Diz-se
que os olhos
são os espelhos
da alma, pois
refletem e deixam refletir as sensações
e os desejos, como
aponta Chauí (1988). Segundo Leonardo da
Vinci, os olhos são
a janela do corpo,
“por onde
a alma especula e frui a beleza
do mundo, aceitando a prisão
do corpo que,
sem esse
poder, seria um
tormento” (CHAUÍ, 1988, p. 31). O poder dos olhos em
Valda Costa está na constância melancólica, é quase
uma marca registrada da artista. Para aqueles que a
conheceram, como Eliane Oliveira, os olhos
dos personagens de Valda são os olhos
dela própria, que
tais quais
os do seu pai,
“seu” Timóteo, tinham esse ar de tristeza e melancolia”[1]
O
paradoxo é a marca. A obra está inserida em
muitos lugares
e, ao mesmo tempo,
em nenhum
lugar. Talvez
esteja num entre-lugar. Valda viveu
no limiar[2]:
a exuberância das formas
e das cores é compartilhada com a tristeza e a melancolia fixada nos
traços e, muitas vezes,
no corpo de suas
figuras, que
são, provavelmente, desdobramentos da artista, já que possuem os mesmos
padrões visuais.
São esses
os vários duplos
de Valda Costa? Será uma tipologia (séries)
criada propositalmente pela artista, que, segundo
consta, foi a primeira[3]
a pintar o cotidiano de negros e negras no Estado
de Santa Catarina?
A
produção de Valda Costa
indica esse possível
caminho, já
que há repetição
de tipos ou
séries. A palavra
“série”, quando
aplicada à pintura, pode ser
descrita para as obras
encomendadas por um
patrono, cujo
tema dá unidade
ao grupo, e que
são expostas em
conjunto, ou
para as obras
realizadas ao mesmo tempo[4]
com procedimentos técnicos
semelhantes a partir
de motivos idênticos
ou similares,
desde que
a série seja intencionada pelo
artista e exibida em
conjunto.
Em
Valda Costa, as séries
se referem[5]
a uma ordenação do seu
mundo, na repetição
de tipos, na construção
de possíveis versões
de si. Segundo
Lacan (1998, p. 448-453), a repetição de
um mesmo,
ao ser repetido, inscreve-se como
distinto, já
que a repetição
possui o estatuto de uma “intrusão conceitual”, de uma insistência
significante. Os elementos
se repetem para fazer aparecer deliberadamente o que
não se mostra. Valda se repetiu, se
mostrou e se ocultou[6] nas
suas telas,
pintou vida desejada e vivida, narrou através
das tintas.
Negros, jovens, fortes, belos. Homens duplicados, homens
dos desejos de Valda: seus filhos, seus amores.
Valda amava os negros. Todo homem
afrodescendente, “de porte”, que chegava ou
passava por Florianópolis ela namorava. Eram modelos,
jogadores de futebol,
músicos, artistas.
Em depoimento,
o artista plástico
Décio David[7]
disse que “Valda Costa
teve vários namorados,
mas nenhuma paixão
foi igual à que
ela teve pelo
Marcão[8]”.
Várias
vidas, várias faces,
várias telas (ou
seriam palcos?). Por
um lado,
como Nina, foi mãe,
filha, esposa.
Como Vivalda Teresinha da Costa trabalhou como
enfermeira[9]
e cabeleireira, levando uma vida simples, sem brilho, sem glamour. Mas,
por outro,
também como
Valda Costa (como
passou a assinar o seu
nome nas telas),
conheceu o mundo da fama,
teve o respaldo de políticos, críticos e marchands, comprou carro e apartamento,
teve luxo e reconhecimento.
Pediu de tudo e para
todos, viveu de favores
e teve muitos amores.
Mas somente um a levou à loucura.
Qual dessas vidas
lhe pertencia?[10]
Ninfas negras, jovens,
belas e sensuais. Amantes
da música e das artes.
As faces retratadas são
a mesma face,
as máscaras são
diversas. O vestido listrado saiu muitas
vezes do guarda-roupa
da memória, assim
como os acessórios.
O retrato (ou
auto-retrato) é pintado
(na maioria das vezes
em primeiro plano) por baixo de uma camada de tinta (ou seria
pó-de-arroz?) que
mascara a face. O pincel
“é assim como
um bisturi.
Será também uma navalha,
um raspador, e por
que não,
uma picareta? Isto
é também um
trabalho de arqueologia”
(saramago, 1999).
Valda incansavelmente retirou e recolocou camadas de tintas,
se fez em arquivo
dando visibilidade às suas diversas faces.
Pintou tudo o que
pode e desejou ver e dizer
(ou mesmo
esconder) de si,
se construiu e reconstruiu na vida paralela que
criou (pintou) para si.
Texto extraído da Tese “Para uma história das sensibilidades e das
percepções: Vida e Obra em Valda Costa”, de Jacqueline Wildi Lins.
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[1] Eliane Oliveira, funcionária pública e amiga de Valda
Costa, freqüentou a casa da artista no Morro do Mocotó e depois dividiu com ela
um apartamento no bairro Itaguaçu durante dois anos, na década de 1980. Em
entrevista, disse que só deixou de morar com a amiga depois que Valda conheceu
Marco Antônio Riobranco dos Santos (OLIVEIRA, 2007).
[2] Valda Costa sempre viveu no limiar, seja o da fama ou
o do total esquecimento, o da riqueza ou o da pobreza, o da alegria ou o da
tristeza, o do reconhecimento ou o da rejeição, entre outros.
[3] Martinho de Haro, entre outros artistas de Santa
Catarina, já haviam inserido o morro e as mulatas em suas temáticas, mas com
uma conotação mais vinculada à exuberância, ao Carnaval e à sensualidade.
[4] No caso de Valda Costa, acredito que não houve
exposição em conjunto de séries. Todas as exposições elencadas em seu currículo
foram investigadas, e nenhum documento foi encontrado. Além do MASC, as demais
instituições pesquisadas não possuem registros anteriores à década de 1990.
[5] Valda também realizava séries (ou, talvez, fosse mais
conveniente dizer repetições de temas) por encomendas.
[6] Segundo o depoimento de José Ricardo Ramos de Souza,
proprietário da molduraria ARTCA (molduraria que emoldurou muitas obras de
Valda), Valda se escondia atrás de suas telas, criava outras Valdas, duplos
dela mesma.
[7] Décio David, artista plástico, pintor autodidata,
amigo de Valda Costa, de quem possui grande influência estilística. É
coordenador do Núcleo de Estudos Negros (NEN). Segundo Décio, Marcão foi a
grande paixão de Valda Costa, negro bonito vindo do Rio Grande do Sul e pai de
cinco dos seis filhos da artista (DAVID, 2005).
[8] Marco Antônio Riobranco dos Santos viveu muitos anos
com Valda Costa, e o casal teve cinco filhos, uma menina e quatro rapazes.
Marcão, como era conhecido, é gaúcho e chegou em Florianópolis para trabalhar como
modelo (manequim). Teve problemas com a Justiça e foi por diversas vezes preso.
Cursou, na Universidade Federal de Santa Catarina, Geografia e Filosofia, não
terminou nenhum dos dois cursos (abandonou o primeiro em 1996 e o segundo em
2002). Hoje é aposentado por invalidez pela Universidade Federal de Santa
Catarina, onde trabalhou como jardineiro alocado na Prefeitura do Campus.
[9] Segundo depoimento do Dr. Gerent, médico do Hospital
de Caridade desde os anos 1970, Valda Costa trabalhava no setor de serviços
gerais daquela instituição (GERENT, 2007).
[10] Talvez como o personagem Omar Kayan, de Fernando
Pessoa, Valda tivesse muitas e diferentes personalidades: “Omar tinha uma
personalidade; eu, feliz ou infelizmente, não tenho nenhuma. Do que sou numa
hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci.
Quem, como Omar, é quem é, vive num só mundo, que é o externo, mas num
sucessivo e diverso mundo interno. A sua filosofia, ainda que queira ser a
mesma que a de Omar, forçosamente o não poderá ser. Assim, sem que deveras o
queira, tenho em mim, como se fossem almas, as filosofias que critique; Omar
podia rejeitar todas, pois lhes eram externas, não as posso eu rejeitar, porque
são eu” (PESSOA, 1999, p. 395).
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