quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Há 70 anos da chacina do Parque Internacional

 

*por Marlon Aseff

A noite de 24 de setembro de 1950 ficaria marcada na história da fronteira de Santana do Livramento e Rivera devido ao assassinato de quatro militantes comunistas, reunidos em frente ao Parque Internacional, na linha divisória que separa Brasil e Uruguai. O ato, de panfletagem e pichação, seria de afronta ao governo Dutra, de apoio aos candidatos apoiados pelos comunistas às eleições que se avizinhavam, de rechaço ao fascismo e contra o imperialismo, reforçando o teor da linha adotada pelo Partido Comunista Brasileiro, especialmente após o Manifesto de Agosto. Conhecido posteriormente como a chacina dos quatro As – o nome dos mortos iniciavam todos sob a letra A (Aladim Rosales, Ary Kulmann, Aristides Ferrão Corrêa Leite e Abdias da Rocha), o crime teve a participação ativa de policiais, pistoleiros e representantes de latifundiários, que faziam parte do grupo que chegou atirando, conforme a versão dos comunistas. À frente do bando agressor estavam o comandante da Brigada Militar em Santana do Livramento, Eleú Gomes da Silva; o comandante do Exército, Ciro de Abreu, o delegado da polícia civil, Miguel Zacarias, o advogado Mário Cunha e o inspetor de polícia Ário Castilhos, entre outros. [1] Ao final de menos de 15 minutos de confronto, jaziam os corpos dos quatro militantes assassinados, e um saldo de pelo menos mais oito feridos, entre eles o secretário do partido, Lúcio Soares Neto. 

A primeira investigação consistente sobre a chacina surgiu em 2006, através da dissertação de mestrado da historiadora Liane Chipollino Aseff.[2] A pesquisadora enfoca especialmente a vida cultural na fronteira de Santana do Livramento e Rivera entre as décadas de 1930 e 1960, e embora não fosse seu objetivo inicial, registra o crime do Parque Internacional como uma marca da violência que imperava no ambiente político de Santana, onde desde o início do século não era incomum a pistolagem, a mando de políticos e grandes proprietários de terras. Talvez o grande mérito da abordagem seja a construção dessa fronteira ao mesmo tempo envolta em jogos, cabarés e uma vida noturna repleta de atrações, contrastando com um setor subalterno da população, trabalhadores da fábrica ou dos campos, dependentes dos grandes mandatários, fossem fazendeiros, comerciantes ou políticos. Uma fronteira caracterizada como excludente àqueles que não possuíam poder ou riqueza, surge em depoimentos orais que assinalam por primeira vez o protagonismo de personagens que iriam ser abordados nas pesquisas seguintes. Conforme veremos, as causas do confronto recaem ora para a irresponsabilidade da direção do partido, que teria instado o ato, mesmo sob o clima aberto de conflito com as forças policiais e econômicas da cidade, ora a uma cilada armada deliberadamente por setores ligados ao Frigorífico, composta por forças policiais e pistoleiros.

O ex-operário do Frigorífico Armour, Hugo Nequesauert, fez questão de absolver a direção do partido em Santana, afirmando ter presenciado o telefonema em que Lúcio Soares Neto é instado a levar à frente o ato político pela direção do comitê estadual do PCB, então na clandestinidade. 

Em 1950, quando aconteceu a chacina eu não estava mais no Armour. Já tinha sido botado para a rua, por causa da greve que fizemos.  Havian sindicalistas,  casi  todos, mas era el partido que estava determinando os acontecimentos. Era época de eleição,  se supo que la policía ia tomar  represálias, e se consultó a Porto Alegre e yo era uno, solo yo,  que estava com Lúcio quando recibió ordenes de que podian hacer pichamento legalmente, que estava todo determinado de que no ia passar nada. Entonces aí se resolvió hacer, se convoco a la gente toda e se fez, se começo a pichar, quando vê, somos surpreendidos pela polícia. E chegou atirando, insultando e atirando e matando. E matou quatro!  Havia 15 o 17  personas quando mucho, no havia más...Unos dirigian el trabajo e otros executavan el trabajo. Estavam completamente desprevenidos, a arma deles era o pincel e a cal. [3]

Embora Hugo reforce a ideia de que o grupo estava desprevenido, relata a existência de uma retaguarda armada, que ficou encarregada da segurança. O iminente enfrentamento com a polícia e as forças mais conservadoras da cidade é usualmente relegado a um plano secundário, talvez para abrandar a responsabilidade pelo confronto que poderia ser imputado aos líderes comunistas, especialmente a Lúcio Soares Neto, que dirigia o ato. De fato, entre militantes comunistas remanescentes, como Jorge Ferrão, há uma velada culpabilidade a direção do partido pela atitude extrema do ato em frente ao parque, pois já existiria uma advertência, do chefe de polícia, de que não seriam toleradas manifestações do grupo comunista a uma semana das eleições. Lúcio ficaria com a imagem desgastada perante uma parte dos militantes, como Ferrão, que levantaram a versão de que ele próprio teria buscado abrigo atrás de um dos militantes, morto pela polícia, conforme versão que correu especialmente quando do julgamento dos envolvidos na chacina. Posteriormente, como veremos, foi descartada essa hipótese, embora persistam ainda hoje nos relatos orais uma reprimenda a atitude do secretário do partido, que por muito pouco escapou de ser morto no combate. Uma versão recorrente em outras narrativas[4], culpabiliza o delegado Miguel Zacarias de promover o confronto devido ao fato de estar disputando uma mesma mulher com Lúcio, hipótese passional que se demonstraria inverossímil, ao tentar isentar, ao menos sob essa alegação, o líder comunista das consequências de promover o ato ou não perceber que jogava os militantes em um enfrentamento aberto e previamente anunciado. Pouco antes do confronto, a escassos metros do local, em solo uruguaio, o pecuarista e militante Perseverando Santana e seu tio, Sona Santana, acompanhavam os preparativos de um pirão de cola, que seria usado para afixar cartazes nos tapumes que protegiam a obra do edifício Palácio do Comércio, ponto comercial que estava sendo construído bem em frente ao parque. Estavam no restaurante Doña Maria, de propriedade de Ari Kulmann, que seria assassinado logo em seguida. Conforme depoimento de Perseverando Santana, o clima de enfrentamento era de conhecimento de todos. Talvez por isso tenha se posicionado contra o ato, muito embora vencido pela direção local.

(...) sentados em uma das mesas do restaurante Doña Maria, Persevarando, Sona e Ari Kulmann, que não estava escalado para a pixação, conversavam e aguardavam. Perseverando lembra que, em meio a um ambiente tenso, o companheiro Ari disse: "Tchê, vocês não tem um revólver? Sim, porque hoje vai se dar alguma coisa". Kullman decidiu então participar das pixações e “tomou” o pincel de Magalhães, que estava já preparado para o serviço. Na praça estavam escalados para dar segurança ao grupo os companheiros  Holmos, Lucio Soares Neto, Hugo Nequesauert, Doralino Trindade, Pedro Perez, Santos Rodrigues e Amaro Gusmão.[5]

Entre os militantes da linha de frente, dois candidatos às eleições que se avizinhavam encabeçavam o ato: o vereador Solon Pereira Neto, ex pessedista convertido à causa comunista, jornalista incendiário e par de Lúcio Soares Neto nas causas operárias defendidas na Câmara Municipal, candidato a deputado estadual pelo Partido Republicano; e Aladim Rosales, reconhecido líder dos trabalhadores do frigorífico, demitido na greve do ano anterior, candidato a deputado federal. A versão de Perseverando Santana remete ao local do crime, por voltas das 22h. Conforme ele, o primeiro a ser baleado pelos policiais, que teriam chegado insultando e provocando o conflito foi Ari Kulmann.  Hélio Santana Alves levou um tiro nas nádegas. Aristides Corrêa foi baleado no peito. Santos Rodrigues também baleado, nas pernas, sobreviveu. Abdias foi atingido na boca e caiu mortalmente ferido dentro do Café Tupinambá, tradicional cafeteria localizada no Largo, exatamente em frente à calçada onde se deu o conflito. Aladim Rosales também morreria no local, com um tiro à queima roupa. Ari Kulmann ainda seria levado ao hospital, mas não resistiria. Finalmente, entre o grupo comunista, Lúcio Soares Neto escaparia ferido por entre o Parque, buscando refúgio na casa de Francisco Cabeda, localizada a poucos metros do conflito, no “lado uruguaio” da linha divisória.

Perseverando Santana rememorou, 64 anos depois dos acontecimentos, o contexto em que se deu o crime, afastando o partido de alguma responsabilidade pelas ações de confronto aberto, mas reforçando nas entrelinhas a culpabilidade de setores mais conservadores da cidade, especialmente os ruralistas e a direção do frigorífico, que não aceitavam os desdobramentos da organização dos trabalhadores, especialmente após a greve do ano anterior.

O partido foi cassado em 1947, depois cassaram os representantes do partido em 1948, entraram na clandestinidade partidária, então se usava as legendas de outro partido. Partido Socialista, Partido Republicano, e quando se aproximavama as eleições para presidente da república e o governo do estado,  em 1950,  lançamos pelo Partido Republicano o Solon Pereira Neto. Mas anterior a isso, a greve de 1949 no Armour teve grande repercussão, e os dirigentes dessa greve foram presos e até o Exército os levou para o quartel, o que não podia, e depois soltaram. Daí formou-se um clima muito grande sobre a atuação do partido, e o Armour tinha um poder muito grande, econômico, onde 50% dos impostos da cidade eram do Armour. E houve uma reunião na casa do Lúcio Soares Neto, que era o secretário naquela época, e de lá do comitê estadual veio a ordem, pode pintar que é legal. E era legal mesmo, era o Partido Republicano...Mas a polícia sabia que era o partido....ora...e tinha algumas opiniões, tava o Mário (Santana), e outros, inclusive parece que o Heron (Canabarro) também, que achavam que era provocar a polícia, que havia perigo. [6]

Hugo Nequesauert narrou sua versão do conflito, desabonando o clima de enfrentamento aberto que existia como consenso entre os militantes momentos antes do embate. Preferiu enfatizar uma situação de emboscada e legítima defesa.

Nós estávamos tranquilos, os três num acento no Parque, eu estava no meio, o Lúcio no lado uruguaio, mas no Brasil, e o Amaro (Gusmão) no lado de Santana. Todos aí tranquilos, e numa dessas o Lucio me diz, que é isso? Mas que é isso, barbaridade! E eu não entendia, até que me olhei para os lado e me dei conta e vi aquele grupo tremendo de gente, todos armados, bancando o valente, alguns com o chapéu bem requintado, pra frente, dispostos a brigar. E insultando. Comiunistas filhos deste, comunistas filhos daquilo..de tudo que é maldade diziam. E eu digo, são eles! E o Lúcio me diz, mas eles quem? E digo, eles, a polícia hombre (risos). Aí ele entendeu, se levantou, puxou o revólver, e marchou pela calçada. Eu fiquei no mesmo lugar, mas na calçada, onde eles iam passar. E “ansim” foi. O Lúcio se pegou a tiro com um policia lá adiante. Eu não vi nada disso, absolutamente nada dessa parte. Mas chegou a minha. Porque seguiram invadindo. Chegou a minha. E eu já estou atirando na montoeira, tirando vantagem. E não importa em quem pegue, que pegue em qualquer um deles tá bem pegado. Mas se terminaram as balas rápido, eram seis balitas. E eu tinha mais no bolso, porque eu sempre usava mais. Carreguei. Mas quando eu tô carregando o revólver dô uma olhada não?, porque tem que estar olhando. E o Solon vem com um boletim do pichamento, insultando a um polícia. Chamando de facista, disso e de aquilo, de corrupto, de todo lo que cabe. E eu baixei a cabeça pra carregar de novo. Porque cambiei de idéia. Digo, vou atrás do Solon...vão matar. Bem essas foram as minhas palavras. Termino de carregar, e olho e o Solon tá caído. Derrubaram ele à bala. Então eu cambiei de rumbo, eu ia prum lado, e resolvi passar a rua e acudir o Solon, que tava morrendo ou baleado, pelo menos tava caído...e atravessei a rua no meio das bala, brigando. [7]

Perseverando reforça o caráter arbitrário da ação e a prisão ilegal de Solon. Prefere retirar a responsabilidade de Lúcio Soares Neto pelo ato. Tampouco faz uma autocrítica sobre o rumo de radicalização extrema pela qual passava o partido naquele momento. 

O Solon ali tava fazendo propaganda. Não tava armado. Se ele tivesse armado....  tava fazendo propaganda como candidato. E quando veio a polícia, que esparramou, ele com um maço de jornais disse, vocês não respeitam, fascistas... e tal, como ele era,  temperamental bárbaro, o Solon. Ali ele recebeu uma pancada na cabeça e caiu... e quando vinha o policial para dar um tiro, qualquer coisa, o Hugo Nequesauert me disse, deu o tiro e feriu na perna, o Caetano. Compreendeu? E levantaram, o Solon foi preso. E colocaram ele no presídio. Ele era vereador. Mas sem partido, porque ele aderiu ao partido comunista... que foi outro erro. Como o Santos disse, ele não tinha que sair do partido, o PSD, ele tinha que ficar lá dentro. Mas, naquele sectarismo.[8]

Hugo não relata o suposto tiro no soldado Caetano. A partir do momento em que narra o momento no qual acode Solon,  leva o depoimento para a ocasião em que estaria no Parque, em meio a uma possível fuga, quando se encontra com o advogado Mário Cunha.

Me paro aí perto do Solon, e olho para a esquina de lá, e por lá só pode vim ... bem pela linha, tem um parquezinho ali que é metade Brasil, metade Uruguai, na mesma rua. E apareceu aquele homem grande gritando, em manga de camisa...(imita grunhidos de gritos), aqueles grito fantástico...reconheci...e chegou e me viu. E eu tô me retirando, dale... que que ia fazer.  E me apontou. E aí eu reconheço que era o Mário Cunha, e digo, vai me atirar...e não demorou nada, chegou perto, mas perto não?, relativamente cinco ou seis metros. E me começou a atirar. Mas mal, atirava. Eu notava, ele me apontava...eu tô aí, ele apontava aqui. E me olhava e atirava como se fosse em mim. Errado todo. Então eu calmei. Esperei que tirasse seis tiro. Quando ele tirou seis tiro eu avancei nele. Teria duas três bala ao máximo, capaz que no tuviera. Avancei nele para dar bem de pertinho, porque já nem sabia bem quantas bala tenia. E nos juntamos como el grando lua (?)  (risos), e quando ele viu o revólver, pequeno, 31, quando ele viu ele fez isso... com os braços levantou e me deu as costas...e eu ia dá-lhe igual, que cosa....(risos) e se desesperou, gritou...e o negro Ventura me grita do auto, não mate o homem seu, não mate. E eu vi que era a voz de um companheiro, grande companheiro, e obedeci.[9]

Assim como nos momentos decisivos que deflagraram a greve de 1949 no frigorífico, o ano de 1950 e especialmente os meses que antecederam a chacina ficariam marcados pelo tom das críticas comunistas sobre a ação deletéria do imperialismo, com os frigoríficos estrangeiros estabelecendo verdadeiro terror sobre a economia nacional.  O aumento crescente do preço da carne e a escassez do produto no mercado nacional, ofertado de maneira precária e de má qualidade, denunciava o jornal Voz Operária, estaria diretamente atrelado à ação nefasta dos grandes frigoríficos, que penalizavam os pequenos produtores e destinavam o melhor da produção a um esforço de guerra norte-americano na Coréia e a outros países sob ditaduras.

 

*Este texto é uma versão reduzida e adaptada de parte de um capítulo da tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, intitulada “No portão da fábrica -  trabalho e militância política na fronteira (1945-1954)”.

*foto: Ruínas do Frigorífico Armour em Santana do Livramento

 



[1] Depoimento de Perseverando Santana concedido a Marlon Aseff em 22 de janeiro de 2012. Santana do Livramento.

[2] CHIPOLLINO ASEFF, Liane. Op.Cit. Pgs. 164-175.

[3] Hugo Nequesauert. Entrevista a Marlon Aseff em 23 de agosto de 2011, Santana do Livramento.

[4] VARGAS DE SOUSA. Oneider. As lutas operárias na fronteira: a chacina dos quatro “As” (Livramento – RS/1950). Dissertação de Mestrado. UFSM. 2014.

[5] ASEFF. Marlon. Retratos do exílio: experiências, solidariedade e militância política de esquerda na fronteira Livramento/Rivera (1964-1974). Dissertação de Mestrado. UFSC. 2008.Pg

[6] Perseverando Santana. Depoimento ao autor em Conversas com Perseverando, documentário, 2013.

[7] Hugo Nequesauert. Depoimento ao autor em Conversas com Perseverando, documentário, 2013.

[8] Perseverando Santana. Depoimento citado.

[9] Hugo Nequesauert. Depoimento citado.