terça-feira, 24 de maio de 2011

Jornais do século XIX viram lixo em Pelotas

Há pouco mais de 15 dias, em fins de abril/inícios de maio, a cidade de Pelotas, que até agora tinha se caracterizado por buscar a preservação da história e da cultura da cidade e do país como um todo, foi palco de uma situação completamente absurda e injustificável: a direção de sua biblioteca pública, que é gerida por uma associação privada, simplesmente enviou para reciclagem, uma parte importante da história da cidade e da região!

Livros, jornais, diários e mais monografias e documentos impressos (não se sabe exatamente o total do que foi descartado, nem quem definiu o que seria jogado fora), mas enfim, o suficiente para encher mais de um caminhão pequeno, foi enviado para recicladores. E só não foi parar no lixo mesmo porque, num episódio rocambolesco e pouco explicado, foi “salvo” por um dono de sebo, que imediatamente o comprou e o pôs a venda como uma mercadoria qualquer. Alguns desses exemplares ainda se encontram em sebos da cidade e podem ser conferidos até pelo twitter de alguns pelotenses. Seguramente, este dono de sebo deve ter ampliado seu patrimônio em muito, devido apenas ao que, pelo alto, se soube que foi descartado.

Entre eles, por exemplo, uma das únicas, senão a única coleção do jornal A Federação do ano de 1904. Vários outros anos inteiros deste jornal também foram literalmente jogados fora, sob a justificativa de “estarem duplicados”. Mas a catástrofe cultural vai muito além, pois todos os jornais encadernados, que eram duplos, e que se encontravam no porão da biblioteca, como os jornais Correio Mercantil, Opinião Pública, Diário Popular, também tiveram o mesmo fim. Estes são alguns dos jornais pelotenses mais importantes do XIX e XX séculos, e ficamos agora reduzidos apenas a sua coleção em uso, e cuja digitalização tem sido protelada por interferência direta da própria diretoria. E o que se fará quando estes jornais, pelo uso, se desmancharem? Chorar, pelo visto.....

O raciocínio simplista e redutor de que “eram duplos” e poderiam ser descartados, não convence ninguém, pois todos podem se perguntar por que não foram trocados com instituições congêneres, ou doados para uma outra instituição do estado, como reza seu estatuto de 1991, que em seu artigo segundo, item b), diz que a biblioteca “poderá permutar livros e objetos com outras instituições que estejam de acordo com as suas finalidades”.Quanto a alguns estarem em mau estado, ora, para quem conhece, sabe que há várias técnicas de recuperação de documentos que poderiam ser tentadas, com um pouco de esforço na busca de financiamento.

Esta mensagem, além de denunciar este fato, pretende provocar alguma reação, por parte não só da comunidade técnica e acadêmica interessada na preservação da história do país, mas dos próprios pelotenses, que até agora estão assistindo esta situação estupefatos, mas em silêncio, um silêncio que pode passar por aprovação e gerar a reincidência deste tipo de atitude.

Entendendo-se que o direito à memória é um direito de todos os cidadãos e que a proteção e guarda de um bem patrimonial é dever de um Estado democrático, considera-se inadmissível que uma política arbitrária de descarte esteja sendo praticada justamente por uma instituição destinada a preservação da memória e disseminação da cultura.

Texto da professora Beatriz Ana Loner, do Departamento de História e Antropologia - UFPel
Repasse, ajude a divulgar esse crime contra o patrimônio cultural de nosso país!

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Na Amazônia, índios preparam-se para as grandes questões globais


Acabo de retornar de estadia de campo na Amazônia e fico feliz ao constatar que os índios estão cada vez mais dominando novas tecnologias e com uma mentalidade 20.11, preparando-se para participar das grandes questões globais da segunda década do século 21. Exemplos: meu aparelho celular não funcionava, pois na cidade de Atalaia do Norte só há uma operadora. Quem me salvou ao me emprestar seu aparelho novinho foi um garoto matis - considerado pela "regra de parentesco incorporador de antropólogos" meu irmão indígena. Fui surpreendida pelo lindo ringtone com um canto de pássaro amazônico que ouvia ao despertar quando morei na aldeia. "Uau, Makwanantê, que lindo. Como gravou o canto desse pássaro?" "Baixei via Bluetooth de graça no cybercafé da cidade." Ok, eu também esqueço às vezes que trabalho com índios amazônicos versão 20.11, os magníficos matis, um povo de língua pano que vive na Terra Indígena Vale do Javari, segunda maior do País, com 8,5 milhões de hectares.


No dia seguinte pedi a outro jovem matis um carregador de bateria para minha câmera digital e ele trouxe um carregador universal made in China comprado na Colômbia (fronteira próxima). Serve para qualquer tipo de bateria e dribla a imposição de empresas como Sony ou Motorola com modelos que nos obrigam a comprar mil traquitanas. Os índios 20.11 sabem escolher o que lhes dá autonomia mesmo entre as quinquilharias chinesas e surpreendem aqueles que, no Brasil "metropolitano" (para usar um termo cunhado por Manuela Carneiro da Cunha), acham que os indígenas amazônicos vivem na Idade da Pedra ou num paraíso (ou inferno) pré-industrial. Os ameríndios com quem tenho o prazer de conviver podem estar esquecidos nas políticas governamentais, mas se movimentam no universo de questões globais como mercado de crédito de carbono e uso de tecnologia para melhorar a vida em suas comunidades. Alguns estão na universidade e serão em breve professores universitários. Afinal, índios não ficam em cristaleira de museu ou apenas decoram pôster festivo da brasilidade para fazer jus ao logo federal "Brasil, país de todos". Os índios seguem sendo bem índios mesmo portando seus celulares, editando filmes, torcendo pelo Flamengo. E continuam necessitando demarcar terras, especialmente em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. Para isso mesmo, precisam e gostam de tecnologia, para estarem plugados no mundo, como você e eu.

Em Manaus, conheci a vice-coordenadora da Coiab (Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), Sônia Guajajara. Ela ficou famosa na COP-16 (última conferência da ONU sobre mudanças climáticas), em Cancún, México, ao entregar o troféu "motosserra de ouro" à senadora Kátia Abreu - prêmio dado aos que aumentam o desmatamento na Amazônia. Como Sônia, há outros índios que aprenderam o glossário da "economia mundial ambiental", sabem o que é Redd (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação). Ou seja, estão afinados com a economia ambiental e combatem ideias australopitecas dos defensores da reforma do Código Florestal.

Graças aos índios brasileiros é que a floresta ainda está em pé, conforme demonstram imagens do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Vizinhos dos matis, os índios maiorunas vivem em ambos os lados da fronteira do Peru e do Brasil e, nos últimos anos, vêm migrando para nosso País por causa da atuação de empresas multinacionais que concessionaram áreas em seus territórios com o aval do governo do Peru. Os mesmos maiorunas, em 2003 e 2004, chamaram a atenção das autoridades para o contrabando de madeira realizado por peruanos. Os Estados do Pará, Mato Grosso e Rondônia, sempre citados como destruidores do meio ambiente, só apresentam indicadores positivos devido às terras indígenas. Os índios também denunciam as rotas do narcotráfico em seus territórios.

Além desses serviços ao País, os índios também investem em economia criativa. Querem que sua juventude aprenda a utilizar telefones celulares, laptops e câmeras de vídeo para que eles próprios tenham domínio sobre a produção (e também o consumo, em alguns casos) da indústria da criatividade, que os jovens indígenas façam seus próprios filmes, vendam CDs de suas músicas, tenham eles próprios controle sobre seus bens imateriais que por tantos anos foram produzidos e vendidos por estrangeiros ou outros brasileiros. Os índios têm todo o direito de se tornarem big players na indústria do entretenimento. Como demonstram sucessos como o filme Cheiro de Pequi, da Associação Indígena Kuikuro e do Vídeo nas Aldeias, que ganhou o prêmio de melhor curta-metragem em Montreal, no Canadá. Chegará logo o dia em que teremos cineastas indígenas concorrendo em Cannes.

É bom lembrar, porém, que nem tudo na realidade indígena são cantos de pássaros e tecnologia. No Javari, cerca de 80% da população indígena está contaminada por hepatites virais que provocaram a morte de 300 pessoas nos últimos dez anos. Há alguma esperança com a nova Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) de que haja atendimento permanente para as 55 comunidades. A Funai, em processo de reestruturação, havia decidido desmontar a administração regional na cidade de Atalaia do Norte, deixando os cerca de 3.800 índios que moram na Terra Indígena sem uma base administrativa próxima. Parece que quem vive em Brasília olha o mapa do Javari apenas pendurado na parede e, por isso, pensa que os rios do Javari correm do norte para o sul! Porém os rios do Javari correm todos na direção norte e oeste para formar o Solimões e, a partir de Manaus, o Amazonas. Certamente, os índios terão muitos direitos a exigir nos protestos do Abril Indígena, programados para ocorrer em maio em Brasília.

As grandes questões globais estão na Amazônia e os índios, melhor do que a maioria dos brasileiros, já estão se preparando para lidar com esse mundo 20.11 - de preocupações com energias limpas (pós-Fukushima), onde os países ricos pagam aos "emergentes" para que mantenham suas florestas em pé, onde as tecnologias made in China tomam o lugar das que fazem carregadores não universais, onde quem tem força de sobrevivência é quem vai vencer e deixar para trás os acomodados. Os índios brasileiros já mostraram que vieram para sobreviver. Desde 1500 têm conseguido se manter vivos, o que em si, já é um feito e tanto. Agora, parece que vão nos ensinar o que fazer para sermos um país rico em biodiversidade, em captura de carbono e em economia criativa. Tenho tentado acompanhá-los e aprender com eles.

* Artigo de Barabara Maisonnave Arisi, doutoranda do Programa de Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Estagiou no Institute of Social and Cultural Anthropology da Universidade de Oxford. Imagem: Índios Matis, em fotografia premiada, de Barbara Arisi.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Nildo Ouriques: "No Brasil, a democracia está cativa"


Aos 52 anos, Nildo Ouriques é doutor pela Universidade Nacional Autonoma do México. Ele também presidiu o Instituto de Estudos Latinoamericanos (IELA) até 2009. Nascido em Joaçaba, jogava pelo time de futebol da cidade, que pagava na época o equivalente a três salários mínimos. Aos 18 anos veio para Florianópolis estudar e trabalhar no Avaí. Acabou se envolvendo com um grupo de teatro dirigido por Carmen Fossari, o que levou a deixar de lado o futebol. As artes também ficaram em segundo plano quando começou a atuar politicamente na universidade. Em 1981, presidente do DCE, lutou contra a
ditadura militar, cujo aprendizado ele garante ter fortalecido sua profissão e intelectualidade. Durante o governo do prefeito Edson Andrino (1986-1988), trabalhou na Secretaria de Administração de Florianópolis. Em maio de 1988, foi morar no México para fazer mestrado e doutorado. Lá trabalhou como tradutor em alguns jornais, nos quais escrevia colunas sobre economia internacional. Atualmente participa do programa de rádio Faixa Livre, na Bandeirantes do Rio de Janeiro, mantido pela Associação de Engenheiros da Petrobrás.

De que forma se dá o eurocentrismo no estado de Santa Catarina, tanto na imprensa como na cultura?

Em Santa Catarina se alimenta o mito de que o estado é quase europeu, sem os desequilíbrios brasileiros. As culturas negras e indígenas são ocultadas e quando aparecem são como problema social. Este estado é tão atrasado que não tem sequer uma Defensoria Pública. Em relação à imprensa, os meios de comunicação têm um monopólio mais acentuado ainda, que é a RBS. É tão monopólio que tem uma cátedra no Curso de Jornalismo. Isso me parece um escândalo.

Qual sua opinião sobre os embates do governo da Argentina com a imprensa, principalmente com o jornal Clarín, considerado um dos mais críticos?

O governo argentino reconheceu que o peso do Clarín era superior aos partidos políticos e que o processo de erosão da legitimidade dos partidos cedeu espaço para que alguns monopólios de rádio, televisão e jornais se tornassem partidos políticos. Primeiro, o Clarín não respeitava a legislação a qual estava submetido. Segundo, o jornal tem que ter uma linha editorial independente, que não se trata de não poder fazer crítica ao governo, mas também não pode fazer oposição. E, terceiro, o governo criou uma nova lei, a Ley de Medios, que implica na efetiva democratização dos meios de comunicação, o que despertou a ira dos demais países, inclusive do Brasil. Aqui, a democracia está cativa. Não se pode ter um sistema político democrático, pois a mídia está concentrada nas mãos de poucos.

Qual sua opinião sobre a democratização da comunicação?

Não há nenhum processo de democratização da comunicação no Brasil. Em primeiro lugar, é um poder monopólico, de péssima qualidade, como por exemplo o Jornal Nacional, que deveria escandalizar a todos nós. Segundo, o Governo Lula não deu um passo no sentido de democratizar os meios de comunicação, não restringiu poderes inaceitáveis de monopólios, como também não estimulou redes alternativas. Não entendo por que não regulamentar e ampliar o poder das rádios comunitárias. O sistema capitalista preza pela concorrência, então por que não instituir um sistema competitivo de comunicação? A radical democratização da comunicação é necessária, mas não virá com esse governo.

Durante o Governo Lula houve uma aproximação entre o presidente brasileiro, o da Venezuela, Hugo Chavez, e o da Bolívia, Evo Morales. Será que tal esforço será mantido no governo da presidente Dilma Rousseff?

No primeiro governo de Lula houve um distanciamento claro. Um processo de integração
mais forte nos países vinculados à ALBA, a antiga Alternativa Bolivariana das Américas, está em curso na América Latina. O Itamaraty, seguindo as orientações de Washington, descartou essa hipótese e a hostilizou. No segundo mandato, a integração latinoamericana começou a figurar o discurso da diplomacia brasileira, mas assumiu a forma de subimperialismo, em que o importante era vender produtos e serviços na AL.
As grandes empresas brasileiras, estatais e privadas, começaram a atuar, ou seja, o discurso da integração ganhou uma dimensão econômica concreta. O Governo Lula também sabia que milhões de pessoas observavam as transformações na Bolívia, Equador e Venezuela com extremo apreço, razão pela qual não era seu interesse hostilizá-las. Quem hostilizava eram os parlamentares, os senadores. Os empresários queriam vender. A mídia era contra, os intelectuais [de direita] eram contra, mas os empresários não. O que aconteceu foi que o Estado brasileiro se aproximou, impedindo que o Governo Lula aparecesse
na política exterior como conservador. Então houve certo interesse pelos governos latinoamericanos de orientação nacional popular, e estes, por sua vez, tinham interesse em serem amigos do Lula. Mas a diplomacia brasileira seguiu dentro de uma orientação ainda permitida por Washington. Nem Lula nem Dilma praticaram uma política soberana. O Brasil não pode ignorar o tema da integração bolivariana, mas a burguesia não quer, pois é uma integração dos povos. O Itamaraty é o órgão brasileiro mais escandalosamente eurocêntrico e colonialista, uma diplomacia que não serve aos interesses
brasileiros, e sim aos interesses de Washington, potências dominantes e da Avenida Paulista.

Por que a América Latina não aparece de forma positiva na imprensa brasileira?

A AL não existia na imprensa brasileira há dez anos. Ainda é um desastre. Desastre
porque ela está orientada por uma tríplice determinação a partir da Europa, de forma que a imprensa brasileira não consegue perceber a AL desde suas entranhas, seus intelectuais. O segundo aspecto é que a imprensa está orientada por uma dose de colonialismo. Os três séculos de colonialismo e os dois de subdesenvolvimento determinam uma observação da imprensa sobre o fenômeno latinoamericano que está marcado pela imprensa brasileira. O terceiro ponto é que os que escrevem sobre a AL a desconhecem. O jornal Folha de S. Paulo apenas recentemente tem um correspondente em Caracas. E o máximo que os grandes jornais brasileiros cobriam era a Argentina, a exemplo de Flávio Tavares. É uma característica nas redações que os repórteres não saibam onde fica Belize, o que é o conflito entre Peru e Equador, que ignorem a cultura latinoamericana. Há essa tríplice determinação que é perversa. O jornalismo brasileiro atua numa perspectiva de Washington. Os líderes das nações imperialistas, por exemplo, aparecem na imprensa brasileira como homens genuinamente preocupados com o futuro da humanidade e nunca interessados exclusivamente em manter ou conquistar mais poder para suas próprias nações. Mas é impossível ler em um jornal brasileiro o adjetivo nacionalista para o primeiro-ministro francês ou para o presidente dos EUA, porém é fácil encontrá-lo quando se trata de Evo Morales, Rafael Correa ou Hugo Chávez. Neste caso, fica claro como a ordem unida se faz com perfeição no exercício da liberdade de imprensa: “o presidente nacionalista Evo Morales disse....”, “o ultra-nacionalista Hugo Chávez ordenou...”. Enfim, o tratamento jornalístico dá a impressão que o nacionalismo é uma doença tropical, impossível de encontrar-se nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França.
Entrevista concedida a Úrsula Dias, que gentilmente nos cedeu este material. Publicada no número de maio de 2011 do jornal laboratório Zero, produzido pelo Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Foto: titaferreira.multiply.com