A chama está sempre acesa no velho fogão à lenha da cabana que abriga o casal que já leva mais de 50 anos de convívio. Trinta deles ao pé do Morro das Aranhas, no leste da Ilha. O popular “mais velho” e sua esposa Palmira são os únicos moradores do Moçambique, a maior extensão de praia de Florianópolis, guardiões de um pedaço de terra que ainda mantém as mesmas características de uma ilha ancestral. Nascido na rua Almirante Lamego, em uma cidade já muito distante do que hoje se percebe como capital, o “mais velho”, aliás Divo Régis, relembra dos velhos tempos com a vivacidade de quem cresceu em uma outra época. “Descarreguei muito navio na Ilha do Carvão e no trapiche do Hoepcke; era gasolina, querosene e óleo em tambor”, diz o ancião que ainda mantém o sorriso franco e o espírito alegre dos dias em que viveu como estivador, na ilha do final dos anos 40. “Quando vim morar na praia, eu ia até o Rio Vermelho e de lá caminhava com o povo até o centro, levando galinha, ovos, farinha, para trocar por coisas que faltavam aqui”, relembra. A pé, levava-se uma madrugada inteira de caminhada até chegar ao mercado público.
A
poucos minutos do Costão do Santinho, um dos mais luxuosos resorts do país, a
velha cabana do “mais velho”, não possui água nem luz, mas nem por isso deixa
de abrigar um casal que vive intensamente o seu pedaço do paraíso. O mundo
mudou de trinta anos para cá, “o peixe acabou em 100%”, mas ainda assim a
tarrafa costuma voltar do mar com as tainhotas e cocorocas que garantem a
fritada do dia. Prestes a completar 76
anos, único remanescente de uma família de sete irmãos, o guardião do
Moçambique pesa os dias de hoje nos dois lados da moeda. “Digo pra mulher que
devíamos ter vindo mais tarde para essa vida, para viver as facilidades que
estão aí”. Mas ressalta que “o problema
é que falta muito emprego, antigamente não faltava serviço, a gente tinha que
se meter lá no Bar do Quido, perto da Igreja, quando queria descansar, mas o
pessoal da estiva sempre nos encontrava”.
Antes
da estiva, porém, muita água passou embaixo da ponte Hercílio Luz. O menino
Divo começou vendendo o jornal O Estado, cedo do dia, quando deixava o Morro da
Ponte e caminhava até o ponto de ônibus do Arlindo. No Estreito entregava 10
jornais e vendia outros 40, de onde tirava sua comissão. “Naquela época pouca
gente sabia ler”. Certa vez, um boi desgarrado da tropa que ia para o matadouro
do continente quase o acertou com os chifres, levando junto todos os jornais do
dia. Foi a deixa para trocar de emprego e buscar uma posição na copa do famoso
Hotel La Porta, que marcou uma época de ouro da capital. Ali chegou a terceiro
cozinheiro, de onde saiu para a conceituada Padaria Carioca. Mas um
desentendimento com a proprietária o levaria mais uma vez às ruas, desta vez
para fazer carreto no Mercado Público. “Levava café, carne salgada, peixe,
cabeça de boi, para os fregueses que moravam ao redor da Praça, ou lá pelos
trapiches onde hoje fica a Beira Mar Norte”. Tempos depois ganhou o mundo, como
o palhaço Mandioca, no famoso circo do Biduca, que saiu de Florianópolis e foi
dar no Rio de Janeiro.
Do Rio voltou já com barba na cara, mais interessado nas
moças da freguesia. Foi a época das sete mulheres, as sete namoradas que
manteve por um bom tempo. “Tinha a Rosa, Anita, Alba, Emília, e outras que nem
lembro o nome. Era viúva, desapartada, solteira, eu dava conta de todas”. Isso,
claro, antes de conhecer Palmira, que ganharia definitivamente seu coração e
com quem gerou 18 filhos, “todos vivos”.
Hoje
o “mais velho” divide seu tempo com os pescadores do costão das Aranhas, a lida
caseira com a mulher e a ronda nos bares do Rio Vermelho, sempre que a ocasião
se oferece. Já vão longe os tempos da estiva, onde compartilhava trabalho e
lazer com os companheiros João Pretinho e Cabeça de Côco, entre tantos outros que fizeram aquela velha
cidade que já nem existe mais.
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