Uma fronteira pode significar a vida ou a morte. Pode ser uma linha divisória ou um traço de união. Um muro ou uma passagem. O confronto ou o encontro. A guerra ou a confraternização. A prisão ou a liberdade. O exílio ou o retorno.
Certas fronteiras são imensas, como o oceano. Outras são apenas uma linha imaginária ou pintada no chão, entre marcos que assinalam a diferença dos países. Este último é o caso da fronteira entre o Brasil e o Uruguai, quando atravessa as cidades geminadas de Santana do Livramento, do lado brasileiro, e Rivera, do lado uruguaio.
Geminadas desde o seu nascimento no século XIX, Rivera e Santana foram palco de exílios e retornos, fugas em busca da liberdade e perseguições, lutas sangrentas e fratricidas. Não raro perseguidos de morte foram salvos por estarem poucos metros para lá da linha virtual que corta o meio de uma rua. Exilados ilustres ali encontraram refúgio, como o argentino José Hernandez: diz a tradição que o primeiro livro do Martin Fierro foi escrito em Santana. Outros, por vezes desconhecidos pela maioria de seus contemporâneos, ali desempenharam papéis fundamentais no salvamento de vidas ameaçadas por ditaduras e desavenças políticas.
Todo esse mundo peculiar da fronteira e de Santana/Riveira é evocado nesse livro, de paciente e ampla pesquisa, de Marlon Aseff, sua tese de doutorado. Mas a obra tem seu foco nos eventos que ali se passaram durante a recente Ditadura Militar que, de 1964 a 1985, mergulhou o Brasil no seu pior cerceamento das liberdades básicas da cidadania, entre as muitas que nossa história teve.
Como núcleo urbano unificado de maior porte em toda a fronteira em grande parte seca entre o Brasil e o Uruguai, a conurbação internacional Santana/Rivera tornou-se espaço privilegiado para perseguidos e mensageiros de oposição ao regime autoritário buscarem refúgio, passagem ou mesmo a volta clandestina ao país de origem. Para usar uma metáfora paradoxal e provocante, pode-se dizer que não raro o protagonista de uma fuga dormia numa casa de um lado da fronteira e acordava noutra, do lado oposto. Tudo isso graças ao heroísmo por vezes anônimo, mas sempre dedicado e ardente, dos que amavam a liberdade, a solidariedade, a justiça, muitas vezes com risco da própria integridade física, senão da vida.
Entretanto, atravessar essa fronteira nem sempre era fácil. Os protagonistas dessas fugas vinham por vezes de longe, de estados distantes, como São Paulo, Pernambuco e outros. Tinham que chegar a Porto Alegre e depois passar pelos 600 km. da capital até Santana, indo por estradas cujas pontes e paragens estavam ocupadas por barreiras policiais e militares. Por vezes era necessário descer antes da ponte ou da barreira, percorrer longos caminhos a pé, através dos corredores, que são as servidões de passagem na região sulina, ou buscar as velhas pontes ferroviárias, menos vigiadas, quando não atravessar banhados e vaus de rios.
Os exilados brasileiros eram estritamente vigiados, não só nos países vizinhos, mas até no norte da África e nos aeroportos europeus. Por isso o trabalho de despistamento era constante e necessário, e por vezes atingia o auge quando o perseguido chegava na cidade geminada. Ali era necessário faze-lo “desaparecer” debaixo do nariz dos vigilantes, e faze-lo “renasccer”, por vezes literalmente, do outro lado. Para tanto o conhecimento minucioso do ambiente era indispensável, para se esgueirar entre as pilhas de tábuas de uma estação de trem ou no burburinho de uma rodoviária, quando as pegadas se perdiam para que seus donos pudessem se salvar.
O livro de Marlon nos leva a uma narrativa emocionante, mas que nunca perde o sentido da precisão e da pesquisa rigorosa. Também estabelece alguns critérios de análise para aprofundar o conhecimento dessa região e desse momento da vida brasileira.
Em primeiro lugar, o livro compartilha com outras pesquisas a visão de dois momentos nas rotas do exílio durante os 21 anos de regime de exceção. Há um primeiro momento, que vai de 1964 a 1968, em que predominam nessa rota os membros do governo anterior, ou mesmo os habitantes da região que devem fugir para salvaguardar a liberdade ou salvar a vida. De 1968 em diante predominam os remanescentes da luta armada que toma conta da resistência nos grandes centros urbanos, sobretudo, do Brasil. No primeiro caso, os exilados muitas vezes se estabelecem na região, tentam reestruturar suas próprias vidas, nem sempre com sucesso, ou se dirigem para Montevidéu. No segundo momento, a passagem pela fronteira costuma levar a Montevidéu, e daí para o Chile, a Bolívia, a Argentina, não raro a Europa, sobretudo depois que o clima político também se fechou nesses países vizinhos. Também chama a atenção que muitas vezes a trajetória se dá no sentido inverso: são exilados que buscam retornar ao país para estabelecer contatos e continuar a luta, num movimento que por vezes levou à morte seus protagonistas.
Outro aspecto decisivo é a natureza dos laços, por vezes fugazes, que se estabelecem entre os personagens desse momento e desse micro- e macrocosmo da fronteira. Os que de algum e variado modo tiveram contato com o mundo da clandestinidade do período ditatorial hão de recordar que nas instruções orais ou mesmo escritas sobre o comportamento, predominava o traço da impessoalidade. Devia-se confiar apenas em senhas, sinais de identificação pré-combinados e mutáveis, evitar nomes próprios, usar “nomes de guerra” no jargão revolucionário ou “codinomes” no jargão repressor, etc. Também devia-se confiar apenas na própria organização e em nada mais.
Entretanto, na prática a práxis muitas vezes era bem outra, e aqui no caso em foco não foi diferente. Valia mais o traço pessoal, o laço de família ou de amizade, o desejo de integridade pessoal convivia com o traço da opção ideológica, criando uma “ética de solidariedade” que se sobrepunha até mesmo as divisões políticas ou de classe social. E também vale assinalar que isso ocorria num momento de profunda fragmentação e desagregação da esquerda brasileira, acuada por suas sucessivas derrotas no campo armado em que grande parte da juventude e de militantes mais experientes tinha escolhido para atuar. Para complicar esse caldo de cultura já avantajado, os quadros dramáticos dessa luta pela sobrevivência física e política se dá sob uma moldura em que muitas vezes supostos inimigos figadais confraternizam em solidariedade, em que ex-maragatos ajudam (quando não se tornam) comunistas, estancieiros abastados se tornam campeões e simpatizantes das causas sociais, tanto por opção ideológica, quanto, novamente, por questões de família, amizade, ou simplesmente aquela tenção tenaz de ajudar o perseguido e se opor ao perseguidor.
Por que trilha se vá, o livro de Marlon conduz o leitor a um universo pouco conhecido, ainda hoje, das lutas pela liberdade e da resistência brasileira ao regime discricionário instalado em 1964 e que deixou feridas dolorosas na nossa história e na nossa cultura. Felizmente, como aponta o livro, ali ficou também a sutura indelével da solidariedade humana e a marca imorredoura dos que, de diversas maneiras, optaram pela coragem da liberdade.
Flávio Aguiar*
*Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade de S. Paulo, autor de A palavra no Purgatório: literatura e cultura nos anos 70 (São Paulo: Boitempo Editorial, 1996), além de autor ou organizador de mais de 20 livros. Jornalista, militou na imprensa alternativa durante a Ditadura Militar e hoje é correspondente em Berlim da Agência Carta Maior (www.cartamaior.com.br) e da Rede Brasil Atual (www.redebrasilatual.com.br), que publica a Revista do Brasil.
Apresentação do livro Retratos do exílio (solidariedade e resistência política na fronteira), de Marlon Gonsales Aseff. (Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2009)
Nenhum comentário:
Postar um comentário