quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

III Feira Binacional do Livro: Êxito e afirmação das Charlas


A terceira edição da Feira Binacional do Livro, na fronteira entre Santana do Livramento e Rivera, sacramentou a eficácia da charla como uma forma genuína de encontro entre brasileiros, uruguaios e fronteiriços. Em quatro dias de indisfarçável euforia, a Feira Binacional reuniu algumas das melhores cabeças da grande região hermana, que vai de Florianópolis a Montevidéu, com rastros na Paraíba, Rio de Janeiro, Santa Cruz do Sul e claro, Buenos Aires. Gente ligada às universidades federais, estaduais e particulares, pelo lado brasileiro. Pesquisadores do Centro Universitário de Rivera, representantes das bibliotecas uruguaias e funcionários do governo oriental. Poetas, músicos, artistas plásticos e escritores completaram o caldeirão cultural que alimentou as conversas/charlas, centradas neste ano em questões ligadas a literatura fronteiriça, o urgente mapeamento e preservação do patrimônio histórico, os desafios de usos e cuidados com o bioma pampa e o necessário incremento da produção cultural na fronteira. Na mesa “As políticas e os caminhos do patrimônio”, o historiador santanense, radicado em Santa Cruz do Sul, José Remedi, demonstrou porque a cultura fronteiriça precisa ser patrimonializada, para ser guardada para as futuras gerações. Mas tratou de afastar conceitos que ligam a cultura a uma concepção estática. “Cultura é mudança, por isso não se trata simplesmente de congelar algo, mas de conservar com modificações pactuadas”, ensinou. Cultura envolve os germes da estabilidade e da mudança, já a tradição deve ser encarada como o passado atualizado no presente, definiu Remedi. Já o arqueólogo e antropólogo Fernando Acevedo tratou do turismo patrimonial e um extenso trabalho que desenvolve na preservação de festas, saberes, manifestações e conhecimentos ligados a extensa área protegida do pampa na zona de fronteira, que envolve os municípios de Santana, Alegrete, Quaraí e Rosário, além dos municípios uruguaios. A historiadora Liane Aseff assinalou as ações em prol do tombamento do Parque Internacional. Lembrou dos tempos ancestrais, onde o Areial era o espaço preferencial do lazer fronteiriço. O tombamento está sendo analizado pelo IPHAE. O historiador Eduardo Palermo, do CERP Norte, lembrou de uma Rivera histórica, através de gigantografias que mostram momentos distintos da formação da cidade uruguaia, de Villa Ceballos a Rivera. A mesa foi coordenada pelo historiador Alejandro Gau, do CERP Norte.
Pela manhã, a historiadora riverense Selva Chirico brindou a todos com um fascinante relato sobre os comércios tradicionais de Rivera, que povoaram a infância e até hoje fazem parte do imaginário local. Rosario Brochado abordou a linguagem fronteiriça desde a perspectiva do patrimônio e sua conservação, enquanto o arquiteto e urbanista Luis Eduardo Fontoura Teixeira tratou da importância do conhecimento do patrimônio regional, os usos contemporâneos e efetivos dos bens tombados e da necessidade urgente de se delimitar áreas de proteção cultural. “A população precisa conhecer a história desses lugares para poder preservá-los”, enfatizou. Miguel Angelo Peres Pereira, da Prefeitura Municipal de Livramento, colocou a todos a par das dificuldades inerentes ao poder público e as necessárias articulações entre sociedade e classe política na busca pela preservação dos bens culturais. A bela e diversa literatura produzida na fronteira, em especial os escritos de dois grandes literatos que foram Arlindo Coitinho e Hipólito Zas Recarey, foi abordada pela pesquisadora e professora de literatura uruguaia, Alejandra Rivero (ver post abaixo) e Ariel Pereira. O professor Oneider Vargas recordou da produção cultural e engajada de Coitinho, junto a viúva do escritor santanense, Sônia Cabeda, que esteve presente no evento. Já o político e empresário Ariel Pereira, criador do célebre Canal 10, falou sobre a vida e obra de seu amigo Zas Recarey. Emocionado, Ariel Pereira leu partes da obra do grande escritor riverense, que recupera a trajetória de personagens da cidade e locais tradicionais da região. A mesa foi mediada pelo radialista Antônio Carlos Valente.
A literatura produzida pelas mulheres foi o tema da mesa “Vozes femininas da literatura fronteiriça”, composta pelos professores Cláudia de La Barrera, Rosana Cottens, do CERP Norte e Maria Regina Prado Alves, da Academia Santanense de Letras, que abordou a obra literária de Tânia Alegria. A obra do escritor riverense Osvaldo Lezama e sua linguagem fronteiriça foi aboradada por seu filho, Grauert Lezama Pintos, sob a coordenação de Eduardo Palermo. Ecologia e Sustentabilidade, foi o tema que uniu as universidades brasileiras Unipampa, Urcamp e o Centro Universitário de Rivera (CUR). Mediada pelo professor e diretor do CUR, Mário Clara, a charla contou com a participação dos professores Fábio Régio Bento, Miriam Garat, Nei Edílson e Ludmila (CUR). Questões ligadas ao bioma pampa e as fragilidades inerentes ao ecossistema local formaram o núcleo dos debates. Também foram apresentados os projetos acadêmicos desenvolvidos em torno de sustentabilidade e ações futuras entre as instituições de ensino do Brasil e Uruguai.


 A charla em torno da produção musical na fronteira foi precedida pelo lançamento das memórias de Bráulio Lopez, o eterno olimareño, que relembrou de aventuras pela fronteira, entre amigos fundamentais e referências artísticas. Falou com reverência de Ruben Lena, o maestro rural que deu o impulso necessário à obra olimareña, lembrou de Amílcar Real e de Jorge Cafrune, o famoso folclorista argentino e suas andanças nas linhas de fronteira, quando foram detidos pela ditadura brasileira. Foi saudado com aplausos por um público entusiasmado. Na charla que encerrou a terceira edição da Feira, uma conversa que reuniu Adair de Freitas, o consagrado “cantautor” fronteiriço, Marcelo Dávila, poeta e letrista premiado em festivais nativistas de todo o Rio Grande, Alberto Esquivel, homem do candombe e da cultura afro-uruguaia e Richard Bértiz, legítimo representante da cena underground riverense, líder do grupo Corvus. Com tamanha diversidade, a mediação teve de esmerar-se para que a conversa não tomasse rumos aleatórios. O ponto de equilíbrio foi a questão política. Adair de Freitas lembrou da necessidade de um poder público efetivamente comprometido com a cultura local. “Museus não existem para ficar escondidos, em prédios inacessíveis ao povo”, lembrou o autor de “Previsão”. Marcelo Dávila acrescentou que a região vive um paradoxo, de integração comercial e desconhecimento cultural. “Precisamos nos interligar efetivamente, conhecer a nós mesmos!”, exortou. Alberto Esquivel mostrou a força que o candombe possui enquanto arte de inclusão e mobilização social, partindo dos afrodescendentes e encampando setores sensíveis da sociedade uruguaia. Por fim, Richard Bértiz fez um relato uma verdadeira aula sobre as origens do movimento punk e suas relações com a América Latina.




A questão da mentalidade, da aposta nos valores locais foi lembrada tanto por Adair de Freitas quanto por Marcelo Davila. “Público há, dinheiro há, o que falta é o real interesse em valorizar nossos próprios valores,”, sentenciou Dávila, que pediu o esforço coletivo na criação de uma rede frutífera de valores e cultura. A fronteira precisa dar um passo além, em aspectos como um maior profissionalismo de músicos, bares e restaurantes, e claro, a mídia. Sobrou para todos na hora de dividir a responsabilidade.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

ARLINDO COITINHO, y la construcción de la escritura operária

 
                                                                                            Alejandra Rivero
 
El domingo 27 de junio de 2010, Arlindo Coitinho decidió emprender el camino de regreso. Como varios de sus personajes, rescatados por su imaginación del oscuro olvido de la historia cotidiana de esta frontera, cruzó “a tênue linha que separa a vida da morte”. Algunos de ellos, João Bispo, Esmeralda, Flor de Liz, Coruja, Angelito de las Nieves, fueron erguidos a un estatus de permanencia a través de la literatura creada por este “chapeiro”, mientras sus vidas se vieron traspasadas por la pobreza, la aventura y por último la muerte. Arlindo, ser humano, como ellos fueron antes,  experimentó también “a ferroada definitiva da sábia poda da natureza (…) o infinito mistério, o gênio inspirador, a musa da filosofía.”

Arlindo fue uno de los mayores narradores de esta frontera. Paso a explicar este alegato tan contundente. Fue un escritor que supo retratar este lugar y su gente, a los personajes más pintorescos y fronterizos, íconos culturales de este perdido rincón del planeta. Su mirada altamente realista y su identificación total con el mundo ficcional por él creado, le permitieron obtener récords de ventas aquí, en la frontera. “Ele ensinou todo esse povão a ler”, recuerda Sônia Cabeda, su compañera de toda la vida.

Nació en Livramento, en 1942. Se inicia como escritor antes de 1975, año en que comienza a trabajar en Á Platéia (al inicio de la década del setenta escribe crónicas sobre la vida de las personas comunes, que son leídas por él mismo en un programa radial). Incentivan también a la formación del escritor las lecturas de Gracilhano Ramos, Jorge Amado y Érico Veríssimo, de quienes admitía recibir influencias. Elmar Bones (en aquel entonces, director de Á Platéia) reconoció al escritor detrás del cronista policial y le sugirió la publicación de un libro. De ahí nace Segue o baile, en 1981, primero de una serie ininterrumpida de veintiún títulos (hasta el último, O homem da coxilha, publicado en 2004).

Autodidacta, decía escribir en “santanés”, especie de dialecto portugués con profunda influencia del español, probablemente creado por él. En santanés escribió la serie Segue o baile I (1981), II (¿1981?), III (1992, 3era. ed.) y IV (2001), Bichicome (1982) y Estórias do edil Noventino (1991, 2da. ed.), apareciendo más tímidamente en los otros libros. Gozó de mucha popularidad en los 80 y en los 90, a pesar de no ser aceptado por la Academia Santanense de Letras para ocupar una de sus “cadeiras”, pues el realismo de Arlindo Coitinho pegó fuerte en la sensibilidad fronteriza, tanto para bien como para mal.

A lo largo de sus obras se percibe un desfile de personajes (la mayoría pertenecientes a la realidad fronteriza, transformados en personajes de ficción) los que dan vida a un mundo conformado por la ley del “más vivo”, donde el “abombado” o el “coió” no logran una inserción positiva debido a su ingenuidad e inocencia. En el mundo ficcional de Coitinho se construye una sociedad en la que prima la falsedad del lumpen y el mal vivir de los negocios turbios, la prostitución, el juego y el alcoholismo, actitud literaria que refleja un intento naturalista[1] por demás ortodoxo.

El “chapeiro”

“Declaro que não possuo títulos. Aprendí muito cedo a lutar na vida. Fui aprendiz de barbeiro e de sapateiro, balconista, bicheiro, chapa de caminhões de transportes, operário do Frigorífico Armour e da Companhia de Engenharia Sergen”. Así se define Arlindo Coitinho en el prólogo de Caudilhismos, rinhas, machadaços (1987), una de sus obras más importantes. Su escritura también evidencia un trabajo de obrero, que progresa hacia una narración de lenguaje y estilo propio, cuyo afán de mostrar la realidad, que para muchos debería permanecer en el anonimato, transforman a este “chapeiro” en un eximio narrador. Pero hay que destacar rotundamente que la etapa de la “chapa” de sus primeros libros es fundamental en la construcción del escritor.

Con el nombre de “chapeiro” lo define Elmar Bones en el prólogo de Segue o Baile II (¿1981?). El término proviene del acervo popular y designa a aquel parroquiano observador e irónico que, en una mesa de bar o en un lugar público, cuenta una anécdota relacionada con algún personaje conocido de su audiencia (que a veces puede ser él mismo), a la que le confiere un toque de humor y picardía. A aquel cuento humorístico realizado oralmente (y hasta podríamos afirmar, ejemplo de literatura oral), basado en una situación real, exagerado o caricaturizado de tal manera que provoca la risa, Arlindo logró traducir a un lenguaje escrito que intentó representar al real (al que lo definió “santanés”) y crear con esto (valga la osadía de afirmarlo) un subgénero nuevo dentro del género narrativo: el de la “chapa”, relato jocoso de corta extensión que busca recrear a través de la escritura, una situación ridícula protagonizada por personajes reales y, en su mayoría, conocidos directamente por los lectores, cuya identidad a veces se esconde detrás de un nombre ficcional.

Interesante destacar es que en todos los libros de Arlindo en los que el narrador es un “chapeiro”[2], la escritura es acompañada por charges que recrean las “chapas” contadas. El impacto gráfico de la charge es similar al de la escritura de la “chapa”: la condensación anecdótica de ambas intensifica el humor, destacando lo ridículo de la situación y la agudeza de la observación. El acompañamiento gráfico de la escritura (charges en las “chapas” y dibujos en varias novelas y “romances”) es constante en la obra de Coitinho; podríamos hasta decir que es un rasgo caracterizador de su producción.

Bichicome: el primer “best seller”

El caso de Bichicome (1982) es muy particular. Es su primer proyecto literario más ambicioso, en el que se percibe el intento de elaboración de una trama novelística más estructurada, pero aún dentro del relato jocoso y pintoresco. Su autor lo denomina “estorieta” y acá lo definiríamos como una chapa dividida en diecisiete segmentos (que podríamos llamar capítulos), de los que algunos tienen nombre. Sería la obra de Arlindo en la que la chapa logra su máxima expresión, tanto en el desarrollo de la anécdota como en el trabajo de los personajes, además de mostrar al santanés como en ninguna de sus demás obras.

En su carátula aparece impreso un documento de identificación con la foto de quien será su protagonista: Angelito de las Nieves, cambista de la línea divisoria, del que se cuenta que logra una fortuna fugaz a través de negocios turbios. Su destino se verá entrelazado al de Coruja, personaje típico de la frontera, cuyo nexo estará dado por el rechazo que sufrió la hija de Angelito por parte de su prometido. Esta anécdota sirve de hilo conductor a las diecisiete “acuarelas” que muestra el chapeiro en su relato, cada una de ellas elaborada con principio, medio y fin. Consisten en casos acontecidos a y realizados por los protagonistas y que gozan de una cierta independencia, rasgo de entre varios que hace con que esta obra sea incluida dentro del subgénero de la chapa.

Aunque sea una chapa, este libro no posee charges o dibujos como paratextos en el discurrir de su narración. No obstante, su carátula, como ya se dijo, muestra una ilustración que representa un documento de identidad de quien sería Angelito de las Nieves (seguramente un personaje real, oculto detrás de ese nombre de ficción), además de otro personaje retirándose a hurtadillas, con una sonrisa en los labios, que interpretamos ser Coruja. En las obras de Arlindo, el material gráfico guarda estrecha relación con el sentido del texto y, en este caso, aunque la escritura no se vea acompañada de tal representación, esta carátula proporciona al lector pistas suficientes acerca del contenido del libro, además de mantener la característica de las obras de Coitinho en lo que se refiere a la necesidad de incluir la comunicación por imágenes.

Otro factor importante y que es digno de ser destacado: al inicio del libro Bichicome, se apunta una definición del término conjuntamente con su etimología inglesa:

BEACH-COMBER – ONE Who lives on What he can fin or beg on beaches or Warf areas. 2. A long have rolling in Toward a beache. (Sense 2, from comb, in the sense “to break with foam”).

BICHICOME: Inadaptado social, que vive sin hogar permanente, protegiéndose como puede de los rigores del clima. Anda siempre andrajoso y carece de hábitos de trabajo. Paria. Do dicionário de Lenguaje Rio Platense – Juan Carlos Guarnieri.(Coitinho 1982: 9)[3]

Esta “necesidad lingüística” del narrador demuestra su intención de destacar este aspecto en su obra. Nos trasmite la información de que el lenguaje será también uno de los protagonistas de su(s) historia(s).

De “chapeiro” a novelista

Podemos afirmar que la escritura de Arlindo Coitinho nace como la de un chapeiro y crece hasta llegar a ser la de un narrador de novelas y “romances”. También es cierto que nunca abandona la chapa, sino que incursiona en ella de manera simultánea con los demás subgéneros. Pero las novelas y “romances” pasan a ganar una importancia preponderante en los intereses narrativos del escritor hasta constituirse en la producción más importante de su creación. En este ámbito, la tradición literaria de su país (Jorge Amado, Gracilhano Ramos, Érico Veríssimo) y extranjera (Oscar Wilde, Emile Zola, Ernest Hemingway) se hará presente en su obra de alguna u otra manera. Dicha tradición sustentará su postura de escritor popular que busca llevar la literatura al pueblo y que, para ello, debe escribir así como el pueblo habla y, al mismo tiempo, dar a conocer a ese pueblo un poco de la literatura universal.

Mientras que en la chapa los personajes, situaciones y ambientes transcurren en el tiempo presente de su creación (décadas del ochenta y noventa), las novelas y “romances” se trasladan al pasado, a la frontera de entre los años veinte y cincuenta, época representada como áurea, casi de una Arcadia perdida, pero también de mayor barbarie y perdición. Inicia rotundamente esta etapa el libro João Bispo, publicado en 1985. En él se evidencia una escritura extremadamente cuidada, un poco más alejada intencionalmente del santanés (salvo palabras de algunos personajes), por ende más cercana al portugués estándar local, pero con una impronta particular de narrador que pretende mantener la etiqueta de “fronterizo”. Se puede considerar a este libro una de las mejores piezas de la producción literaria de Coitinho.

También se inaugura con João Bispo (1985) la etapa del escritor investigador, actitud relacionada con su profesión (aprendida en la experiencia) de periodista. Arlindo recoge material acerca del bandolero bahiano de los años veinte, João Bispo, que huye de su tierra de origen por asesinatos cometidos, y que  lleva consigo a una joven compañera, Esmeralda, perteneciente a una familia acaudalada de Porto Alegre, lugar donde João Bispo se refugia en una primera instancia. Allí, el malhechor recibe la información de que la frontera Livramento-Rivera representaría el fin de su existencia de forajido, ya que podría cruzar hacia otro país (Uruguay) sin ser descubierto y así lograr su libertad e iniciar una nueva vida junto a su compañera. Estando ya en la frontera, su error fue creer que en Livramento estaba en Uruguay (debido a la inexistencia de parámetros explícitos que indiquen la frontera) y su permanencia en la ciudad dio lugar a que la policía santanense recibiera la información necesaria para su apresamiento. Al ser descubierto, entonces, y ser herido de gravedad en medio de una balacera (en las inmediaciones de lo que sería hoy el edificio de la empresa “Sétimo Nochi”), João Bispo decide matar a su compañera y suicidarse para no ser llevado a prisión. Al pasar el tiempo fueron santificados por el pueblo y sus espíritus recibidos periódicamente en el terrero de Mãe Eudócia.

Aunque el libro se estructura en base a esta anécdota, la misma constituye un telón de fondo para lo que verdaderamente el narrador quiere destacar: la vida fronteriza de aquel momento, el submundo del “malandrage”, las prostitutas, los “bixas” y los cabarés, los policías corruptos y los coroneles déspotas (dueños de las tierras y de las vidas), del pobrerío subsumido en el mal vivir, de los “coiós” que quieren evolucionar y transformarse en “vivos”, de los “agiotas” y los ricachones de negocios turbios, de las pensiones sucias y de mala muerte o sea, todo el lumpen fronterizo, el mejor anfitrión para un personaje de la talla de João Bispo. No así para Esmeralda.

Esmeralda es un ejemplo de las “heroínas” de Coitinho. En medio de toda la decadencia social y humana que busca representar este escritor, ellas sobresalen por su candor, inteligencia y bondad. Poseen intereses superiores, les gustan las artes y la lectura (Esmeralda lee, a escondidas de su padre, varias obras de Zola); en fin, representan a seres humanos idealizados, al estilo romántico. Sus proyectos siempre son truncados, principalmente por culpa de sus compañeros o enamorados. Esmeralda, en su visita (sin la compañía de João Bispo) al terrero de Mãe Eudocia, llora su suerte en la tierra y su belleza se ve resaltada por un largo vestido celeste y los ojos como estrellas. Otro ejemplo de las “heroínas” de este autor es Angélica de Caudilhismos, rinhas, machadaços (1987). Es casada con el español Esteban Munhoz de Arcádia, uno de los poderosos de la frontera de los años treinta, pero está enamorada de Federico Louzada, abogado que ha decidido denunciar la situación decadente de las autoridades de Livramento y de su estado. Es descripta con una belleza a la europea: cutis blanco, cabellos rubios y ojos azules, características que la hacen, justamente, angelical. Intenta convencer a su enamorado de abandonar todo e huir con ella, pero su idilio (nunca descubierto) culmina con la muerte violenta de éste.

Palabras finales

Referente al universo literario de Arlindo Coitinho (infinitamente más rico de lo que esta pequeña muestra pueda ofrecer), presentamos aquí un esbozo de los que consideramos principales ejes creativos de su producción literaria y que constituyen, para nosotros, los puntos de partida de una futura investigación. La riqueza cultural y literaria que ofrecen los diferentes libros de Coitinho y su obra en conjunto, reivindican su reconocimiento como uno de los principales escritores de la frontera Livramento-Rivera. Aunque chapas y chapeiros existan por todas partes, la creación literaria de la chapa y de la actitud narrativa del chapeiro deben serles otorgadas, sin lugar a dudas, por su osadía de llevarlos a la escritura y por el coraje de su publicación. Coraje que recibió un merecido reconocimiento en su tiempo, pero también un rotundo olvido a lo último.

En la construcción de su escritura operaria se observan altos y bajos, grandes creaciones y también repeticiones, complejidades y simplicidades, contradicciones. Claro está, ya que, y parafraseando al gran poeta norteamericano Walt Whitman, al tocar sus libros tocamos a un hombre.

 

Rivera, 30 de noviembre de 2012



[1] Referencia al movimiento artístico europeo del siglo XIX.
[2] El caso de Bichicome (1982) es diferente. Lo hablaremos a continuación.
[3] Mantengo la escritura del original.
 
 
Texto apresentado na III Feira Binacional do Livro, pela pesquisadora da literatura fronteiriça e professora do CERP - Centro Regional de Professores del Norte, Alejandra Rivero.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

No tempo do "mais velho".


A chama está sempre acesa no velho fogão à lenha da cabana que abriga o casal que já leva mais de 50 anos de convívio. Trinta deles ao pé do Morro das Aranhas, no leste da Ilha. O popular “mais velho” e sua esposa Palmira são os únicos moradores do Moçambique, a maior extensão de praia de Florianópolis, guardiões de um pedaço de terra que ainda mantém as mesmas características de uma ilha ancestral. Nascido na rua Almirante Lamego, em uma cidade já muito distante do que hoje se percebe como capital, o “mais velho”, aliás Divo Régis, relembra dos velhos tempos com a vivacidade de quem cresceu em uma outra época. “Descarreguei muito navio na Ilha do Carvão e no trapiche do Hoepcke; era gasolina, querosene e óleo em tambor”, diz o ancião que ainda mantém o sorriso franco e o espírito alegre dos dias em que viveu como estivador, na ilha do final dos anos 40. “Quando vim morar na praia, eu ia até o Rio Vermelho e de lá caminhava com o povo até o centro, levando galinha, ovos, farinha,  para trocar por coisas que faltavam aqui”, relembra.  A pé, levava-se uma madrugada inteira de caminhada até chegar ao mercado público. 


A poucos minutos do Costão do Santinho, um dos mais luxuosos resorts do país, a velha cabana do “mais velho”, não possui água nem luz, mas nem por isso deixa de abrigar um casal que vive intensamente o seu pedaço do paraíso. O mundo mudou de trinta anos para cá, “o peixe acabou em 100%”, mas ainda assim a tarrafa costuma voltar do mar com as tainhotas e cocorocas que garantem a fritada do dia.  Prestes a completar 76 anos, único remanescente de uma família de sete irmãos, o guardião do Moçambique pesa os dias de hoje nos dois lados da moeda. “Digo pra mulher que devíamos ter vindo mais tarde para essa vida, para viver as facilidades que estão aí”. Mas ressalta que  “o problema é que falta muito emprego, antigamente não faltava serviço, a gente tinha que se meter lá no Bar do Quido, perto da Igreja, quando queria descansar, mas o pessoal da estiva sempre nos encontrava”. 

Antes da estiva, porém, muita água passou embaixo da ponte Hercílio Luz. O menino Divo começou vendendo o jornal O Estado, cedo do dia, quando deixava o Morro da Ponte e caminhava até o ponto de ônibus do Arlindo. No Estreito entregava 10 jornais e vendia outros 40, de onde tirava sua comissão. “Naquela época pouca gente sabia ler”. Certa vez, um boi desgarrado da tropa que ia para o matadouro do continente quase o acertou com os chifres, levando junto todos os jornais do dia. Foi a deixa para trocar de emprego e buscar uma posição na copa do famoso Hotel La Porta, que marcou uma época de ouro da capital. Ali chegou a terceiro cozinheiro, de onde saiu para a conceituada Padaria Carioca. Mas um desentendimento com a proprietária o levaria mais uma vez às ruas, desta vez para fazer carreto no Mercado Público. “Levava café, carne salgada, peixe, cabeça de boi, para os fregueses que moravam ao redor da Praça, ou lá pelos trapiches onde hoje fica a Beira Mar Norte”. Tempos depois ganhou o mundo, como o palhaço Mandioca, no famoso circo do Biduca, que saiu de Florianópolis e foi dar no Rio de Janeiro. 

Do Rio voltou já com barba na cara, mais interessado nas moças da freguesia. Foi a época das sete mulheres, as sete namoradas que manteve por um bom tempo. “Tinha a Rosa, Anita, Alba, Emília, e outras que nem lembro o nome. Era viúva, desapartada, solteira, eu dava conta de todas”. Isso, claro, antes de conhecer Palmira, que ganharia definitivamente seu coração e com quem gerou 18 filhos, “todos vivos”.  

Hoje o “mais velho” divide seu tempo com os pescadores do costão das Aranhas, a lida caseira com a mulher e a ronda nos bares do Rio Vermelho, sempre que a ocasião se oferece. Já vão longe os tempos da estiva, onde compartilhava trabalho e lazer com os companheiros João Pretinho e Cabeça de Côco,  entre tantos outros que fizeram aquela velha cidade que já nem existe mais. 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

O golpe contra a democracia no Paraguai




O que foi tentado contra Lula, na época do chamado mensalão –que por escassa margem de votos não teve o apoio da OAB Federal numa histórica decisão do seu Conselho ainda não revelada em todas as suas implicações políticas - foi conseguido plenamente contra o Presidente Lugo. E o foi num fulminante e sumário ritual, que não durou dois dias. Não se alegue, como justificativa para apoiar o golpe, que a destituição do Presidente Lugo foi feita “por maioria” democrática, pois a maioria exercida de forma ilegal também pode ser um atentado à democracia. É fácil dar um exemplo: “por maioria”, o Poder Legislativo paraguaio poderia legislar adotando a escravidão dos seus indígenas?

No Paraguai o Poder Legislativo na condição de Tribunal político atentou contra dois princípios básicos de qualquer democracia minimamente séria: o princípio da “ampla defesa” e o princípio do “devido processo legal”. É impossível um processo justo - mesmo de natureza política - que dispense um mínimo de provas. É impossível garantir o direito de defesa - mesmo num juízo político - sem que o réu tenha conhecimento pleno do crime ou da responsabilidade a partir da qual esteja sendo julgado. Tudo isso foi negado ao Presidente Lugo.
O que ocorreu no Paraguai foi um golpe de estado de “novo tipo”, que apeou um governo legitimamente eleito através de uma conspiração de direita, dominante nas duas casas parlamentares. Estas jamais engoliram Lugo, assim como a elite privilegiada do nosso país jamais engoliu o Presidente Lula. Lá, eles tiveram sucesso porque o Presidente Lugo não tinha uma agremiação partidária sólida e estava isolado do sistema tradicional de poder, composto por partidos tradicionais que jamais se conformaram com a chegada à presidência de um bispo ligado aos movimentos sociais. A conspiração contra Lugo estava no Palácio, através do Vice-Presidente que agora, “surpreso”, assume o governo, amparado nas lideranças parlamentares que certamente o “ajudarão” a governar dentro da democracia.

Aqui, eles não tiveram sucesso porque - a despeito das recomendações dos que sempre quiseram ver Lula isolado, para derrubá-lo ou destruí-lo politicamente - o nosso ex-Presidente soube fazer acordos com lideranças dos partidos fora do eixo da esquerda, para não ser colocado nas cordas. Seu isolamento, combinado com o uso político do”mensalão”, certamente terminaria em seu impedimento. Acresce-se que aqui no Brasil - sei isso por ciência própria pois me foi contado pelo próprio José Alencar- o nosso Vice presidente falecido foi procurado pelos golpistas “por dentro da lei” e lhes rejeitou duramente.
A tentativa de golpe contra o Presidente Chavez, a deposição de Lugo pelas “vias legais”, a rápida absorção do golpe “branco” em Honduras, a utilização do território colombiano para a instalação de bases militares estrangeiras têm algum nexo de causalidade? Sem dúvida têm, pois, esgotado o ciclo das ditaduras militares na América Latina, há uma mudança na hegemonia política do continente, inclusive com o surgimento de novos setores de classes, tanto no mundo do trabalho como no mundo empresarial. É o ciclo, portanto, da revolução democrática que, ou se aprofunda, ou se esgota. Estes novos setores não mais se alinham, mecanicamente, às posições políticas tradicionais e não se submetem aos velhos padrões autoritários de dominação política.

Os antigos setores da direita autoritária, porém, incrustados nos partidos tradicionais da América latina e apoiados por parte da grande imprensa (que apoiaram as ditaduras militares e agora reduzem sua influência nos negócios do Estado) tentam recuperar sua antiga força, a qualquer custo. São estes setores políticos - amantes dos regimes autoritários - que estão embarcando neste golpismo “novo tipo”, saudosos da época em que os cidadãos comuns não tinham como fazer valer sua influência sobre as grandes decisões públicas.
É a revolução democrática se esgotando na América Latina? Ou é o início de um novo ciclo? A queda de Lugo, se consolidada, é um brutal alerta para todos os democratas do continente, seja qual for o seu matiz ideológico. Os vícios da república e da democracia são infinitamente menores dos que os vícios e as violências ocultas de qualquer ditadura.
Pela queda de Lugo, agradecem os que apostam num autoritarismo “constitucionalizado” na A.L., de caráter antipopular e pró-ALCA. Agradecem os torturadores que não terão seus crimes revelados, agradecem os que querem resolver as questões dos movimentos sociais pela repressão. Agradece, também, a guerrilha paraguaia, que agora terá chance de sair do isolamento a que tinha se submetido, ao desenvolver a luta armada contra um governo legítimo, consagrado pelas urnas.

 Tarso Genro - Governador do Rio Grande do Sul

foto:defesadotrabalhador.blogspot.com.br

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Antígona e a Grécia, Hoje.



O resultado das eleições de 6 de maio, na Grécia, indicam, claramente, uma rejeição às medidas de austeridade exigidas pela "Troika" (Comissão Européia, Banco Central Europeu e FMI) como solução para a crise econômica e fiscal grega, com cortes de salários, perdas de direitos trabalhistas e de benefícios previdenciários. De resto, o mesmo se pode dizer, de um modo geral, em relação às eleições presidenciais em França, às eleições municipais na Itália e na Inglaterra, onde os partidos conservadores, adeptos da adoção daquelas medidas, sofrem derrotas significativas.

Na Grécia, entretanto, existem particularidades que tornam o resultado eleitoral uma singularidade, para dizer o mínimo. Com efeito, não ocorrendo uma concentração considerável de votos em qualquer partido e, em decorrência, inexistindo uma predominância de assentos junto ao Parlamento grego, os gregos não conseguem formar um novo governo. Fracassaram as tentativas de formação de um governo com base no partido que recebeu mais votos, o Nova Democracia (que obteve 18,9% dos votos). Após, foi convocado o partido Syriza, segundo melhor colocado nas eleições (16,8%), e a tentativa também fracassou. Convocou-se, então, o Pasok (13,2% dos votos) e o resultado, mais uma vez, foi infrutífero. Finalmente, foram convocados, pela Presidência da república, esse três partidos para se encontrar uma solução. E, nesta data, 13/5/12, noticiou-se a frustração desse encontro; isto é, não se chegou à formação de um novo governo. A data final para a formação de um novo governo é o dia 17 do corrente mês e ano. Até lá, certamente serão convocados os partidos que tiveram um menor número de votos para, mais uma vez, tentar a criação de um governo de coalizão ou de unidade nacional. O histórico KKE (8,5%), se for convocado, já deu, antecipadamente, sua resposta: não participará de qualquer governo de coalizão ou de unidade nacional em virtude das profundas divergências com os demais partidos no que diz respeito às exigências da Troika.

Se, mais uma vez restar frustrada essa tentativa que ocorrerá antes do dia 17, restará, como último recurso legal, a convocação de novas eleições, previstas para junho desse ano na busca de uma maioria parlamentar que possibilite, finalmente, a formação do futuro governo. Analistas esperam, das eventuais e futuras eleições, uma maior concentração de votos em Syryiza que, contraditoriamente, defende a manutenção da Grécia na Zona do Euro e rejeita as medidas de austeridade. Se isso ocorrer, ou, ao contrário, se houver nova dispersão de votos com a conseqüente impossibilidade de formação de um governo, a Grécia entrará em default (para usar a linguagem dos banqueiros); isto é, ocorrerá o inadimplemento de pagamentos da dívida grega. Isto - o não pagamento da dívida - implicaria na saída da Grécia da Zona do Euro.

Embora o Tratado de Maastrich não trate, clara e detalhadamente, da saída de países daquela zona, a Grécia se veria forçada à saída. Se a Grécia sair da Zona do Euro, terá de voltar ao dracma, ou a um novo dracma, como moeda nacional, com uma desvalorização, em relação ao euro, de mais de 50% de seu valor. Como as dívidas da empresas gregas se dão em euros, tal medida de desvalorização da moeda implicaria na falência de muitas empresas. Nos marcos do capitalismo, isso tudo resultaria em hiperinflação, desvalorização da moeda, falências, colapso bancário e mais desemprego que hoje está em torno dos 22%.

Por outro lado, não interessa à Zona do Euro a saída da Grécia. Por quê? Porque a saída e o default gregos trariam conseqüências funestas a todo o sistema bancário europeu. Coloque-se na posição de um "investidor capitalista" e se pergunte, claramente, se, nessa condição e diante do default grego, você investiria dinheiro em Portugal, Espanha ou Itália? Claro que não, pois tais países estão em situação muito parecida à grega. Restaria ao Banco Central Europeu fazer tais investimentos e se esse instrumento imperialista não puder fazê-lo (pela inexistência de fundos suficientes), a estabilidade da euro-zona estaria condenada a um desequilíbrio desconcertante.

Então, o problema da Grécia, revoltada em relação à Troika, não é somente dos gregos, mas de toda a Europa, se não for de todo o sistema capitalista. O que restará à burguesia grega para cumprir as determinações da Troika, em detrimento da vontade do povo grego, já expressa nas eleições, a não ser o golpe de estado, a ditadura, ou, o pior, uma guerra civil ? Sófocles compôs o personagem Antígona que se rebela contra as determinações de Creonte, a partir de uma contraposição à Ismene, moça doce, tímida, submissa e acomodada, irmã da jovem Antígona. Creonte condenou Antígona à morte, por sua rebeldia, mediante encerramento, em vida, no sepulcro de sua família. Mas, Antígona se antecipa e se enforca.

Na tragédia moderna, a Troika (lembrando Creonte) condena à Grécia (lembrando Antígona) a ser sepultada viva pela adoção das medidas de austeridade e Grécia–Antígona pode se enforcar pela adoção das conhecidas, e em parte já referidas, medidas capitalistas. Antígona–Grécia se libertará da situação trágica em que se encontra, não pelo enforcamento capitalista, mas trilhando o caminho do socialismo.


Texto: Humberto Carvalho - PCB/RS.
Imagem: aporrea.org

sexta-feira, 20 de abril de 2012

As insurreições no Oriente Próximo e as tentativas imperialistas de desestabilizar a região. (Parte 1)




Leila Ghanem 1

Mais uma vez o Oriente Médio (o Mundo Árabe, em específico), mostra que é capaz de gerar movimentos de resistência (Líbano, Iraque, Palestina), de transformar as aventuras coloniais em derrotas militares categóricas e dar início a um ciclo de revoltas populares (e se trata de um ciclo que foi interrompido pelo Escudo do Golfo 2) no Iêmen, Jordânia, Bahrein, Marrocos, ocasionando uma intervenção militar imperialista na Líbia e as tentativas ainda em curso na Síria... Desde então estes eventos não são mais um assunto local e seu impacto diz respeito a todos nós...
Faço, aqui, uma distinção na minha análise entre os casos sírio e líbio, sujeitos a manobras colonialistas específicas do eixo EUA / França / Escudo do Golfo.

I - O impacto estratégico das revoltas no Oriente Próximo e as tentativas de desestabilizar os estados da região

É claro que estas insurreições se espalham em escala internacional através da crônica jornalística. Os efeitos das ressonâncias são propagados nas metrópoles capitalistas até Wall Street e não é por acaso que dois grandes países (EUA e França) conduzem suas batalhas eleitorais sob o signo dessas revoltas.

Na ocasião de sua campanha eleitoral, Obama anunciou seu plano para “estabilizar e modernizar as economias egípcia e tunisiana”. Também, por ordem de Washington, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional discutirão este projeto na cúpula G-8, em 26-27 de mai, na França. Obama, ainda, anuncia que os Estados Unidos estão criando “fundos empresariais para investimentos de empresas no Egito e Tunísia, como o modelo do que foi sustentado na transição da Europa Oriental” 3. O Egito e a Tunísia ainda não superaram a sujeição às potências ocidentais, representada nos planos de reajustes estruturais que foram a origem externa das revoltas que estouraram nestes dois países e que queremos transformar em laboratórios deste “novo plano econômico neocolonial” .4 O auxílio concedido a estes projetos não excedem 1 milhão de dólares e vai apertar ainda mais o garrote da dívida .5 Mas, este projeto foi amplamente contestado no Egito 6 , onde se viu várias iniciativas, inclusive uma autorização nacional feita por um sheik, para coletar localmente este dinheiro. O povo egípcio sabe agora que seu país foi pilhado de cima a baixo. Um dos instigadores da revolta estava de acordo a respeito do gás (o que decorre dos tratados de Camps David) em favor do qual o Egito se obrigou a vender seu gás a Israel três vezes mais barato do que o preço de mercado, ou seja, é ele que dá um presente a Israel de 3 bilhões de dólares por ano .7 Logo, não apenas poderíamos passar sem a ajuda americana, mas ainda utilizar o 1,5 bilhão dado a Israel, para desenvolver uma distribuição energética em um país em que 20% da população vive sem nenhum acesso à energia. Outros acordos, tais como o Quiz, concedem a Israel uma quota de 11,4% sobre os investimentos ditos “pesados”. 8

Sarkozy conduz sua batalha eleitoral na França sob o signo destas “revoluções”, empunhando a importância do papel que ele desempenhou na Líbia e da necessidade, no momento de crise, do patronato francês (MEDES e o arsenal militar e bancário...) definir um novo modelo para a saúde pública. Além disso, Paris se tornou a capital de uma oposição síria marginalizada no interior e corrompida pelo dinheiro do Qatar.

O paradoxo é que o “Escudo do Golfo”, à frente do qual se encontram Qatar e Arábia Saudita, age também para armar a oposição síria e libanesa, para financiar Annahda na Tunísia e a Irmandade Muçulmana no Egito, mas ao mesmo tempo financiar a campanha da direita na Europa, sobretudo a de Sarkozy, que utiliza a ira racista anti-imigração árabe como cavalo de batalha de sua campanha para se aliar à extrema direita. Isso nos leva a uma outra batalha de classe que transpassa as terras francesas. A imigração árabe na Europa desempenha um papel importante nas lutas sociais, assim como na luta anti-colonial na Palestina (campanha BDS, barcos para romper o cerco à Gaza).

II – O que quer esta coalizão (EUA, Israel, Direita Europeia, Arábia Saudita, Qatar)?

Além das razões estratégicas evidentes de controlar as “torneiras” do petróleo e de separar a China da Eurásia (assim se mostra na batalha contra a Síria)... Ela tem por propósito, pura e simplesmente:

1. sufocar, por todos os meios, todas as formas de revolta, impedindo o processo revolucionário na Tunísia e no Egito, mantendo estes dois países dentro da submissão entreguista e a pauperização na “economia de bazar”. Os 20 milhões de egípcios que foram às ruas são um fato de uma importância histórica inegável, forçosamente tornando-se exemplo em escala regional e onde quer quea crise do capitalismo se projete mais duramente.

2. desestabilizar o Egito, que ocupa um lugar de liderança no Mundo Árabe, mantendo o status quo maldito criado pelos acordos de Camp David (os quais estão ligados aos acordos de Oslo, Camps David II, etc.) 9

3. Atacar a Líbia e a Síria.

4. Isolar o Irã, minando sua base popular na região (para isso: 1- a revolta xiita do Bahrein foi afogada em sangue; 2 - a oposição iemenita foi sabotada, depois de ter afastado Ali Abdalah Saleh, mas ter mantido toda sua família e seu clã no poder; 3 – os fascistas libaneses, aliados de Israel, foram armados contra a resistência libanesa do Hezbollah, uma vez que os EUA se recusaram a vender armas ao exército legal libanês, culpado de ter repelido uma agressão israelense a suas fronteiras. E enfim, incitar e armar uma resistência islamo-fascista na Síria.

5. Desarmar a resistência libanesa que mudou o jogo no Oriente Próximo, desafiando um dos mais formidáveis exércitos do mundo10 e que constitui uma ameaça real contra o Estado colonialista de Israel. Esta resistência se tornou o alvo principal da aliança de bandidos americana-israelense, sobretudo porque ela deu um incrível exemplo histórico, revivendo os métodos vietcongues que já fizeram soar o dobre de finados para os ianques na Ásia e, sobretudo, para romper o muro de medo, apesar da correlação de forças desfavorável , decidindo lutar , ou "para escolher a morrer de pé", como dizemos no nosso jargão local. 11

Esta resistência é particularmente visada, não por seu caráter religioso, mas porque é de natureza anticolonial. Kissinger havia dito: "Nós não temos medo do Islã político, mas do Islã combativo." Em oposição à "Irmandade Muçulmana", conservadora e pró-ocidental, o Hezbollah não reivindica o poder ou a aplicação da lei islâmica "Sharia", ele é parte de uma frente composta por partidos de esquerda, aí incluído o Partido Comunista Libanês, de partidos políticos anti-imperialistas e todas as confissões em conjunto (cristã, muçulmana, drusa)... Ele coloca como prioridade a luta contra Israel e contra o imperialismo, proclama reformas sociais e impede as tentativas de grilagem de terras no sul do Líbano, mesmo entre seus aliados. 12

Não é qualquer coisa vencer o medo de todo o estratagema do 11 de setembro que visava aterrorizar não apenas os países da periferia, mas também as metrópoles... e era uma condição para passar ao estágio do capitalismo predatório, para o retorno ao colonialismo e a tomada direta de todos os recursos do planeta, incluindo a vida... Nós, do Oriente Próximo, fomos o primeiro laboratório deste terror, em todas as escalas militares, econômicas e políticas. Vimos desembarcar os americanos no Iraque com um arsenal de armas não-convencionais, e com eles as empresas como Monsanto, Syngenta, Dow Chemical e outras gigantes do agronegócio alimentar, ou da água, como a Bechtel . 13

Notas

1 Doutora em Antropologia e editora da revista "Alternatives / Bada'el' distribuída em dez países árabes. Foi organizadora do Tribunal Popular de Bruxelas, em 2008, para julgar crimes de guerra israelenses no Líbano. Participou como juíza do tribunal da Opinião de Bogotá para julgar sobre os desaparecidos do regime de Uribe. Ela é a Coordenadora do Fórum Social Internacional de Beirute: o Fórum Social Internacional de Beirute, que aconteceu em 16, 17 e 18 de janeiro de 2009 teve por objetivo criar uma convergência entre as resistências anti-coloniais (no Líbano, na Palestina e no Iraque) e a luta anti-imperialista em escala internacional, bem como com os movimentos de lutas sociais travadas pelos povos para preservar os suas conquistas sociais e os direitos ao trabalho, à saúde e à escola ... por dignidade, justiça e pelo direito de se organizar ... Nossa batalha se orienta a todos que se tornaram alvo de um capitalismo cada vez mais predatório e destrutivo. Duas novidades deram a este fórum um grande impulso: a crise financeira e os acontecimentos em Gaza. Presenciamos uma onda sem precedentes (450 organizações e 60 países) da Ásia (Índia, Irã, Paquistão, Afeganistão), da Europa, dos EUA, da América Latina, e de todos os países árabes ... A plataforma fundadora deste fórum realizou várias reuniões preparatórias em vista do próximo fórum, adiado por conta dos eventos no mundo árabe, particularmente na Síria. (Ver resoluções do Fórum em anexo)

2 Em abril de 2011, em uma reunião na Arábia Saudita, um mês de intervalo da revolução, nasceu no Bahrein "o escudo do Golfo", que inclui todos os países do Golfo em mais de dois reinos: Jordânia e Marrocos . O objetivo desta aliança é proteger estes sistemas contra levantes populares que começaram a queimar a grama sob seus pés, incluindo Bahrain, Iêmen, Jordânia ou mesmo as cidades do Reino Saudita como a cidade de Taif. O apoio financeiro foi reservado para festas de islamismo sunita conservador ou o que é chamado de "Os Irmãos Muçulmanos." A cadeia Al Jazira desempenhou um papel inegável de mediador para cobrir as revoluções egípcia e tunisina.

3 Trata-se de uma iniciativa bipartidária promovida pelo senador democrata John Kerry e pelo republicano McCain. O objetivo destes investimentos no Egito e Tunísia é de “promover o setor privado e de parcerias com empresas estadunidenses” e “a criação de uma classe média”. Os EUA visam assim a conquista de pequenas e médias empresas: no Egito elas são 160 mil, as quais se juntam 2,4 milhões de micro empresas. Estes investimentos são dirigidos pelo regulamento do Fundo Empresarial EUA-Egito: ele será governado por um conselho diretor de 4 cidadãos estadunidenses, da área da economia privada, e 3 egípcios, sendo estes últimos também “nomeados pelo presidente dos Estados Unidos”.

4 Em primeiro lugar, o Oriente Médio nunca foi completamente descolonizado. Possuindo mais da metade das reservas de petróleo do mundo, ele tem sido alvo de constantes interferências e intervenções desde que se tornou independente. 2. Após a Primeira Guerra Mundial a região foi fragmentada e dividida pelo Tratado Sykes–Picot em estados artificiais. 3. Após a Segunda Guerra, estamos vendo a implementação de um Estado colonial na Palestina. 4. Na década de sessenta, ele se submeteu a uma pressão quádrupla, dos EUA, Israel, Grã-Bretanha e França - golpe de Estado contra Mossadek no Irã (nacionalização do petróleo), Guerra de 56 contra Nasser (após a nacionalização do Canal de Suez), a Batalha de Argel contra a FLN. 5. Em 1967, uma guerra regional irrompe contra o Egito, a Síria e a Jordânia. Seguida pela guerra de 73, que resulta em uma vitória militar graças à ajuda russa, rapidamente contornada por um complô que destrói a moral das tropas que receberam ordens para retirar de Défressoire. O Líbano acumula seis guerras destrutivas em 25 anos ... depois vem a ocupação do Iraque em 2003, após um longo cerco asfixiante, a guerra e o cerco de Gaza ....

5 Os EUA concedem ao Egito uma doação de 1,5 bilhão de dólares por ano, dos quais 1 bilhão como ajuda militar, contra 7,5 bilhões de doação a Israel. Se o Egito está endividado em mais de 30 bilhões de dólares, apesar de ser um grande exportador de petróleo, gás natural e produtos acabados, tal fato se dá porque sua economia é dominada por multinacionais americanas e europeias às quais Mubarak abriu totalmente as portas. Tal dominação será reforçada pelo compartilhamento da dívida do Egito por Washington, para assim permitir que as multinacionais americanas obtenham ações de empresas e concessões de petróleo egípcias no valor de um bilhão de dólares, sem qualquer custo para elas. Sempre para "reforçar o crescimento e o empreendedorismo." Washington está perseguindo os mesmos objetivos na Tunísia.

6 O Egito pagou seus empréstimos a uma taxa de cerca de 3 bilhões de dólares por ano. Desde 1981, o Egito pagou cerca de 80 bilhões em rendimentos de capitais e juros.

7 Mubarak costumava repetir em seus discursos à nação que “se nós não colaborarmos com os EUA, eles cortarão sua ajuda e seu trigo, e em três dias vocês estarão famintos.” Outros acordos de trocas (assim ditas) livres obrigam o Egito a vender com prejuízo seu gás para a França, Itália e Espanha.

8 Se o Egito está endividado em mais de 30 bilhões de dólares, apesar de ser um grande exportador de petróleo, gás natural e produtos acabados, tal fato se dá porque sua economia é dominada por multinacionais americanas e europeias às quais Mubarak abriu totalmente as portas. Tal dominação será reforçada pelo compartilhamento da dívida do Egito por Washington, para assim permitir que as multinacionais americanas obtenham ações de empresas e concessões de petróleo egípcias no valor de um bilhão de dólares, sem qualquer custo para elas. Sempre para "reforçar o crescimento e o empreendedorismo." Washington está perseguindo os mesmos objetivos na Tunísia.

9 Estes acordos não são apenas acordos políticos e de segurança. Eles contém todos centenas de cláusulas concernentes à abertura desmesurada dos mercados locais para as empresas internacionais, sobretudo americanas e israelenses. Israel sempre foi ponta de lança na introdução do capitalismo predatório. É em troca deste seu duplo papel colonial-capitalista que eles têm todo o apoio ocidental para preservar um Estado de exceção em escala internacional.

10 A maior academia militar, de Saint Cyr, na frança, ensina em seus programas as guerras israelenses como exemplos impressionantes da arte da guerra, em especial a guerra de 67. Em 2006, a Academia ajustou seus programas para compreender como um pequeno grupo pode agir à maneira vietcongue para colocar em xeque um exército moderno dotado de uma força de ataque formidável, em especial na Batalha de Kiam onde um regimento de blindados com mais de 40 carros foi destruído em algumas horas...

11 A ajuda total dos Estados Unidos a Israel é aproximadamente um terço do orçamento dos EUA de ajuda externa, sabendo-se que Israel tem apenas 0,001 por cento da população mundial e possui uma renda per capita entre as mais altas o mundo. De 1949 até 1997 os EUA deram a Israel um total de 83.205 bilhões dólares. Despesas com juros que têm sido suportados pelos contribuintes dos Estados Unidos em nome de Israel são de 49,937 bilhões de dólares. Assim, o montante total da ajuda a Israel desde 1949 era de 133,132 bilhões dólares. Isso pode significar que, por ano, o governo dos EUA forneceu mais assistência federal para o cidadão médio de Israel do que ao cidadão americano médio.

12 Ver meu artigo sobre as razões do aumento das correntes islâmicas dentro da religião. Discurso pronunciado em Serpa, em 2008 (em português e espanhol) e também minha entrevista em Resumen Latinoamericano.

13 O Iraque não só perdeu a sua soberania política para o benefício dos ocupantes. Ele também perdeu o direito de produzir suas próprias colheitas. Pouco antes da "transferência de poder" em junho de 2004, o administrador provisório da coalizão, Paul Bremer, impôs ao país uma lista de 100 determinações permitindo aos EUA controlarem todos os aspectos da vida econômica de acordo com sua concepção do mercado liberal. Este controle inclui a direção do Banco Central do Iraque, as regras relativas aos sindicatos e as regras relativas à produção agrícola, de modo que ela obedeça aos desejos da Monsanto, que de forma agressiva tenta impor a utilização de Organismos Geneticamente Modificados (OGM). O decreto 81, de Bremer, prevê a destruição de 200 tipos de trigo autóctones e sua substituição por sementes “Terminator” produzidas pela Monsanto, semente esta que dá uma planta estéril, sem sementes, e os agricultores terão de renovar anualmente as suas reservas de sementes da Monsanto que tem o monopólio de 99 anos sobre as mesmas. Este é o modelo de democracia que os ianques querem exportar ao Oriente Médio. Ver meu artigo em espanhol: ¿Iraque, um Futuro Modelo del Capitalismo americano?

Texto gentilmente enviado por Humberto Setembrino Carvalho, do Comitê Gaúcho de Solidariedade à Luta do Povo Palestino, que manteve contatos com Leila Ghanem, durante a 3ª Reunião Preparatória do Fórum Social Palestina Livre que se realizará, em Porto Alegre, no final deste ano. O texto foi apresentado por Leila Ghanem durante o Seminário de 90 anos do PCB.
(foto - blog somostodospalestinos)

segunda-feira, 19 de março de 2012

A vida por um fio


Uma fronteira pode significar a vida ou a morte. Pode ser uma linha divisória ou um traço de união. Um muro ou uma passagem. O confronto ou o encontro. A guerra ou a confraternização. A prisão ou a liberdade. O exílio ou o retorno.
Certas fronteiras são imensas, como o oceano. Outras são apenas uma linha imaginária ou pintada no chão, entre marcos que assinalam a diferença dos países. Este último é o caso da fronteira entre o Brasil e o Uruguai, quando atravessa as cidades geminadas de Santana do Livramento, do lado brasileiro, e Rivera, do lado uruguaio.
Geminadas desde o seu nascimento no século XIX, Rivera e Santana foram palco de exílios e retornos, fugas em busca da liberdade e perseguições, lutas sangrentas e fratricidas. Não raro perseguidos de morte foram salvos por estarem poucos metros para lá da linha virtual que corta o meio de uma rua. Exilados ilustres ali encontraram refúgio, como o argentino José Hernandez: diz a tradição que o primeiro livro do Martin Fierro foi escrito em Santana. Outros, por vezes desconhecidos pela maioria de seus contemporâneos, ali desempenharam papéis fundamentais no salvamento de vidas ameaçadas por ditaduras e desavenças políticas.
Todo esse mundo peculiar da fronteira e de Santana/Riveira é evocado nesse livro, de paciente e ampla pesquisa, de Marlon Aseff, sua tese de doutorado. Mas a obra tem seu foco nos eventos que ali se passaram durante a recente Ditadura Militar que, de 1964 a 1985, mergulhou o Brasil no seu pior cerceamento das liberdades básicas da cidadania, entre as muitas que nossa história teve.
Como núcleo urbano unificado de maior porte em toda a fronteira em grande parte seca entre o Brasil e o Uruguai, a conurbação internacional Santana/Rivera tornou-se espaço privilegiado para perseguidos e mensageiros de oposição ao regime autoritário buscarem refúgio, passagem ou mesmo a volta clandestina ao país de origem. Para usar uma metáfora paradoxal e provocante, pode-se dizer que não raro o protagonista de uma fuga dormia numa casa de um lado da fronteira e acordava noutra, do lado oposto. Tudo isso graças ao heroísmo por vezes anônimo, mas sempre dedicado e ardente, dos que amavam a liberdade, a solidariedade, a justiça, muitas vezes com risco da própria integridade física, senão da vida.
Entretanto, atravessar essa fronteira nem sempre era fácil. Os protagonistas dessas fugas vinham por vezes de longe, de estados distantes, como São Paulo, Pernambuco e outros. Tinham que chegar a Porto Alegre e depois passar pelos 600 km. da capital até Santana, indo por estradas cujas pontes e paragens estavam ocupadas por barreiras policiais e militares. Por vezes era necessário descer antes da ponte ou da barreira, percorrer longos caminhos a pé, através dos corredores, que são as servidões de passagem na região sulina, ou buscar as velhas pontes ferroviárias, menos vigiadas, quando não atravessar banhados e vaus de rios.
Os exilados brasileiros eram estritamente vigiados, não só nos países vizinhos, mas até no norte da África e nos aeroportos europeus. Por isso o trabalho de despistamento era constante e necessário, e por vezes atingia o auge quando o perseguido chegava na cidade geminada. Ali era necessário faze-lo “desaparecer” debaixo do nariz dos vigilantes, e faze-lo “renasccer”, por vezes literalmente, do outro lado. Para tanto o conhecimento minucioso do ambiente era indispensável, para se esgueirar entre as pilhas de tábuas de uma estação de trem ou no burburinho de uma rodoviária, quando as pegadas se perdiam para que seus donos pudessem se salvar.
O livro de Marlon nos leva a uma narrativa emocionante, mas que nunca perde o sentido da precisão e da pesquisa rigorosa. Também estabelece alguns critérios de análise para aprofundar o conhecimento dessa região e desse momento da vida brasileira.
Em primeiro lugar, o livro compartilha com outras pesquisas a visão de dois momentos nas rotas do exílio durante os 21 anos de regime de exceção. Há um primeiro momento, que vai de 1964 a 1968, em que predominam nessa rota os membros do governo anterior, ou mesmo os habitantes da região que devem fugir para salvaguardar a liberdade ou salvar a vida. De 1968 em diante predominam os remanescentes da luta armada que toma conta da resistência nos grandes centros urbanos, sobretudo, do Brasil. No primeiro caso, os exilados muitas vezes se estabelecem na região, tentam reestruturar suas próprias vidas, nem sempre com sucesso, ou se dirigem para Montevidéu. No segundo momento, a passagem pela fronteira costuma levar a Montevidéu, e daí para o Chile, a Bolívia, a Argentina, não raro a Europa, sobretudo depois que o clima político também se fechou nesses países vizinhos. Também chama a atenção que muitas vezes a trajetória se dá no sentido inverso: são exilados que buscam retornar ao país para estabelecer contatos e continuar a luta, num movimento que por vezes levou à morte seus protagonistas.
Outro aspecto decisivo é a natureza dos laços, por vezes fugazes, que se estabelecem entre os personagens desse momento e desse micro- e macrocosmo da fronteira. Os que de algum e variado modo tiveram contato com o mundo da clandestinidade do período ditatorial hão de recordar que nas instruções orais ou mesmo escritas sobre o comportamento, predominava o traço da impessoalidade. Devia-se confiar apenas em senhas, sinais de identificação pré-combinados e mutáveis, evitar nomes próprios, usar “nomes de guerra” no jargão revolucionário ou “codinomes” no jargão repressor, etc. Também devia-se confiar apenas na própria organização e em nada mais.
Entretanto, na prática a práxis muitas vezes era bem outra, e aqui no caso em foco não foi diferente. Valia mais o traço pessoal, o laço de família ou de amizade, o desejo de integridade pessoal convivia com o traço da opção ideológica, criando uma “ética de solidariedade” que se sobrepunha até mesmo as divisões políticas ou de classe social. E também vale assinalar que isso ocorria num momento de profunda fragmentação e desagregação da esquerda brasileira, acuada por suas sucessivas derrotas no campo armado em que grande parte da juventude e de militantes mais experientes tinha escolhido para atuar. Para complicar esse caldo de cultura já avantajado, os quadros dramáticos dessa luta pela sobrevivência física e política se dá sob uma moldura em que muitas vezes supostos inimigos figadais confraternizam em solidariedade, em que ex-maragatos ajudam (quando não se tornam) comunistas, estancieiros abastados se tornam campeões e simpatizantes das causas sociais, tanto por opção ideológica, quanto, novamente, por questões de família, amizade, ou simplesmente aquela tenção tenaz de ajudar o perseguido e se opor ao perseguidor.
Por que trilha se vá, o livro de Marlon conduz o leitor a um universo pouco conhecido, ainda hoje, das lutas pela liberdade e da resistência brasileira ao regime discricionário instalado em 1964 e que deixou feridas dolorosas na nossa história e na nossa cultura. Felizmente, como aponta o livro, ali ficou também a sutura indelével da solidariedade humana e a marca imorredoura dos que, de diversas maneiras, optaram pela coragem da liberdade.

Flávio Aguiar*

*Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade de S. Paulo, autor de A palavra no Purgatório: literatura e cultura nos anos 70 (São Paulo: Boitempo Editorial, 1996), além de autor ou organizador de mais de 20 livros. Jornalista, militou na imprensa alternativa durante a Ditadura Militar e hoje é correspondente em Berlim da Agência Carta Maior (www.cartamaior.com.br) e da Rede Brasil Atual (www.redebrasilatual.com.br), que publica a Revista do Brasil.

Apresentação do livro Retratos do exílio (solidariedade e resistência política na fronteira), de Marlon Gonsales Aseff. (Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2009)