A abertura da Segunda Feira Binacional do Livro nos presenteou com um simbolismo marcante, prenúncio do sucesso que vinha à galope. A banda militar que se posicionava no ensolarado Parque Internacional, na verdade não era uma, mas duas. Os músicos do exército uruguaio perfilavam-se aos do exército brasileiro em uma só formação, imperceptível ao cidadão menos avisado. Estávamos eufóricos: Uruguai e Brasil se namoram, se gostam, nada mais separa nossos povos!. Os políticos falaram. Wainer Machado, prefeito de Santana, bem lembrou os vizinhos, do Paraguai, da Argentina, do Chile. Marne Osório, intendente de Rivera, propôs abolirmos de uma vez a expressão “linha divisória” de nosso alfabeto em comum.
Chegava a hora de todos conhecerem os “padrinhos”. O santanense Carlos Urbim, patrono brasileiro, e Tomás de Mattos, o patrono uruguaio, não poderiam ter sido melhor escolhidos para a ocasião. Se Urbim era um guri de pé no chão, a reinar absoluto por seu território de infância, Tomás de Mattos impôs uma energia contagiante, de fé no futuro de nossas nações que se olham em um auto-conhecimento desta vez irreversível. Foram durante todo o tempo, dois literatos que se mostraram em toda sua generosidade, afinados com os anseios de um novo tempo, de uma nova geração, eles mesmos embebidos de uma juventude contagiante.
Na feira, as carpas militares fervilhavam de crianças brasileiras, uruguaias, doble-chapas, enfim...de crianças em estado puro, que participavam com um desejo incontido de engolir o mundo de letras e artes à sua volta. Na Primeira Conferência Binacional de Cultura, Margarete de Moraes, do Ministério da Cultura do Brasil, e Alejandro Gortázar, do Ministério da Educação do Uruguai, mostraram que os governos Dilma e Mujica estão afinadíssimos, mas que temos que fazer acontecer além do institucional. Margarete, interessadíssima em nossas nuances de fronteira; Alejandro, enfático na constatação das mazelas da população local e a situação de risco social dos afrodescendentes. Uma única nota cinza: o secretário de cultura de Santana tinha agenda mais importante para a ocasião e teve de se ausentar do encontro.
O saldo extremamente positivo prevaleceu, no entanto, na figura do embaixador Vitor Gobato, do Consulado Geral do Brasil em Rivera, que demonstrou sua paixão pela fronteira, que deve render uma parceria fundamental para os próximos anos. Entre tantos eventos paralelos, de dramatizações, lançamentos, talleres e debates, nossa mesa, intitulada “ A Multi-Fronteira, Hoje & Ayer”, foi inesquecível. No início da conversa, a idealizadora do encontro, Liane Chipollino Aseff, leu um poema do poeta riverense Olyntho Maria Simões, e sem esperar, nos deparamos com a presença de sua filha logo na primeira fila. Circunstâncias que emocionam. A jornalista Duda Hamilton lembrou da emergência do resgate de nossos acervos documentais, dispersos e em situação de conservação alarmante. Cacho Silveira, o radialista e memorialista riverense, jogou afinado com o teatrólogo e poeta Michel Croz, pedindo pela não-privatização do Teatro Municipal de Rivera. Michel recitou um poema abismal sobre o ser fronteiriço: “Vivo en una ciudad que amo, que ódio, que detesto, que sueño, paraíso lleno de paraísos y cerros y pandorgas y mariamoles, y el infierno tan temido de mis enemigos (que son lo mejor que tengo)”.
Eu lembrei do Parque, ele mesmo um território e personagem de nossa história social, impregnado ainda pelas marcas da chacina dos militantes comunistas em 1950, dos tipógrafos e jornalistas federalistas em 1903, da presença dos exilados e dos espiões da ditadura recente, dos que se alistavam na “Coluna Internacional”, em pleno CTG Fronteira Aberta, no episódio da Legalidade em 1961. Algo em comum com a poesia de Michel, onde demarcamos uma fronteira assinalada por uma luta de classes, a dividir, uma fronteira excludente e por vezes brutal. Como diria o amigo Gilberto Selau, com energias que ainda gravitam ao redor.
Entretanto, a poesia falou ainda mais alto, a literatura marcou pé. O que dizer de Fabián Severo, poeta artiguense que nos trouxe o portuñol, a força de seus versos e uma objetividade à toda prova, ao analisar o que vem a ser afinal uma literatura de fronteira (se é que realmemte existe). Fabián, a “nova paixão literária de Carlos Urbim”, conforme nos confessou o patrono, revelou seu amor pela literatura de João Guimarães Rosa e Simões Lopes Neto, entre um mate e outro. O link com a literatura de Arlindo Coitinho, o cronista maior de Santana, foi inevitável, e coube a Alejandra Rivero uma análise rica em detalhes e reveladora do artista, que ela teve o privilégio de entrevistar.
Personagens da arte fronteiriça, amizades novas, e um convívio afetuoso não faltaram nesses dias de Feira. O “bat-local”, para onde invariavelmente levávamos Carlos Urbim e seus amigos foi o restaurante Girasoles, em frente a Praça Flores. Ali, as noites da fronteira foram legítimas “noites du norte”, acaloradas e ricas em brindes e boas palavras. O jornalista montevideano Guille Garat e sua Vera, vieram de “buquebus” para conferir de perto essa aura de aire libre y carne gorda, que ainda impregna o imaginário das bordas da nação oriental. Nereo Mendes, Richard Bértiz e Marcelinho Garcia completavam a roda dos amigos imprescindíveis...
Brilharam nesta feira as crônicas do patrono juvenil, Rafael Fischer, de uma humildade tão vasta quanto um mundo particular, permeado por uma prosa deliciosa. Também as reminiscências de juventude do dr. Zuil Pujol, que recitava de cor, entre outros, os poemas do alferes Wamosy. O ator J.N. Canabarro esteve no Parque e as gestoras Marta Pujol e Magaly Ivañez consagraram-se de vez! O vice-cônsul do Brasil no Uruguai, o paraibano Cláudio Santana, emprestou toda a sua incansável solicitude, a lembrar-nos com sua presença e seu sotaque “nortista”, de uma enorme nação às nossas costas, que nos molda com intensidade. Foi o que percebi ao reverenciarmos os músicos Taiguara e Sérgio Sampaio, ou o escritor Guimarães Rosa, que tanto inspirou Fabián Severo.
Outras forças fundamentais a impulsionar a Feira foram os incríveis monitores da escola Carlos Vidal, orientados pela professora Sônia; a professora Idene e a presença da Urcamp, que estiveram o tempo todo imersos em um universo histórico, político e literário, informando e auxiliando os leitores binacionais.
Outras forças fundamentais a impulsionar a Feira foram os incríveis monitores da escola Carlos Vidal, orientados pela professora Sônia; a professora Idene e a presença da Urcamp, que estiveram o tempo todo imersos em um universo histórico, político e literário, informando e auxiliando os leitores binacionais.
Um parênteses para os números parciais: nada menos que 3.500 livros foram vendidos somente nos dois primeiros dias e pelo menos 15 mil pessoas passaram pela Feira. Tudo isso confluiu para um encerramento grandioso, quando o patrono brasileiro, Carlos Urbim, comandou, levitando, um passeio em torno do Parque. De minha parte, embebido pela euforia contagiante de nosso eterno patrono, acho que avistei ao cair da tarde, três vultos felizes, passeando lado a lado, perto da fonte luminosa. Um gordinho simpático, um negro esbelto e um senhor, meio alemão, de cabelos brancos. Tchê, não quero te dizer nada, mas juro que eram o Miguel, o Bueno e o professor Müller.
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Caros amigos queremos agradecer a disponibilidade de vocês em estarem conosco na feira e proporcionar-nos uma atividade do nível da Multi Fronteira, hoje & ayer.Com certeza ela deu profundidade e qualidade a II Feira Binacional do Livro.
ResponderExcluirContamos com vocês em 2012.
Um grande abraço.
Marta Pujol
Comissão Organizadora
Foi realmente incrível poder ter em nossa feira dois personagens como Liane e Marlon. Um grande abraço!
ResponderExcluirE este ano eu não consegui, mas ano que vem quero ter meus livros autografados!
Marlon e Liane, tenho certeza que Livramento-Rivera (assim passei a escrever o nome da minha cidade natal) estão fazendo história e construindo um futuro de diversidade cultural, onde a convivência é mais importante que as nossas sutis diferenças. Pena eu não ter podei compartilhar uma Patricia lá com vocês! Mas estive naquela ronda com o Bueno, o professor Muller e o Miguel. Tenham certeza! Abrazos/abraços Ricardo
ResponderExcluirMarta, foi realmente uma satisfação enorme poder compartir esses dias com você e todos os convidados, brasileiros e uruguaios.Parabéns às super gestoras, Magaly e Marta. Essa dupla ninguém segura..
ResponderExcluirThomaz, parabéns pelo Blog da Feira, ficou uma maravilha. Conte com a gente para o que for preciso.
Ricardo, sei que tu estás sempre na luta pela cultura na nossa fronteira. Em breve nos encontramos!
Guris, belo texto e farto registro. Foi um prazer socializar esta feira binacional com todos. E que venham muitas mais, besos e gracias pela oportunidade.
ResponderExcluirDuda Hamilton