu fui e botei as mãos no bolso, e segui caminhando e ele veio e se parou na minha frente e viu que eu não era de peleia e se foi embora. É que o sargento viu que eu não reagi, me olhou só. Aí eu dei volta e disse pro Seu Sabino: - Seu Sabino, vamo embora! "
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O barbeiro Humberto Bisso morava a uma quadra do Parque Internacional, quando deu-se a chacina dos militantes comunistas, em setembro de 1950. Aos 100 anos, em depoimento a Liane Chipollino Aseff, gozava de uma vigorosa memória. Na ocasião - julho de 2001 - lembrou daquele domingo primaveril, quando findava mais uma concorrida sessão do Cinema América. Bisso saía de um bar das redondezas, em companhia do seu amigo, o guarda noturno Sabino. Conforme o barbeiro, escutaram um forte barulho de fogos e, curiosos, foram verificar o motivo de tamanho alvoroço, deparando-se com a cena do crime. [A fotografia é de cartão postal do Parque Internacional, de meados dos anos 50. O crime se deu no Largo Hugolino Andrade, logo em frente aos automóveis estacionados].

quinta-feira, 27 de maio de 2010

24 de setembro de 1950: o assassinato dos militantes comunistas


(...)Rosales e Kulmann,
Irmãos Aristides,
E tu Abdias,
Herói camponês
- de vida singela,
de sonho tão alto
esperem
confiantes
que outrora desponte no céu de amanhã (...)
(Lila Ripoll)

“ Em 1950, quando aconteceu a chacina eu não estava mais no Armour. Já tinha sido botado para a rua, por causa da greve que fizemos. Havian sindicalistas, casi todos, mas era el partido que estava determinando os acontecimentos. Era época de eleição, se supo que la policía ia tomar represálias, e se consultó a Porto Alegre e yo era uno, solo yo, que estava com Lúcio quando recibió ordenes de que podian hacer pichamento legalmente, que estava todo determinado de que no ia passar nada. Entonces aí se resolvió hacer, se convocó a la gente toda e se fez, se começó a pichar, quando vê, somos surpreendidos pela polícia. E chegou atirando, insultando e atirando e matando. E matou quatro! Havia 15 o 17 personas quando mucho, no havia más...Unos dirigian el trabajo e otros executavan ele trabajo. Estavam completamente desprevenidos, a arma deles era o pincel e a cal. Houve um que estava pichando, era parente do Perseverando, tinha uma fustinha, sabe o que é fusta? Um relhinho, e brigou de fusta. Tinha outro, que morreu, o finado Aristides Corrêia, que tinha um aparato que vinha nos carburadores dos auto antiguo, como que uma güela, assim, flexíble, e deu três ou quatro mangasso num deles com aquilo, e caiu morto, assassinado. Era mais ou menos las diez de las noche, era temprano todavia[...] o Ari Kullmann era o dono da Cueva. E recebia a polícia, a polícia se dava com ele, os que mataram ele não saíam de lá, jantando de noite e comendo sempre. Tinha um uruguaio, me parece que si, que era do centro do Uruguai, mas que fazia muitos anos que morava em Livramento, trabalhava no Frigorífico Armour, se chamava Aladin Rosales, e esse era um dos que podia ser castilhano. Esse foi um dos que morreu também. (...)
Era o Exército castilhano que vinha para a linha, Veio para a linha, ocupou a linha, o próprio Exército salvou um comunista, o Santos, me quiero acordar del nombre del, salvou porque caiu baleado das duas pernas e veio um metralhar ele com fuzil, foi quando eu saí dali, eu já não tinha mais bala e chegou o caminhão da polícia com mosquetão, o Exército. Iam fuzilar ele, e o milico castelhano disse que não, que não permitia, que ele tava no Uruguai- portanto o responsável por ele eram eles. E levaram ele, hospitalizaram ele e tudo, mas ele foi preso e o que salvou ele, era um tocaio dele por coincidência (risos) [...] O Lúcio foi curado no Polla, na Sarandi lá no fundo, num doutor que era comunista, Dr. Polaco Polla, chamavam ele, era russo, mas era médico castelhano, curou ele e imediatamente que curou ele, deu salida para ele pelos fundos, pelos muros da casa dele e comunicou a polícia que tinha curado um ferido, porque ele tem obrigação de anunciar né? Mas só depois que curou bem, ele largou. Ah, o Lúcio ficou em Rivera, e depois quem saía com ele era eu, só eu saía com ele. Ele ia com um prato de comida e um pano agarrado assim, disfarçado de mendigo, e era tempo de eleição no Uruguai também, e ele gritava - o partido Batllista era o de maior prestígio- e ele gritava: "Viva Batlle" em castilhano (risos), não muito bom castelhano, mas, e eu atrás dele. (risos).
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Depoimento de Hugo Nekesaurt, militante comunista (na foto, à esquerda de Perseverando Santana) sobrevivente da chacina dos quatro militantes comunistas, em frente ao Parque Internacional, em 24 de setembro de 1950. A partir deste post, iremos publicar uma série de depoimentos sobre o crime. A poetisa quaraiense Lila Ripoll, militante comunista, dona de raro talento literário, imortalizou a luta em seus versos (acima, fragmento de Elegia). Publicado originalmente em Memórias Boêmias - Histórias de uma cidade de fronteira (Edunisc, 2008).

sábado, 22 de maio de 2010

Palestina


Um pássaro na gaiola,
uma menina.
Uma escola que ensina você como amar.
Uma flor cheirosa.
Uma chuva gostosa.
Um sol nascendo
no meio de uma disciplina.
Isto é a Palestina.
Um grito do trabalhador,
uma lágrima de mulher
Um choro de criança,
uma reza de pastor
Uma batida do coração.
Um sorriso de uma flor
Um sonho distante,
perto e profundo
Um relinchar de cavalo.
Isto é a Palestina
Minha terra bela e querida,
uma floresta queimada
Uma casa dividida.
Um mapa rasgado
Uma reza na Mesquita,
uma missa na Igreja
Uma campainha tocada,
uma mãe desesperada
Uma história contada, sem início e sem fim
Uma palavra oculta, uma espera na parada
Uma corrida bloqueada, uma bandeira furada
Um escudo, uma espada, uma estrada terminada
Um mar bravo, um santo, um diabo, um paraíso
Que virou um inferno.
Que pena.
Que pena Palestina
Não prenda os pássaros, larga aquele menino
Levanta a bandeira.
Esta é a hora.
Liberta esta menina que dará orgulho à PALESTINA.

Poema de Mohammad El Hanini, poeta, escritor e cronista árabe. Nascido na Palestina em 1953, cursou Faculdade de Literatura no Líbano, é professor de Língua Árabe e membro da Liga Árabe de Letras. Vive em Santana do Livramento. Na foto, El Hanini participava da passeata organizada pela comunidade árabe e santanense contra a ofensiva israelense em dezembro de 2008.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Caminhos de Valda







Vivalda Costa nasceu no Morro da Coloninha. Vivalda transformou-se em Valda Costa. Valda era negra e bela. Valda foi musa e modelo de Martinho de Haro. Valda caiu nas graças da alta sociedade florianopolitana dos anos 70/80. Valda pintou o morro e destacou-se na cena artística de uma cidade provinciana. Valda, moradora do morro, frequentou a seleta turma de Beto Stodieck. Valda nunca abandonou suas origens. Valda viveu amores bandidos. Valda foi internada na Colônia Santana. Valda viveu o glamour das rodas sociais, o ressentimento do morro, o inferno das drogas e do álcool. Valda morreu em 1993 aos 40 anos. Valda viveu intensamente uma geração de artistas e “revolucionários urbanos” do final do século 20 em uma cidade paradisíaca em plena transformação.
Artista marginal – se considerarmos sua origem social (à margem, periférica), e o escasso grau de conhecimento da importância artística que dela possui a sociedade florianopolitana, catarinense e brasileira, ainda hoje. Uma artista que nasceu pobre, viveu em um morro que circunda o centro da cidade, e que encontrou seu espaço entre artistas inovadores da cena catarinense dos 70/80 como Max Moura, Jairo Schmidt, Vera Sabino, Janga, Loro. Também os modernistas e pré-modernistas, como Vechietti, Pléticos, Meyer Filho e Martinho de Haro, muito embora fossem vinculados a uma geração passada, inseriam-se nas inquietações da nova geração, produzindo e participando dos movimentos daqueles anos.
Chamada pelos seus pares e pela imprensa como a nossa “Camile Claudel”, “a nova Djanira”, ou “a nossa Di Cavalcanti”, Valda foi catalogada inicialmente como Naïf, primitiva, discípula de Martinho no que mostrava de melhor. Valda e seus caminhos, Valda e o entorno feérico que a circundava, seus pares de arte, sua condição de cidadã ao mesmo tempo excluída e incluída, contraditória, uma artista enfim, para além de seu espaço e de seu tempo!
A jovem artista negra Valda Costa e seus afetos. Sua vida pobre no Morro do Mocotó, seu mestre e pintor consagrado (Martinho de Haro), seu amigo, promotor, catalisador de uma cena emergente (Beto Stodieck), seus pares da arte local (Peninha, Harry Laus, Cascaes, Ronaldo Linhares, Valdir Agostinho, Janga, Hassis, Rodrigo de Haro).
Florianópolis: uma cidade que aos poucos ia adquirindo uma ar de metrópole verticalizada pela especulação imobiliária. Mas se a urbe perpetuava uma estrutura de classes congelada, o cenário artístico buscava uma vida para além das ruínas modernistas, adaptando seu vocabulário, em meio a uma ditadura militar em agonia, mas ainda com fortes lastros autoritários.
A partir deste mês, estaremos dando início ao desafio de filmar o documentário "Caminhos de Valda", que pretende retratar a trajetória da pintora (foto) e seus pares, que viveram a efervescência da cena artística catarinense, nas décadas de 70 e 80.

sábado, 15 de maio de 2010

1949: dias de luta no Frigorífico Armour


A greve no Frigorífico Armour arrebentou em abril de 1949. A polarização entre capital e trabalho extrapolava os limites da negociação, e alguns dos principais líderes do movimento foram presos. Na edição de segunda-feira, 4 de abril, o jornal O Republicano, porta-voz da UDN local, publicava: “Como vinha sendo esperado de ha muito, finalmente 6.a feira última irrompeu o movimento grevista no Frigorífico Armour desta cidade, sob o pretexto de pleitear o aumento de salários dos operários daquele Frigorífico e contra o desconto do Imposto Sindical, mas, na realidade, servindo aos desígnios revolucionários e subversivos dos comunistas, que procuram acima de tudo a anarquia, a desordem e a desharmonia social. O movimento teve uma longa preparação psicológica, através da imprensa comunista, da distribuição de boletins subversivos, e da atuação desenvolvida pelos vereadores comunistas Lucio Soares Netto e Solon pereira Netto, na Câmara Municipal, procurando da tribuna daquela Câmara agitar os meios operários e sindicais e justificar o direito de greve. Porque a greve, é preciso que se diga, embora uma faculdade constitucional, por não ser de auto-aplicação, e depender de regulamentação legal, praticamente não existe em nosso país”. Era voz corrente na cidade de que os líderes grevistas presos seriam levados para Porto Alegre. Na tensão pulsante daquelas horas, os companheiros remanescentes, entre eles Lucio Soares Neto, secretário do partido, e Hugo Nekesaurt, braço direito da militância, tramavam a reação. Escondidos em um fundo de quintal de uma modesta casa nas cercanias no frigorífico, junto a um chiqueiro de porcos, varavam a noite despistando a polícia, correndo risco de vida. Hugo recorda: “Estávamos nos fundos de uma casa de gente requetepobre. E de madrugada é que se deu o caos. As mulheres dos companheiros presos foram exigir, chorando, uma solução. Se dizia que iam ser levados para Porto Alegre no trem que saía de manhã e ninguém sabia o que podia acontecer”.
Pressionado, Lucio não resistiu ao apelo desconcertante das companheiras, angustiadas pela incerteza da luta e o que poderia acontecer aos seus maridos. De súbito, determinou a Hugo mais uma das missões quase suicidas, que já faziam parte do cotidiano da luta. É o velho militante comunista, sobrevivente daquelas décadas radicalizadas, que rememora: “No portão do Armour a greve tava fervendo, miles de personas não? quase dentro da fábrica. E o Lúcio me manda a mim que vá ao bairro Wilson, na estação ferroviária, a conquistar brigando a liberdade dos comunistas que iam seguir preso. E digo, e vou só? Sim, você vai no Armour, pega gente no portão e vai lá, o trem vai parar na estação do Wilson, você sobe no último vagão, passa por todos e manda que eles desçam. Mas não era para dizer aos companheiros qual era a missão que o partido mandou, só quando chegasse no trem. Aí caminhamos uns cinco ou seis quilômetros pela via férrea, e quando chego e digo olha, nós vamos fazer o seguinte, vamos ver se recuperamos a liberdade dos nossos companheiros, todos deram volta, uns cinco ou seis, e eu fiquei sozinho.Agora imagina, tinham que levar gente muito bem armada para fazer isso, e eu com um revólver 32 e sozinho”.
Hugo não desertou. Esperou o trem, e conforme o combinado com Lucio, ofereceu-se ao sacrifício pela liberdade dos companheiros. Nem que fosse à bala iria tirar dali Felício, Aladim, Horacílio, Pedro e Adair. Também deviam estar no trem o Juvelino, o Nazário, o Joventino, o Antônio, o Ernesto e o Toríbio. Com a arma em punho, dissimulada no bolso, percorreu os vagões em intermináveis minutos. Mais uma vez, a sorte o acompanhou. O conflito fora adiado. Os companheiros ficaram detidos na delegacia, de onde só sairiam depois de sumariamente demitidos do frigorífico.
Hugo desceu em Palomas e empreendeu uma arriscada caminhada rumo ao centro do conflito, novamente. Enquanto percorria os quilômetros que o separavam da cidade, da fábrica e dos grevistas, pensava na peculiaridade da luta. Mal poderia supor que pouco mais de um ano depois veria quatro de seus companheiros chacinados em frente ao Parque Internacional. Quem observasse aquele homem caminhando pelos trilhos; obstinado, cansado, envolvido até a raiz na luta social, não poderia supor que a luz daquela manhã outonal iluminava um idealista que pouco se importava com as privações que o combate impunha. Conforme bem notou o historiador Jorge Ferreira, para os comunistas “amargurado era aquele que não sabia as origens de seu sofrimento, infeliz era o operário alienado que desconhecia as razões de sua miséria, sacrificado era o camponês que nascia e morria faminto acreditando na vontade de Deus; sofrido era o pequeno-burguês em sua vã corrida para alcançar os capitalistas. Para um autêntico revolucionário, o sofrimento era um sentimento perturbador tão somente para aquele que ignorava as matrizes de suas dores”.
Para Hugo, ser revolucionário era viver a plenitude da moral comunista, que preconizava a destruição de uma ordem social desigual e farta de valores injustos. Foi assim que viveu intensamente as transformações políticas que sacudiram o século 20, refletidas nas batalhas operárias de uma fronteira desigual, marcada pela luta de classes. Um tempo em que ser comunista bastava para abrir as portas da frente e dos fundos da casa. Virtude que não se questionava. Quando guri, morador das cercanias da charqueada São Paulo, conheceu Santos Soares, secretário do partido e legítimo líder do operariado santanense. Experimentou a grande transformação que o fez comunista de corpo e alma quando um vizinho o fez ler uma carta em que Olga Benario Prestes relatava a vida na prisão nazista. As agruras vividas pela pequenina filha de Olga e do líder Luis Carlos Prestes comoveram o jovem aprendiz de pedreiro e despertam para sempre um senso de justiça social que nunca mais abandonaria. Ao mesmo tempo, a guerra civil na Espanha incendiava os corações operários, era preciso tomar uma posição, mudar o mundo enquanto era tempo!
Mais tarde, sua ligação com Lucio Soares Neto, que assumira a secretaria do partido no final dos anos 40, seria de altos e baixos. Os unia uma obsessão pela luta operária, pela justiça social, o afronte aos poderosos da oligarquia local e aos gringos do frigorífico. Os afastava, no entanto, uma classe distinta. Hugo questionava alguns valores que creditava a origem pequeno burguesa de Lúcio, e isso constantemente os levava a posições conflitantes. Porém, como soldado da causa, cumpria as ordens que vinham do líder partidário, embora muitas vezes desconfiasse de suas reais intenções: “Me colocava em missões que seguramente eu morreria, mas não morri nunca!”. Em alguns momentos, a paranóia que rondava a luta fazia Hugo crer que Lucio o achava um elemento da polícia, plantado no partido. Só podia ser isso. “Me perseguiu porque achava que eu estava vendido para a polícia, que eu não podia ser tão inteligente assim!”. Entre Lúcio e Santos Soares, Hugo via quilômetros de distância. Para ele, um era o legítimo “obrero”, o outro “um burguês que atuava como caudilho”. Ainda assim, o unia a Lucio o cotidiano do partido e a paixão revolucionária, que alimentava uma insólita e fiel amizade. Admirava a trajetória do brilhante advogado em defesa dos pobres e o passado que o ligava a Aliança Nacional Libertadora, o exílio no Estado Novo, e a rejeição em comum que nutriam por Getúlio Vargas.
Não que Hugo fosse frontalmente contra os pequenos burgueses ou os caudilhos. Admirava Don Pedro Irigoyen, o dono do saladeiro, que soube ludibriar os gringos que pensavam ter comprado o terreno do Armour com direito aos eucaliptos da avenida, semeados por ele. Lembra com indisfarçável orgulho da frase proferida tantas vezes por Don Pedro: “Mientras exista Pedro Irigoyen, y sea dueño del saladero, nunca van a ver un milico en el portón”. A hombridade da luta política também acendia a admiração ao caudilho maior, Flores da Cunha. “Gosto do Flores, apesar do Flores ser da UDN , porque era um homem romântico, humano, chorava por qualquer coisa. E era o valente número um não?”. A relação com o Frigorífico passou da admiração para uma crescente consciência de classe. Quando olha para trás e revê a luta que teve como palco o frigorífico, Hugo reflete sobre os prós e os contras que o desenvolvimento capitalista impôs naquele momento : “Isso eu penso até hoje, quando perco o sono. É a evolução do mundo, claro, eram uns ladrões, sempre foram uns ladrões, mas teve uma etapa em que eles ajudaram os povos, verdade? Porque quer indústria melhor do que um frigorífico para trabalhar? As pessoas aqui de Santana trabalhavam em campanha, grátis, por comida. Faziam muro de pedra, quando não havia alambrado. E eu faço uma comparação do Frigorífico com um filho. Você cria o seu filho, ajuda, mas ele cresce e casa e você deixa de ajudar. Ele já é livre. E com os capitalistas sucede a mesma coisa, a princípio é encantador trabalhar em um frigorífico, mas depois um se dá conta de que é roubado”.

Este texto poderia se chamar "Crônica para Hugo", pois é também uma homenagem a este velho militante comunista, meu amigo e fonte de tantos relatos fundamentais para a compreensão de uma época de lutas na fronteira. Na foto tirada no inverno de 2009, o que sobrou do Frigorífico Armour, em Santana do Livramento (RS). clique na foto para ampliá-la

terça-feira, 11 de maio de 2010

Antônio Apoitia, a voz das ruas


(...) Muita gente, muita gente passava para cá e para Montevidéu não é? O staff do Jango e do Brizola, deputados federais, aquele Cláudio Braga, um cara que era fantástico, o Amaury Silva, que era meu amigo pessoal, foi Ministro do Trabalho. Ele vinha todos os meses em Rivera. Ele era o lugar tenente do Jango lá em Montevidéu. Aprendi muito com o Jango lá e conheci muito o Jango, fiz amizade com o Jango por intermédio dele. Ele vinha aqui para contatos políticos e eu agendava as coisas. Ele vinha aqui e me avisava, geralmente no Hotel Nuevo. Ele tinha uma lista de coisas pra comprar em Santana, remédios geralmente, e outras coisas. E tinha contatos com o pessoal de São Borja, São Gabriel...e eu contatava as pessoas, fazia o meio de campo. Era meu amigo, gostava dele, eu ia lá bater papo com ele, íamos jantar juntos, em churrascaria, e fiz muita amizade. Era uma figura notável. Ele tinha um restaurante em Montevidéu, o Cangaceiro, que o Jango e uns amigos tinham montado pra ele lá. Em Pocitos ali. E de ministro ele passou a ser chefe de restaurante. E eu ia muito frequentemente a Montevidéu naquela época, estava todo mundo lá, os exilados. E levava recados pra lá, trazia de lá pra cá. Era um menino de recados, vamos dizer assim, e levava remédios do Brasil, que lá não tinha. E produtos brasileiros que os caras pediam. (...) a vida clandestina ensina muitas coisas, a gente vai aprendendo assim a se cuidar né, botava uma roupa, botava um chapéu, aquela coisa, saía para um arrabalde, lá quem sabe aonde, pegava carona por exemplo com um amigo, dava umas voltas para despistar né, soltavam a gente aí, num bairro por exemplo qualquer, depois ficava por lá e depois voltava a pé, saía por um bairro desses qualquer e ia de madrugada. Porque é muito difícil controlar a fronteira, é impossível, né. Eles controlavam a alfândega, determinada rua, mas não há como controlar as pessoas.
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Antônio Apoitia Neto (foto e depoimento), vereador santanense cassado pelo AI5 usava a alcunha de Antônio Almafuerte, na missões de pombo correio ou de auxílio direto aos que buscavam o refúgio uruguaio pela porta da fronteira, em 1964. Recentemente, conversando com o ex-governador Olívio Dutra, ele me lembrava da fundamental militância de Apoitia no sindicato dos bancários de Porto Alegre, nos anos anteriores ao golpe. "Apoitia era conhecido como A Voz das Ruas, porque ficava dias escondido em um sótão que existia no sindicato, à salvo da repressão, convocando os companheiros por um sistema de alto-falantes colocado nas esquinas", revelou Olivio.

domingo, 2 de maio de 2010

Os anos de ouro do boxe na fronteira


(...)Não tinha a fama do futebol, mas as pessoas iam muito ver. Que eu me lembre não se pagava, tinha um público, mais ou menos, não era como o futebol, que era uma enchente de gente. O público era de maioria masculino. Tinha o Mário Cunha, ele gostava muito de boxe, ele gostava de fazer rebuliço de boxe, tinha o Sezefredo Paiva, ele gostava de lutar também, ele lutava grande. Tinha uruguaios e brasileiros sim, eles se reuniam né? e ali (Rivera) tinha uma academia de boxe.(...) Às vezes mudava de sede né? Faziam lutas internacionais, claro, às vezes vinha gente do Uruguai lutar, dessas lutas eu não assisti muito, eu tava em Porto Alegre. O Maturino Osório era daqui, de apelido Mondongo, era um lutador popular. Tinha o Sezefredo Paiva, que era de família de alta sociedade lá de Rivera, esses troço e tal, parece que ele lutou com profissional e foi aí que terminou (risos). Tinha aí no Colombo, aí houve luta de boxe, sim, houve, parece que umas lutas, mas esporadicamente, tinha em diversos lugares que eles faziam ringue, depois sim que caiu o esporte era no ano de 32, 33, 34, 35, depois o Mondongo foi para Porto Alegre. (...) A luta com o Maturino, essa eu assisti! Quando inauguraram o ringue Farropilha, alí perto do cais do porto. Quem vinha para inaugurar, era o Primo Carnera, que era campeão mundial de boxe, ele vinha de passagem para Buenos Aires. O Flores da Cunha foi inaugurar o ringue, o General e Governador, eu tava lá no ringue, eu também fui, e fizeram a última luta com o Maturino e o Retamose em homenagem ao General Flores da Cunha. O Retamose era daqui (Uruguai), parece que daí de Tacuarembó, mas era um bom lutador, e o Maturino. Fizeram uma homenagem ao Flores, conterranêo naturalmente do Maturino, porque Flores era daqui não? (risos) E no primeiro ou segundo rond, (risos) O Retamose deu um soco assim, pegou o queixo e o estômago do Maturino, o Maturino largo lá fora. (risos) Terminou a luta! O Maturino era valente, mas, era cheio de coisa para lutar, e até tinha um camisão assim, um chambrão de sêda. Aqui de Rivera, tinha muito aqueles troço de sêda. Tá, se apresentou o Maturino ! E nós todos, os santanenses batendo palma pro Maturino, mas ele lutou de novo, no segundo round, pegô e foi [... ]O Retamose era bom lutador. Quem foi vencer ele foi um rapaz de Pelotas, o Geraldino Oliveira, uma luta! Sim, todo ringue contra o Retamose ! Ele ganhou por pontos do Retamose, mas era valente o Retamose ! Eu me lembro. Tinha o negro Polo Norte, que era um negro também daqui, grandão. Era bom mas não era, assim de garra que nem o Retamose, os outros faziam coisa e ele aguentava, tinha o Juca Tigre, do Rio de Janeiro, vinham todos lutar aí, eu vi todos aí, em Porto Alegre, no Clube Farropilha, no seu auge!
Nas lembranças de Perseverando Santana, o auge do boxe na fronteira retorna em todas as suas luzes. Na foto, o jovem Hermes Walter, que depois criaria seu famoso "cineminha" popular, exibe os dotes de lutador. Publicado em Memorias Boêmias, histórias de uma cidade de fronteira (Edunisc, 2008).