Por Pedro Dávila de Mello.
Com a morte de Roberto Fagundes, em Rivera, Ofélia caiu num
abismo de sentimentos. Primeiro veio a tristeza, depois, uma profunda depressão
jogou-a ao fundo do poço, e, por último, uma tentativa de suicídio. O amor
incondicional aos filhos Paulo e Aníbal, e o tratamento com psiquiatra
ajudaram-na a reerguer-se lentamente. Na verdade, tentou ficar bem durante mais
de quarenta anos, alternando as crises de tristeza com breves momentos de
euforia. Em todo esse tempo os filhos estiveram presentes dando-lhe apoio
emocional e financeiro. Na verdade, a dedicação à mãe foi tanta, que, impostos
pelas circunstancias, nalguns momentos chegaram a inverter os papéis de filhos
com os de pais. Condições estas que levaram os rapazes a uma exaustão física e
mental, contribuindo involuntariamente com a desestruturação familiar. Pensando
em melhorar a situação da mãe, resolveram hospedá-la numa casa de repouso.
Na tarde, antes da mudança, Ofélia Fagundes quis ter uma
conversa com seu filho mais velho. Para isso, chamou-o pelo telefone com
urgência. Em poucas horas ele já estava diante da mãe.
-- Fizeram muito bem em conseguir-me essa hospedagem, meu filho.
Começou dizendo-lhe assim que Paulo entrou na sala e a viu sentada na velha
poltrona.
-- A situação aqui em casa, com as empregadas, com a comida, com
tudo, estava ficando muito difícil. Estou velha e minha cabeça já não dá para
muitas questões. Penso que agora, na nova casa, possa descansar e conviver com
pessoas da mesma idade, aproveitando o tempo que me resta de vida.
O filho, atento e um pouco incomodado com a conversa, tentou
acomodar-se na outra poltrona a seu lado. Quando ia começar a justificar-se, a
mãe o interrompeu:
-- Não necessitas dizer-me nada. Tu e teu irmão fizeram muito
bem em conseguir-me esse asilo. Sabes que eu os amo e sempre amarei. Vocês
cuidaram-me com carinho e esmero durante todos esses anos, desde que o Roberto
faleceu, mas agora chegou a hora de descansarem um pouco.
-- Não estou entendendo, onde a senhora está querendo chegar?
--perguntou Paulo inquieto.
-- Fica tranquilo! Chamei-te porque tenho um assunto muito
importante para contar. – Ao dizer isso, olhou-o fixamente antes de continuar.
– Será a primeira e a última conversa sobre um tema que guardei a sete chaves
durante todos esses anos.
Sem dar-lhe tempo para qualquer pergunta, ela começou:
-- Eu já havia almoçado e estava prestes a sestear, quando
naquele dia de 1966 a campainha lá de casa soou. Ainda sonolenta abri a porta e
topei-me com três monges franciscanos em seus hábitos. O da frente perguntou-me
pelo teu pai. Surpresa e desconfiada, respondi-lhe que não sabia, pois ele
havia saído muito cedo de casa. Diante da negativa, despediram-se e, ao
retirarem-se, o do meio, que parecia ser o líder, apesar do capuz cobrir-lhe a
cabeça, fitou-me com ternura e esboçou um leve sorriso. Tive a sensação de
conhecê-lo, pois aqueles olhos, de certa forma, eram-me familiares. Assim que
partiram, pedi imediatamente para que o primo de vocês, Jacinto, que
casualmente estava na frente da casa, os seguisse, pois percebi algo de
estranho em seus comportamentos. Em uma hora ele retornou contando-me que os
três frades tinham ido até a Iglesia de la Inmaculada Concepción, e haviam
entrado pela porta dos fundos.
Prevendo que a história se alongaria, Paulo interrompeu o
relato.
-- Mãe, eu não estou entendendo nada. O que está acontecendo?
-- Silêncio. Não me interrompas. Essa história tenho-a guardada
no peito há muito tempo e necessito colocá-la para fora.
O tom quase áspero raramente fazia parte dos modos de sua mãe, o
que o deixou um pouco apreensivo, além de bastante curioso. Pausadamente, ela
continuou:
-- Naquele dia, o teu pai retornou tarde da noite. Eu mal podia
conter a vontade de perguntar-lhe a respeito de sua demora, quando ele
surpreendeu-me dizendo que esteve com uns monges, os mesmos que passaram em
nossa casa, e os levou em missão relâmpago até a cidade vizinha de Taquarembo.
“Até Taquarembo? Fazer o que lá?”, perguntei espantada.
“Eles estavam em missão secreta e tive que levá-los com
segurança”.
“Monges em missão secreta? Como assim?”
“Na verdade não eram bem monges. Estavam disfarçados de frades
e...”
“Fala homem, estou curiosa!”
“Estavam escoltando o Ernesto.”
“Quem é o Ernesto? E por que a escolta?”.
-- Antes de responder, teu pai deteve-se alguns segundos para
recobrar o ar. Ele estava visivelmente emocionado.
“Ernesto Guevara.”
“Quem? O Chê Guevara?”
“Sim, ele mesmo.”
“Isso são horas de zoares comigo?”
“Não estou brincando, querida. Um dos frades era o Chê. Veio em
missão secreta trazer o dinheiro que o Fidel mandou entregar aos líderes
brasileiros exilados em Taquarembo.”
-- Custei a acreditar no que o teu pai me contava. Achei que
poderia estar enganado, afinal de contas, por que mandariam o Chê a Rivera
cuidar pessoalmente de uma entrega? Além disso, era difícil crer que ele
tivesse batido à porta da nossa casa disfarçado de monge. Não, não, se teu pai
não estava enganado, então era algum tipo de brincadeira. Tratei de encará-lo,
e ele mirou-me com a ponta da sobrancelha erguida, uma reação que não deixava dúvida
sobre a seriedade do que me dizia. O nervosismo invadiu meu corpo. Tentei
extrair-lhe mais detalhes, mas foi em vão. Com muito respeito pediu-me para não
perguntar-lhe mais nada, pois era um segredo e, quanto menos eu soubesse,
melhor seria para todos. Fiquei quieta. Contudo, não me dando por vencida,
busquei informar-me com a esposa de outro camarada, dona Catalina, sobre o que
estava acontecendo. A muito custo, descobri que o Chê Guevara estava levando
quinhentos mil dólares, a fim de financiar o levante que estava sendo planejado
contra a ditadura recentemente instalada no Brasil.
-- Poderias explicar-me melhor, mamãe? -- perguntou o filho
boquiaberto.
-- Sim, para que possas entender com clareza, pois vocês eram
crianças naquela época, vou contar-te o que se sucedeu. Há um personagem muito
importante nesta história que se chama Leonel de Moura Brizola e que, em 1965,
no Uruguai, buscou unir os exilados com o propósito de organizar um levante
armado. Para tanto, tentou fazer um acordo entre os partidos de esquerda, o
famoso pacto de Montevidéu, com o PC do B, AP, PCB e o Partido Operário
Revolucionário Trotskista. Dessa união resultou a Frente Popular de Libertação,
cuja finalidade, como já te disse, era a retomada do poder por meio da luta
armada. A maioria dos integrantes era formada por ex-militares cassados das
Forças Armadas e da Brigada Militar do Rio Grande do Sul.
-- Nesse contexto que a senhora me conta, a esquerda Santanense
apoiou esse pacto? – Paulo a fitava com ansiedade. Era incrível, mas sua mãe
falava como se ainda mantivesse acesa a chama de civilidade e companheirismo
daqueles tempos.
Ofélia suspirou e, com os olhos vidrados no filho, pausadamente
continuou:
-- A esquerda de Sant´Ana do Livramento apoiou parcialmente.
Muitos comunistas da fronteira não aderiram ao pacto. Uma minoria que falava em
Marx, Hegel, Sêneca, reforma agrária, defesa dos oprimidos, paradoxalmente
vivia entrincheirada em suas fazendas, numa atitude clássica de comunistas
teóricos e de oligarcas feudais. Outros, mais cautelosos, calaram-se. Alguns
membros mais afoitos para uma resposta imediata ao golpe militar, entre eles o
teu pai, que defendiam uma postura coerente com os ideais pregados e até mesmo
o enfrentamento, caso necessário, discordavam dos discursos moderados que
outros proferiam, numa postura clara de passividade diante dos acontecimentos.
Posturas e atitudes essas que, segundo comentava-se à época, principalmente
entre os mais radicais, ficavam em descompasso entre as teorias que defendiam e
a vida que tinham. Eram comunistas de dia, mas à noite brindavam com champanhe
com os golpistas nos melhores clubes da cidade. Eram pontos de vista distintos
dos nossos que, a muito custo, aprendi a respeitar.
Paulo, cada vez mais impressionado com a eloquência da mãe, que
aos oitenta e tantos anos ainda demonstrava muita lucidez, perguntou-lhe se
queria beber algo. Ofélia respondeu-lhe que não, preferindo continuar a
história que estivera engasgada há muitos anos.
-- Devido a seu “nacionalismo anti-imperialista”, Brizola era o
líder cujas ideias mais se aproximavam das de Fidel Castro para a Revolução no
Brasil. E, após o golpe militar de 1964, o seu grupo no Uruguai obteve ajuda de
Cuba em treinamento de guerrilha e auxílio financeiro. Falava-se em mais de um
milhão de dólares. Comentava-se à época, que Fidel havia mandado no início
quinhentos mil dólares para ajudar. Desta importância, um terço teria ficado
com o Jango, pois a este estavam ligados vários exilados necessitados. Outra
parte, com Darcy Ribeiro para “segurança” e o último terço teria ficado com o
Brizola, que ficou aborrecido, tendo em vista ser pouca quantia, pois era o
único entre os três que estava tentando, de fato, montar um contra-ataque.
Importância essa que teria sido gasta, com pessoas no exílio, com os
companheiros no Brasil muito necessitados, com os presos políticos e com os
homens encarregados de fazer a comunicação entre os grupos arquitetando um
plano maior de combate armado.
A surpresa de Paulo só crescia. Parecia-lhe impossível unir
aquele corpo já deteriorado pelos anos ao discurso que ele ouvia, à altivez do
tom, à propriedade no emprego das palavras. Pensou em elogiar a mãe, mas quando
fez menção de abrir a boca, ela adiantou-se:
-- A primeira tentativa de restaurar o governo democrático
brasileiro partiu de Montevidéu. O coronel Jefferson Cardim Osório e mais dois
camaradas passaram por nossa casa, em Rivera, e teu pai participou
fornecendo-lhes armas e suporte logístico para entrarem no Brasil. Vocês eram
muito pequenos, talvez não lembrem em detalhes.
Na memória de Paulo imediatamente vieram-lhe as imagens dos três
homens que chegaram de jeep, no dia que ele e seu irmão jogavam bolinha de gude
na frente da sua casa e depois a lembrança horrível das fotos na revista dos
três homens torturados, que seu pai mostrara. O que a mãe lhe narrava, nesse
momento, era uma peça importante no mosaico de sua história familiar que ainda
restava ser preenchida.
-- De lá, eles foram até a cidade de Três Passos onde
arregimentaram, pelo caminho, alguns combatentes e tentaram tomar o quartel e
uma rádio local. A ideia era formar uma coluna, aos moldes da coluna Prestes e,
na medida em que fossem avançando, de quartelada em quartelada, iriam se juntar
no Mato Grosso com o grupo que viria da Bolívia, sob o comando do ex-coronel da
aeronáutica, Emanuel Nicoll. Mas essa tentativa foi frustrada depois da
emboscada feita pelas forças militares no interior do Paraná, onde caiu preso o
coronel Jefferson e outros companheiros. Suspeitava-se que haviam sido traídos.
E estavam certos. Mais tarde soubemos o nome do traidor.
-- Quem foi o traidor, mamãe? --perguntou Paulo com ar de
indignação e revolta.
Ofélia ficou com o nem do traidor na boca, mas optou por
cautela.
-- Com o tempo saberás quem foi, meu filho. – falou-lhe com ar
desolado. Mas o que tenho para te contar não acaba aqui -- continuou a mãe
diante do filho atônito. -- Tendo sido frustrada a primeira tentativa do
contragolpe revolucionário, os companheiros organizaram-se novamente e criaram
em 1966 o Movimento Nacionalista Revolucionário, para implantar mais um ataque
à ditadura militar, cujas ações seriam basicamente no meio rural, pegando
resquícios, talvez, das ligas campesinas implantadas por Francisco Julião anos
antes. Mas, para isso, necessitava-se de dinheiro, muito dinheiro. Fidel,
então, enviou a segunda remessa de quinhentos mil dólares, totalizando um
milhão em espécie, e quem levou pessoalmente essa quantia, disfarçado de monge,
foi o Ernesto Guevara, contou-me teu pai.
Para Paulo a história de sua mãe começava encaixar-se e fazer
sentido.
Ofélia calou-se e fitou o filho. Paulo viu na expressão suave da
mãe o quanto lhe aliviara contar esse segredo. Aproximou-se dela e passou-lhe o
braço por sobre os ombros. Finalmente comentou:
-- Então era esse o dinheiro que o “Chê” carregava disfarçado de
monge...?
-- Sim, era esse dinheiro, pertencente à segunda remessa dos
dólares enviados por Cuba, que o Ernesto carregava naquela tarde chuvosa em
nossa casa.
A novidade era bombástica. Paulo tinha certeza de que o episódio
narrado por sua mãe não fazia parte da história oficial. Acabara de ser
informado de um acontecimento ultrassecreto e, portanto, não sabia direito o
que fazer. Recompondo-se, perguntou impressionado:
-- Quanto dinheiro, mamãe? Ele foi todo gasto nesses movimentos?
Ofélia parou para pensar na resposta e, após alguns segundos,
continuou com muita cautela.
-- Eu nunca soube ao certo sobre o destino total desses dólares,
meu filho. Alguns comentaram que parte deles foi usado com treinamentos de
combatentes e na alimentação de algumas famílias, pois tinham que sobreviver no
exílio; o que é sensato. Outras pessoas disseram que o grosso dos dólares teve
paradeiro desconhecido, e que isso teria causado um desconforto abissal entre Fidel
e os líderes revolucionários brasileiros, já que estes nunca teriam prestado
conta de seu destino e tampouco mostraram os resultados esperados pelos
cubanos.
-- Mamãe o que a senhora está me contando é muito sério. Há
provas disso?
-- Não, meu filho. Não há provas.
-- Tiveram algumas casualidades que deixaram a muitos exilados
necessitados desconfiados. Algumas fazendas foram compradas no Uruguai nessa
época, mas deverão ter sido heranças de família. Esses rumores geraram brigas,
cizânias e descontrole. Mas isso não tenho certeza e tampouco conhecimento
suficiente para opinar. Se o teu pai ou o Chê estivessem vivos, poderiam contar
mais detalhes sobre o ocorrido, mas, como bem sabes, alguns meses depois
mataram-no no combate do Cerro Chato, deixando-nos em profundas dificuldades
financeiras, e o Guevara foi assassinado na Bolívia.
A maioria dos exilados que teu pai ajudou, seguiram seus
caminhos e não apareceram mais. Enquanto teu pai vivia, éramos uteis. Depois
sumiram sem deixar rastro. Poucos nos ajudaram e nos ajudam até hoje.
-- Sim, mamãe é verdade... A família que veio de São Borja são
nossos amigos até hoje. E a eles somos eternamente gratos. Quando mais
necessitamos, marcam presença e marcam até hoje.
-- Sim, meu filho é verdade. A estes somos gratos. Mas por
incrível que pareça, quem, de fato, nos estendeu a mão quando mais necessitamos
foram a nossa família e alguns vizinhos, colorados, blancos e apolíticos.
-- Mas, mãe e os dólares cubanos? Era muito dinheiro? Onde foram
parar?
A verdade sobre o destino desses dólares eu nunca soube.
Ofélia segurou então a mão do filho, estreitando o abraço que
ele, antes havia apenas insinuado ao passar-lhe o braço pelos ombros. Deu um
suspiro profundo e longo, sorriu e, por fim, disse:
-- A verdadeira solidariedade não tem lado, nem esquerda nem
direita, nem tendências políticas. Está no ser humano independentemente de
raça, credo, cor e posição econômica.
Amanhã cedo estarei esperando-te com as malas prontas.
Fim
( Dedico este conto, quase crônica, aos nossos pais, Romeu
Figueiredo de Mello, que hoje estaria completando 96 anos de vida e Orides
D´Avila de Mello, de cujas histórias passadas no exílio, tais como
solidariedade, conflitos e traições, “inspiraram-me” esta " ficção".)
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