Há um
sentimento que me liga a Livramento: um sentimento de exílio. Amo essa cidade,
o cheiro desses campos me faz bem, a água é boa, nada como tomar chimarrão
embaixo de um cinamomo em qualquer lugar daí. Essa linha de fronteira é mágica,
há misturas de sotaques e costumes. Foi nessa linha que Aparicio Saravia caiu
em combate e embaixo de um guapuruvu centenário que fica na praça em frente à
prefeitura Hernandez concluiu o Martin Fierro. Há uma cidade com memória, com
história, com passado, mas parece que quase só isso sobrevive hoje: memória e
passado. A cidade do já teve, exilada para sempre de uma glória perdida.
Pouca coisa
vinga em Livramento, tirando um comércio sobrevivente e o melancólico papel de
ser apenas corredor de passagem ou dormitório para a onda consumista que leva
gente aos free-shops. O maior empregador do município é a prefeitura, o que já é por si só uma
distorção: poder público é para atender o cidadão, não um cabide de empregos. O
jogo político da cidade, assim, vira um toma lá da cá de baixo clero, onde em
geral gabinete de vereador vira uma central de favores a seus eleitores e
apaniguados. Enfim, a cidade navega na tábua rasa da política de resultados
paroquiais. A pequena política que apequena a cidade.
Faço essas
observações de longe porque sou um santanense exilado, como tantos da minha
geração. A falta de perspectiva dessa
cidade expulsa pessoas para tentar a vida em outros lugares. É grande a
diáspora de santanenses por esse Rio Grande e Brasil afora. Jamais conheci
algum que não declare um grande amor pela cidade, sob o amargo sabor de, de
certa forma, ter sido rejeitado por ela. Porque, parece, Livramento não espera
construir-se pela igualdade de oportunidades, pelo esforço coletivo, pela força
de novas idéias criativas. Livramento espera um salvador e um favor de quem
quer que seja para patrocinar a cidade como um mecenas. Talvez isso explique a
dificuldade de processos de construção coletiva. Em Livramento, as pessoas não
olham para o lado. Olham pra baixo.
Na
mentalidade do já teve, há uma quixotesca nostalgia de um frigorífico e um
lanifício que eram os grandes pais da cidade. Até hoje ouço pessoas medirem se
governos estaduais são bons ou ruins na medida em que “trazem alguma coisa pra
Livramento”. Ou seja, a cidade espera presente de um pai sempre – seja uma
empresa, seja um governo. Falta entender que a gente só amadurece quando anda
com as próprias pernas, quando se emancipa do pai, quando constrói a própria
história.
Um novo
ciclo histórico se inicia agora na prefeitura de Livramento. Como identidade
principal dessa nova administração, a insígnia de ser um governo municipal alinhado
com um Governo Federal que mudou a cara do Brasil: o país que olhava pra baixo
agora olha pra frente. Esse desvio do olhar, essa mudança de mentalidade, esse
resgate da auto-estima, talvez sejam o ponto inicial para Livramento mudar. E
se o sentimento de exílio, para muitos que se foram daí, é uma marca pessoal,
penso que ele se estende também coletivamente para uma cidade que parece
exilada de si mesma. Ou seja, da possibilidade de construir o presente, da indiferença do que pode melhorar no futuro.
Semana
passada, na sua coluna no jornal uruguaio Brecha, Eric Nepomuceno analisou os
dez anos dos governos do PT no Brasil. E
entre acertos e contradições, concluiu que numa coisa esses governos avançaram:
deram à maioria da população o direito de ser cidadão em seu próprio país.
Transportando para o campo pessoal, posso dizer que me sinto um cidadão neste
país, mas isso seria difícil de acontecer se vivesse na minha cidade.
Porque
queria estar em algum projeto construindo coisas ao lado de outras pessoas.
Porque não há mágica ou salvador da pátria ou da cidade. Dois verbos movem a
vida: trabalha e confia. Difícil trabalhar onde não há perspectiva, difícil
confiar quando o interesse público é um favor que se troca na esquina ou no
armazém. Livramento precisa pensar grande. No campo da política, saltar da
lógica dos favores e acertos para a elaboração de projetos e renovação da
matriz produtiva, aproveitando os recursos disponíveis a nível federal. Há um
governo que pede projetos. Há um país que pede campo para crescer. É isso que
pode incluir a cidade num outro caminho, abrindo cancha para uma mentalidade generosa.
E enfim Livramento se reconcilie consigo mesma. Uma cidade acolhedora, sem
exílios, sem exilados. Uma cidade altiva, olhos à frente, em paz com uma bela
história que ainda pode construir.
Renato Dalto
Jornalista, escritor, roteirista de TV e
cinema