Ao olhar um quadro de
Valda Costa no MASC, na década de 1980, fui capturada por
uma imagem que
me deteve por
alguns instantes:
uma ninfa negra
de cabelos loiros, tal
qual Afrodite, nascida
das espumas do mar,
que me
olhava com olhos
grandes, tristes
e penetrantes como
das estátuas votivas da antiga Mesopotâmia. A roupa
leve e transparente
confundia-se com as ondas
do mar e com
o corpo bem
torneado da deusa do amor, do sexo, da fecundidade, do casamento e da beleza corporal. De quem
era essa obra?
Quem era
essa deusa que se projetava no primeiro plano do quadro com leveza, sensualidade,
com ar
melancólico e brejeiro? Seria um auto-retrato
da artista que
pintou a tela?
No mesmo museu, descobri mais
quatro obras
da mesma artista.
Todas as quatro, diferentemente
da primeira, retratavam temas vinculados à cidade
de Florianópolis, nos seus aspectos urbanos e culturais. Outra
coisa me
intrigou, sobretudo na obra
intitulada Morro,
na qual também
projetados no primeiro plano
do quadro se encontram e desencontram “casebres” de madeiras
espremendo-se uns aos outros.
O que se
destaca aos olhos do observador
são os telhados
que dão ritmo
e profundidade à composição.
Seria esse o quintal
da casa de Valda Costa?
O ângulo de visão
da artista é o de quem
tinha intimidade
com o local:
roupas penduradas nos
varais, portas
e janelas semi-abertas, simplicidade, frescor. A vida que passa de forma simples elaborada e vivida
na tela: poética
das imagens do dia-a-dia
da artista. Na introdução
do seu livro
A Poética
do Espaço, Bachelard (1993, p. 6)
diz que no “devaneio
poético a alma está em
vigília, [pois]
[...] para ter uma imagem poética não lhe é necessário mais do que um movimento da alma”.
O quadro da artista
retrata o movimento
do deslumbramento diante das imagens banais
do cotidiano.
Com um olhar próprio
e peculiar sobre
os aspectos físicos
e culturais de Florianópolis, Valda Costa
tratou a temática da cidade, muito
difundida e apreciada pelos colecionadores e tão
presente na iconografia
artística local,
de forma inovadora: incorporou às suas telas o elemento “morro”
e os personagens afrodescendentes.
Seriam essas obras narrativas
biográficas? Seriam espelhos opacos de uma vida?
As superfícies das telas
de Valda Costa seriam espelhos de suas
várias imagens, dos seus
vários “eus”?
Seriam os espaços criados
para a reinvenção de outros
mundos, lugares,
vidas desejadas e, talvez,
jamais vividas, a não
ser pelo desejo?
Para compartilhar
o mundo de Valda Costa,
fez-se necessário penetrar
nas entranhas de sua
vasta produção,
pois muito pouco resta
documentado sobre a artista,
nada ou
quase nada
foi escrito sobre
ela: sobraram somente
alguns fragmentos
de jornais que
anunciam as suas exposições
e as narrativas orais
daqueles que a conheceram, além de algumas poucas entrevistas
concedidas pela própria
artista.
As imagens
ficaram retidas na minha memória como um enigma. Em 2004, quando
da elaboração do projeto
de doutorado, novamente
essas imagens povoaram os meus pensamentos.
Debruçando-me mais sobre
a obra de Valda Costa,
percebi o quanto está impregnada de vida. As referências
de vida estão na obra,
e vice-versa: o morro,
o negro, a negra,
o Hospital de Caridade, local
onde Valda trabalhou por muitos anos como atendente de enfermagem[1]
e onde vendeu as suas
primeiras obras.
A Alfândega foi o espaço
que “a acolheu”. Foi por meio da Associação Catarinense de Artistas Plásticos
(ACAP), localizada na Alfândega, na figura
do seu presidente,
José Pedro Heil, que Valda conseguiu ser internada no Instituto
de Psiquiatria, em
1993. Além disso, foi nesse mesmo espaço que ela
produziu boa parte de sua obra nos momentos mais difíceis do final
de sua curta
vida. Seria a obra
de Valda Costa um
auto-retrato? Uma autobiografia?
O fenômeno, se assim pudermos descrever
Valda Costa, foi marcado pela fugacidade
e pelo paradoxo.
Sua vida
e sua obra
também estavam presas
pelo paradoxo,
talvez em
virtude da procura
por algo
que sempre
lhe tenha escapado pelos
dedos. Valda ficou presa
ao seu mundo,
avançou num lugar fixo,
viveu sem ter
sido capaz de juntar os seus
traços incompletos
de identidade, foi privada
de identidades construídas por ela mesma[2].
Será essa a sua angústia
melancólica traduzida nos olhos dos personagens
pintados em
suas telas?
Texto extraído da Tese “Para uma história das sensibilidades e das
percepções: Vida e Obra em Valda Costa”, de Jacqueline Wildi Lins.
[1]
Essa informação consta no currículo da artista, extraído da pasta encontrada no
acervo do Museu de Arte de Santa Catarina. Entretanto, alguns funcionários do
Hospital de Caridade (que trabalharam com Valda Costa) e os médicos Vilmar
Gerent e Hercílio Varela, ambos funcionários daquela instituição e também
colecionadores das obras da artista, afirmaram em depoimentos que ela atuou não
como enfermeira ou ajudante de enfermagem, e sim como servente ou serviços
gerais.
[2]
Valda Costa, como veremos na seqüência desta pesquisa, circulou em diferentes
espaços de Florianópolis, conviveu com pessoas de diversas classes sociais,
morou em diversos locais da cidade: viveu várias vidas e incorporou várias personagens.
Entretanto, ficou presa ao seu mundo, terminando a sua trajetória de vida (ou
“das várias vidas”) num lugar de passagem, porém fixo, ou seja, do mesmo ponto
de onde partiu. Nesse sentido, utilizo o termo “lugar fixo” inspirada na metáfora
do barco utilizada por Foucault (2001, p. 421-22): “o barco é um pedaço de
espaço flutuante, um lugar sem lugar que vive por si mesmo, que é fechado em si
e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar e que, de porto em porto, de
escapada em escapada para a terra, de bordel a bordel, chega até as colônias
para procurar o que elas encerram de mais precioso em seus jardins”. Você
compreenderá por que o barco foi para a nossa civilização, do século XVI aos
nossos dias, ao mesmo tempo e não apenas, certamente, o maior instrumento de
desenvolvimento econômico (não é disso que falo hoje), mas a maior reserva de
imaginação. O navio é a heterotopia por excelência”. É importante não perder de
vista que, a partir de análises literárias, Foucault (1981) afirma que não
vivemos em espaços homogêneos: “o espaço no qual vivemos, pelo qual somos
atraídos para fora de nós mesmos, no qual decorre precisamente a erosão de
nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos
sulca é também em si mesmo um espaço heterogêneo”. O autor nomeia os espaços,
ou seja, as utopias, que são os posicionamentos sem lugar real, espaços
essencialmente irreais que nos possibilitam as fábulas e as heterotopias: lugares reais,
delineados pela instituição sociedade, nos quais os posicionamentos reais estão
representados e invertidos. Esses lugares são utopias realizadas, lugares de
representações culturais. O lugar existe realmente, e nele há a representação
de posicionamentos culturais. São
lugares que estão fora de todos os lugares (FOUCAULT, 1981).
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