quinta-feira, 29 de setembro de 2011

História e Biografia, por Sabina Loriga

A fronteira que separa história e biografia sempre foi ressaltada e, em todas as épocas, podemos observar historiadores esperando delas uma separação definitiva. Arnaldo Momigliano nos lembrou que durante o período ático Tucídides não escondia seu desprezo aristocrático pela biografia, considerada como um gênero por demais popular e que, dois séculos mais tarde, Políbio insistiria na necessidade de ultrapassar a monografia e vislumbrar a síntese geral. Mas o fosso entre os dois gêneros seria cavado em profundidade ao longo do século XIX, quando o pensamento histórico atinge seu apogeu. Dois momentos chave encorajaram uma separação definitiva. O primeiro remonta ao fim do século XVIII e início do XIX e é ligado sobretudo ao sucesso e ao impacto da história filosófica, enquanto que o segundo momento é precipitado nas últimas décadas do século XIX pelos historiadores e coincide com o divórcio entre história política e história social.

Durante a segunda metade do século XX, quando o projeto biográfico parecia definitivamente abandonado, ele é retomado por alguns autores difíceis de classificar, porém ávidos por dar voz àqueles que a História com H maiúsculo havia silenciado. E é precisamente nessa ótica - distante da abordagem tradicional da história política - que pouco a pouco se dissipou a desconfiança a respeito da dimensão individual. Dimensão essa que deu lugar à memória dos marginais, dos perdedores, dos vencidos, ou ainda daqueles que, tão simplesmente, não eram contados (no despertar da história oral, dos estudos sobre cultura popular e da história das mulheres), incluindo-os progressivamente na historiografia através da reflexão biográfica.

A crise dos grandes modelos de interpretação, marxista e estruturalista, dentre outros, sugeriu a diversos historiadores que se interrogassem sobre a noção de indivíduo. Decepcionados e insatisfeitos com as categorias englobantes de classe social ou de mentalidade (mentalité), que reduziam o sentido das ações humanas ao efeito das forças econômicas, sociais ou culturais globais, mesmo os historiadores sociais começaram a refletir sobre trajetórias pessoais. Em pouco tempo, a dimensão individual transformou-se numa questão central e a biografia foi de algum modo democratizada: a questão não é mais hoje em dia o grande homem (cuja noção foi ostracisada, ou mesmo por vezes utilizada de modo pejorativo), mas sim o indivíduo comum. Essa transformação democrática mostrou-se, e mostra-se ainda, penosa.

Quais são os critérios que nós utilizamos para avaliar o peso dos fatos históricos, das práticas sociais, das relações emocionais? E, por outro lado, podemos compreender a evolução histórica a partir das experiências individuais? Começaremos por um exame da fronteira, difusa e instável, que separa a biografia da literatura e da história. A seguir, abordaremos as diferentes figuras biográficas elaboradas pela historiografia ao longo dos séculos XIX e XX (os heróis, o homem patológico, o homem particular, etc.).

Tradução livre de Rodrigo Bragio Bonaldo - Doutorando em História pelo PPG-História/UFRGS do original em Francês.

Conferência:

"Le moi de l' historien'
Dia: 10/10/2011
Horário: 14:30 h
Local: Pantheon do IFCH, Campus do Vale


MINI-CURSO:
'Historie et biographie'
Dia: 11/10/2011
Horário: das 10h às 12h e das 14h às 16h
Local: Pantheon do IFCH, Campus do Vale

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Dia em que o Vingador da Ilha encontrou o Poeta do Bonfa

Carlos Gardel devia estar cantando a plenos pulmões lá na eternidade. Onde os viajantes estão ébrios de enigmas e as almas são seduzidas por flautas que levam a abismos ilusórios, como bem lembrou o filósofo alemão. Assim estava configurado o dia em que Valdir Agostinho resolveu visitar Nei Lisboa. O vingador da Ilha, roqueiro intrépido, bruxo e aventureiro, iria ter com o niilista do Bom Fim, o poeta das baladas perdidas, de uma geração tão romântica quanto atormentada. "- A vida é mágica, na mais pura acepção da palavra" , insistia Valdir. Lembro assim daquele dia, com Agostinho cantando pelas ruas do bairro gaúcho. “Não quero dinheiro, só quero amar, só quero amar...". O tempo ainda não havia se precipitado, e Tim Maia - como tantos outros malucos - ainda curtia das suas.
Partimos da nossa Barra da Lagoa pela manhã, e o almoço aconteceu entre os precipícios de Torres. Depois de avistarmos águas gaúchas, num rasgo de visão, Valdir captou as vibrações de Nei, a perambular pelas ruelas toscas do interior do Bom Fim. Conversamos sobre os caras que nos fazem a cabeça, como Antônio Adolfo, Eliete Negreiros, Paulinho Nogueira....e os gringos também. Mas esquecemos de Allen Ginsberg, Woody Allen, Andy Wahrol, Marshall Berman, Lou Reed. Nada de Robert Raushenberg, Laurie Anderson, Debby Harry, Miles Davis, Truman Capote, nada disso. Acho que o novo belicismo ianque nos afastou de Nova Iorque. Queríamos los cucarachas. Queríamos Charly Garcia, Ruben Rada, Sivuca e Lô Borges. A vida levitava na mágica estrada, revivendo o sonho de velhos roqueiros e tantos loucos que andam pelas ruas de Buenos Aires e Montevidéu.
A Estrada do Mar e seus motoristas enigmáticos. Como aquele garotão de chapéu de cowboy, que tentou um racha conosco. Enfim, a infinita highway veio dar na capital sulista, último reduto do torrão brazuca antes das terras castelhanas. Finalmente o bairro, o alvo, reduto do poeta. As estrelas luzindo no céu. Nei demorou para abrir a porta, disse que estava imerso em um programa de computador, lá no quarto dos fundos. Abaixo de nós, o Parque da Redenção, cenário de noites mal dormidas, de batalhas campais entre os loucos e a polícia, reduto de velhos uivos. Nei e Valdir, é nessa hora que um amigo estende a mão. Declarações de admiração recíproca e já estamos de volta às ruelas do bairro. "Vou pedir pra você ficar, eu te amo, eu te quero bem..." Valdir iluminava com seus gestos o que ainda restava de uma década ingrata.