Lutas operárias na fronteira: as mulheres na linha de frente
A prisão de Hélio Santana Alves após se recuperar do tiro
que levou no confronto do Parque Internacional, e seu encaminhamento ao cárcere
em Montevidéu, foi um fator determinante para salvar a sua vida. Se fosse entregue
à polícia brasileira, ninguém poderia prever os desdobramentos que poderiam ocorrer,
dado a tensão extrema daqueles dias e a caça deliberada aos militantes comunistas.
O que poucos sabem é que por trás de toda a operação de salvamento de Hélio esteve
presente sua esposa, Celina Perez (foto), que como parte expressiva das mulheres militantes
foi invisibilizada da história “oficial”, seja do partido ou das esquerdas em geral.
Em uma sociedade estruturalmente machista, a atuação das mulheres na política, ou
mesmo sua mera influência, conforme assinalou a historiadora Michelle Perrot, é
nada menos que temida:
O lugar das
mulheres no espaço público sempre foi problemático, pelo menos no mundo ocidental,
o qual, desde a Grécia antiga, pensa mais energicamente a cidadania e constrói a
política como o coração da decisão e do poder. (...) Prende-se à percepção da mulher
uma ideia de desordem. Selvagem, instintiva, mais sensível do que racional, ela
incomoda e ameaça. (...) Elas inquietam os organizadores das cidades, que veem nas
multidões onde elas estão presentes, o supremo perigo.[1]
Dentro de um contexto de invisibilidade trafegaram boa
parte das militantes fronteiriças, relegadas a apêndices das narrativas e culturalmente
enquadradas na camisa de força patriarcal que as obrigava a conciliar a atuação
política nos seus diversos níveis ao suprimento da vida doméstica e aos deveres
do privado, espaço a elas relegado. No momento da prisão de Hélio, Celina teve de
agir rapidamente para que o companheiro não fosse entregue aos algozes. Sérgio Alves,
filho do casal, rememora:
A minha mãe,
no mesmo dia em que meu pai ficou baleado no Uruguai procurou um deputado que era
de Rivera, chamado Maximiliano Luz, e esse homem constatou que a prisão de meu pai
não estava registrada em lugar algum. Então minha mãe liga para um advogado do partido
chamado Garcia Moyano. E ele liga para cá e a polícia diz que não havia preso nenhum.
Quer dizer, estavam armando para passar ele para o outro lado, e iam matar. Então
esse advogado disse, não, há um preso político aí chamado fulano de tal e amanhã
eu estarei aí para defendê-lo. E talvez isso tenha feito o comissário não ter entregue
ele.[2]
Para Celina Perez, a parceria com o companheiro e o esforço
para a sustentação dos filhos sempre foi a tônica de uma vida de lutas. Quando da
prisão de Hélio, teve de manter a um alto custo pessoal a pequena engarrafadora
de bebidas que o casal possuía no bairro da Tabatinga. A camioneta usada para as
entregas fora sumariamente confiscada pela polícia e jamais retornou. Celina teve
de trancafiar em um porão alguns barris de anis, que usou para fabricar novas bebidas
e continuar o negócio na ausência do marido. Nos anos que viriam a luta não seria
menos intensa. Pouco mais de duas décadas depois, Celina veria o filho Sérgio ser
preso e torturado durante a ditadura uruguaia. Frente ao poder avassalador dos novos
tiranos, reuniu um grupo de mulheres que enfrentava o dia a dia inquisitorial dos
militares e acompanhava de perto os deslocamentos para outras cidades e quartéis
dos filhos prisioneiros. Essa luta foi de fundamental importância para que uma série
de militantes simplesmente não desaparecessem, como ocorreu com outras duas centenas
de pessoas, além de mais de 100 mortos nas prisões uruguaias.
Assim como Celina Perez, a presença de mulheres fronteiriças
como Gecy Rodrigues Soares, filha de Santos Soares e esposa de Francisco Fagundes
Lima, de atuação intensa no acolhimento de exilados brasileiros durante a ditadura
iniciada em 1964, precisam ser melhor iluminadas em pesquisas futuras. O que dizer
da relevância de uma mulher como Maria Rodríguez, esposa de Santos Soares? Aguarda-se
uma produção historiográfica que se debruce com o tempo necessário na fundamental
atuação dessas mulheres, assim como outras citadas nesta pesquisa e que dentro de
seus espaços locais dialogavam, de forma consciente ou não, com as ideias de ativistas
fundamentais como Leolinda de Figueiredo Daltro, Olga Benário, Bertha Lutz, Lila
Ripoll, entra tantas outras.
As ações mais visibilizadas das ativistas ligadas de alguma
maneira ao PCB podemos encontrar em registros esparsos dos jornais do partido e,
especialmente, nos relatos da Memória. A trajetória de Placelina Santana, por exemplo,
esposa do líder Jovelino Santana, nos chega através do olhar de sua filha Olga.
Conforme ela nos mostra, a casa da família, no bairro Industrial, era ponto de encontro
e local de reuniões onde compareciam Renée Canabarro, Teresa Nequesauert, Francelina
Cabeda, Virginia Apoitia. Olga Santana recorda-se que nesses momentos as mulheres
reuniam-se à parte dos homens, e os assuntos discutidos giravam em torno das ações
partidárias para arrecadação de fundos, mesmo que nem sempre a política fosse a
tônica:
Elas vinham
para cá, faziam chazinho, cafezinho, e conversavam, mas acredito que elas não conversavam
assunto de política. Tinham umas que eram bem politizadas. Diferente da minha mãe,
que meu pai sempre foi muito machista nesse sentido, então mulher não se mete em
política. Mas as outras mulheres falavam e minha mãe assimilava muito bem. E faziam
chás dançantes, para recolher algum dinheiro para o partido. Então elas eram encarregadas
dessa parte social, para auferir algum dinheiro, para que eles pudessem manter o
jornalzinho, a compra de livros... Na outra sala ficavam os homens, meu pai, o Solon,
o Heron...[3]
Renée e Teresa Nequesauert, esposa de Solon Pereira Neto,
eram das mais atuantes na liderança da ala feminina do partido. Na ocasião da chacina,
Heron foi detido ao tentar interceder como advogado, denunciando a arbitrariedade
e inconstitucionalidade da prisão de Solon. O ambiente exalava a tensão dos recentes
assassinatos e Renée organizou a ala feminina, reuniu as viúvas, e se encaminhou
ao quartel onde estavam detidos Solon e Heron, exigindo a soltura, falando em nome
das famílias dos mortos e em desagravo ao crime. Foram recebidas pelo comandante
Ciro de Abreu. Marlova Canabarro recorda de sua mãe narrar o áspero diálogo que
manteve com o militar: “O Ciro de Abreu disse, ‘É, foram vocês que inventaram essa
tal democracia, no que minha mãe retrucou, general, democracia não se inventa!”.
Para Marlova, embora os militantes e simpatizantes do partido muitas vezes tivessem
origens sociais distintas, pelo menos na sua casa os grupos não eram exclusivos,
separados entre “intelectuais de um lado e operários de outro”. Ela acredita que
para Renée e Heron não havia a distinção, muito embora circulassem também pelos
meios pequeno-burgueses e de fazendeiros mais abastados.
Lá em casa
desfilava gente, não tinha isso... e nas reuniões ia todo mundo. A mãe era uma pessoa
que transitava muito dentro do partido e era extremamente coerente. Ela foi responsável
pelos primeiros filmes italianos que meus amigos viram no cinema, e depois iam lá
para casa discutir, tudo por influência da minha mãe. Ser comunista e participar
de uma sociedade pequeno burguesa era complicado também, mas nunca houve... eu fui
debutante, fui tudo... bailes... Tinha descriminação na escola primária... do tipo,
minha mãe disse que teu pai é comunista.[4]
Mariana de Rossi Venturini, ao analisar as conferências
dos comunistas de 1956 e 2007 que trataram da questão da mulher, aborda a tradição
do feminismo marxista e seus desdobramentos entre os militantes brasileiros. Desde
a elaboração de Engels e Marx, segundo a qual somente em uma sociedade sem divisão
social e sexual do trabalho seria possível a liberação dos trabalhadores e da exploração
de classe, a questão rondava as pautas da esquerda. Conforme a socióloga,
Os comunistas
passaram décadas negando e criticando o “feminismo”, mesmo nos momentos em que eles
próprios defendiam reinvindicações específicas das mulheres. A ideia de “feminismo”
se confundia com a ideia de “feminismo liberal” ou “feminismo burguês” e, só muitas
décadas mais tarde, mais precisamente a partir da década de 1970 em diante, com
o avanço dos debates entre feministas de esquerda, é que se faria a distinção entre
as correntes liberal e socialista e o termo “feminismo” passa a designar também
a luta pela emancipação das mulheres no âmbito das esquerdas partidárias, incluindo
muitos partidos comunistas.[5]
Com o final do Estado Novo, o movimento das mulheres comunistas
ganha um novo impulso, amparado no fortalecimento das organizações de base e a criação
de comitês populares de mulheres em todo o país. Em maio de 1949, realiza-se, no
Rio de Janeiro a 1ª Conferência Nacional das Mulheres, onde foram debatidos os
caminhos para se assegurar mais direitos para as mulheres brasileiras. A conferência
denunciava fortemente a situação de fome e miséria do povo, contudo, apontava que
era ainda mais penosa no país a situação das mulheres. Conforme Venturini, a
tomada de consciência pelas mulheres de que sofriam duplamente uma exploração
social foi gradual e consistente, e “ainda que não houvesse clareza nas motivações
ou mecanismos pelos quais isso ocorria, já era clara a percepção de que eram mais
atingidas pela pobreza, exploração, falta de liberdades e de direitos”.[6]
Nesse período, a imprensa comunista celebrava a participação
feminina cada vez maior nas ações do partido, especialmente nas campanhas pela Paz,
contra as armas nucleares e contra o envio de tropas brasileiras para a Guerra da
Coréia. O Voz Operária registrava a batalha
pela maior visibilidade das trabalhadoras e a extrema dificuldade que as mulheres
passavam no ambiente de fábrica. No Armour, a mão de obra majoritariamente feminina
estava concentrada nos setores da Picada, Latoaria e Rotulagem. A situação da mulher
na fábrica é enfocada pela ativista feminista e colaboradora do Voz Operária, Ginia Machline, em uma edição
de agosto de 1949. A nota faz um chamamento à participação da mulher na luta pela
paz e contra a iminente guerra imperialista e reforça a situação dos frigoríficos
gaúchos e especialmente o Armour como exploradores contumazes da mão de obra feminina.
Um exemplo
dessa situação da mulher trabalhadora é dado pelas operárias dos frigoríficos do
Rio Grande do Sul, que ganham salários na base de Cr$ 150,00, 230,00 e 420,00 –
que entrando 5 minutos atrasadas não ganham o descanso semanal, que não tem assistência
médica e hospitalar, que não tem creches nos locais de trabalho para deixar seus
filhos com outras crianças (prejudicando-as em seus brinquedos infantis, pois tem
que cuidar de seus irmãozinhos) isso quando não tem de deixá-las fechadas em casa,
sozinhas, outras entregues a vizinhos, mediante pagamento, no que dispende quase
todo o salário. São obrigadas a levar comida para o trabalho, pois os horários são
apertados, com uma hora para o almoço, incluindo (...) comida péssima e intragável
por preços pouco acessíveis, os “gringos” exigem pagamento à vista, pois os operários
e operárias, além de serem vilmente explorados, não merecem créditos dos americanos
fazedores de guerra.[7]
A denúncia estampada no jornal não poupa o governo Dutra,
um inimigo declarado e a ser combatido, pois estaria levando o país à bancarrota,
através de acordos com os “traficantes da guerra”, Estados Unidos e Inglaterra.
A exploração das mulheres nos frigoríficos Armour, Anglo e Swift, aponta a reportagem,
“é medonha”. De acordo com os historiadores Augusto Buonicore e Fernando Garcia,
a organização feminina entre os comunistas teve um grande impulso com a fundação
do jornal Momento Feminino, em julho de 1947, sob a direção de Arcelina Mochel.
Nesse período o jornal “tornou-se um instrumento agregador e organizador das mulheres
comunistas e progressistas brasileiras (...) impulsionou a criação de comitês femininos
em bairros e sindicatos. Num artigo no Momento Feminino fala-se na existência de
43 núcleos funcionando (...) O resultado de todo esse trabalho foi a criação da
Federação de Mulheres do Brasil (FMB) em 1949”.[8] A entidade
congregou organizações femininas de 11 estados e foi responsável pelas pressões
que resultaram na criação da Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento),
durante o governo Vargas. Além das campanhas pelo Petróleo, contra as armas atômicas
e o envio de soldados brasileiros para a guerra da Coréia, as mulheres organizadas
também foram fundamentais para as vitórias obtidas na greve dos 300 mil, que sacudiu
a capital paulista entre março e abril de 1953. No entanto, a organização das mulheres,
especialmente ligadas ao PCB, teve uma retração a partir do final dos anos 1950
e a crise interna do partido. O momento de auge que iniciou com o final do Estado
Novo e se consolidou na década seguinte não se repetiria, sendo fortemente abalado
com a imposição de uma nova ditadura em 1964.
* Fragmento do livro "No portão da fábrica - uma história social da fronteira (1945-1955)"
de Marlon Aseff
[1]
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Unesp,
1998, p. 8-9.
[2]
Sérgio Alves. Entrevista ao autor. Santana do Livramento, 25 de agosto de 2019.
[3]
Olga Santana, entrevista citada.
[4]
Marlova Canabarro, entrevista citada.
[5]
VENTURINI, Mariana de Rossi. Comunistas do
Brasil e a emancipação da mulher: as conferências partidárias de 1956 e 2007.
2018. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Unicamp, 2019, p. 12, 15, 35.
[6]Idem,
p. 53.
[7]
“A Mulher Operária na Luta pela Paz” – Ginia Machline. Voz Operária, Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1949, p. 3.
[8]
BUONICORE, A.; FARIA, F. G. As mulheres e
os noventa anos do comunismo no Brasil. Portal do Centro de Memória Sindical,
2022. Disponível em: https://memoriasindical.com.br/formacao-e-debate/as-mulheres-e-os-noventa-anos-do-comunismo-no-brasil/.