Escrevi dois
livros que considero importantes para conhecermos um pouco da história recente
de Santana do Livramento e Rivera. Em um deles, chamado Retratos do Exílio –
Solidariedade e resistência na fronteira, recupero a trajetória de atores
políticos reconhecidos e anônimos cidadãos no enfrentamento das ditaduras
brasileira e uruguaia, nas décadas de 60 e 70 nesta fronteira. Na outra obra,
já no prelo, abordo as lutas operárias em torno do Frigorífico Armour, logo
após o final do Estado Novo e inícios dos anos 1950.
Pois bem, em
nenhum momento de pesquisa para estes dois livros me foi permitido investigar no
acervo do Museu da Folha Popular. Senti na pele o que um jornalista e um historiador
podem passar quando tentam de alguma maneira elaborar novos olhares sobre a
nossa história.
Escrevo para refletir sobre o recente evento que veio a público, da doação do acervo
daquele museu, construído a duras penas pelo historiador Ivo Caggiani, ao Museu Departamental de Rivera. Convém
aqui um parênteses: sabemos que um
acervo se constrói em grande parte através de doações de documentos, em que pessoas, de boa-fé, compartilham seus pertences com a ilusão de que um “Museu” teria a
guarda de uma institucionalidade e o futuro preservado.
Isso nos
remete hoje a um desfecho caótico sob esse ponto de vista, e uma constatação dolorida:
Santana do Livramento não possui uma elite cultural e política capaz de
valorizar sua fortuna documental e histórica. O pior de tudo isso é que, como
diria o velho roqueiro argentino, “no es solo una cuestion de
elecciones”. Passam os homens e mulheres, mas o desprezo permanece no ar. Assim
como o desprezo pelas periferias e pela real democratização da cultura em nossa
cidade. Parecemos relegados a uma eterna condição de povoado subsidiário dos
grandes latifúndios, que se hoje não possuem mais o poder oligárquico de
outrora, pelo menos deixaram instalada uma mentalidade classista, divisionista
e egoísta.
Rivera trata
bem seu legado, parece que sim. Rivera nunca teve um acervo consistente como o
nosso, também parece que sim. Pelo menos aos olhos do pesquisador que já fuçou
nas gavetas disponíveis nos dois lados da fronteira.
Os acervos de
Santana foram tratados de maneira irresponsável durante anos e assim documentos
fundamentais para descortinar passados e erguer futuros foram queimados,
jogados ao léu, destruídos, roubados.
Poderia adotar
aqui uma posição cômoda, pois como historiador poderei ter acesso a partir de agora a uma série de documentos antes
inacessíveis. Mas não canso de me espantar com nossa incapacidade de sustentar
no município um acervo que em última instância pertence ao povo desta cidade. Pois
conversas vazias sobre “fronteira irmã”,
“da paz” e todos esses mitos construídos de maneira leviana, esbarram nos
ditames legais dos estados nação, essa organização política e historicamente construída
que a cada território impõe suas regras. Portanto, ao fim e ao cabo, alija-se grande
parte da população santanense de um acervo que seria seu, por direito.
Não fomos
competentes para retê-lo, não fomos. Porém, um acervo dessa monta abre o debate
sobre o que é juridicamente correto e ético quando se discute o destino do
patrimônio cultural de um povo. Iremos continuar a ver nossos documentos históricos
virarem pó e sem o mínimo esboço de reação? Ao que parece, sim. Mas a todos os
indignados – não com a competência pragmática de Rivera (que certamente irá preservar o acervo) – mas com o destino de nossas riquezas culturais, nos cabe o grito,
mais uma vez, aos quatro ventos.