A casa situada à rua Dr. Anollés
470, em Rivera, a menos de 300 metros do Parque Internacional, pertencia à família de
Romeu Figueiredo de Mello. Ali viviam sua esposa, a sogra, e dois filhos, Pedro
Antônio e Amilcar. Por seu envolvimento com o grupo brizolista de Santana do
Livramento e suas claras posições antiimperialistas, que ideologizavam as conversas
políticas de então, Romeu foi identificado como potencial subversivo e colocado
na lista negra dos que não podiam regressar a Santana do Livramento.
Com 43 anos incompletos em abril
de 1964, Romeu se estabeleceria definitivamente naquela casa, pertencente a sua
sogra, e dali só regressaria ao Brasil morto, vitimado por um ataque cardíaco,
menos de quatro anos depois. Pedro Antônio, o filho mais velho do casal, tinha
apenas oito anos quando o movimento militar aconteceu do outro lado da linha
divisória, mas em suas lembranças ficaram as marcas do autoritarismo e dos
pesados dias que passou a viver desde então.
Isso para mim foi um transtorno tremendo. Isso
desestruturou completamente a família. Tive um pai sem poder exercer a vida
profissional como a gente esperava que fosse. E acuado, quase que acuado né? [...]
ficamos sem grana. E no pátio da nossa casa em Rivera, a gente fez um pequeno
aviário, e daí que nós ganhávamos o dinheiro. Nós vivíamos do abate dos
frangos, dos pollos como se diz na
minha terra. E quando o pai vivo ainda, porque depois que o pai morreu nem
grana para comer a gente tinha. Os vizinhos nos ajudavam. Ele faleceu no dia 24
de maio de 1967. Infarto do miocárdio. [i]
Até o momento anterior ao estabelecimento do golpe
militar, Romeu Figueiredo de Mello exercia uma bem sucedida atividade
econômica, dividida entre um escritório de importação e exportação, que
mantinha no Palácio do Comércio, um centro comercial situado em frente ao
Parque Internacional, a administração de três unidades de processamento de
café, em Livramento, Rivera e Montevidéu, e os proveitos de uma propriedade
rural. Filho de uma família de médios proprietários de terra, na região da
Coxilha Negra, na linha de fronteira com o Uruguai, Romeu vivia como um típico
cidadão santanense de classe média. Nas lembranças de Pedro Antônio, o pai era
uma pessoa identificada com a região, filho de uma brasileira e um uruguaio de
Tacuarembó, que cresceu nos anos dourados da cidade, quando os cabarés e a vida
boêmia conferia um ar de metrópole àquela distante região da campanha. Nascido
em 21 de junho de 1921, Romeu viveu o apogeu dos cinemas e das reuniões
literárias na fronteira, gosto que passou aos filhos sempre que pôde.
Meu pai teve a infância no cinema Colombo, e os
filmes eram no cinema Colombo, e no Astral, ele ia muito no cinema Colombo e
tinha uma formação cultural muito grande de cinema. Ele era um cinéfilo. E a
formação literária dele foi influência da tia dele, Joaquina, irmã da minha vó,
que tinha todos os livros. Tinha Camões, uma biblioteca muito farta. E ele leu
quase todos os livros daquele tempo, e a gente herdou essa questão da
literatura. Então, era uma pessoa que lia muito, que ia ao cinema. Tanto é que
ele me dizia que o cinema era uma janela pro mundo. “Meu filho, tu tens que ir
ao cinema, porque o cinema é uma janela para o mundo”, ele me dizia. Era muito
culto, falava inglês, e lia muito. [ii]
A política só entraria na vida do boêmio depois da
segunda guerra mundial, quando se alistou como voluntário na FEB, e viveria
dias decisivos em sua formação, na Itália conflagrada. Quando acabou a guerra,
retornou com simpatias ao Partido Comunista Brasileiro e com sérias reservas a
posição norte-americana no mundo a partir de então. As posições nacionalistas o
fariam defender o Governo Jango e alinhar-se com as idéias de Leonel Brizola,
que viriam a marcá-lo na pequena comunidade fronteiriça.
[...] foi a grande tomada de consciência me
parece, por que até então era um gurizão que foi pra guerra, e volta mais
maduro não tem dúvida, e aí começa a fase de militância política digamos assim,
porque depois de uma guerra a pessoa volta adulta. Nos 25, 26 anos. Ele foi
para a guerra com 24. [...] Ele não se dizia comunista, ele se dizia
nacionalista. A princípio ele era uma pessoa, eu nunca vi ele ir a um partido
político, militar e tal. A princípio ele era um homem de esquerda e
nacionalista. [iii]
Perseverando Santana relembra do amigo Romeu como uma
figura “maravilhosa”, que gostava da boemia e que desde cedo se mostrou mais
afeito às posições revolucionárias do que a estratégia proposta pelo PCB.
Depois da guerra esteve na sede do partido em Santana, falando aos companheiros
sobre a realidade que encontrou na Europa, do encontro em Paris com o secretário
do PC francês, Maurice Thorez. Já na campanha de Índio Fuentes para a
prefeitura municipal, discordou do discurso proferido por Perseverando na Rádio
Cultura, de franco apoio ao candidato petebista. Já possuia fortes convicções
que a via democrática não iria se sustentar no país, e que o melhor seria o
enfrentamento.
A identificação aberta com um
nacionalismo de esquerda levaria Romeu Figueiredo de Mello definitivamente para
Rivera, perseguido abertamente pelo setor militar, que nem ao menos o deixava
voltar aos campos da família, em plena linha divisória. O escritório teve de
ser fechado e a sociedade que mantinha nos negócios de café sucumbiu. De um
momento a outro, a família se viu prisioneira de um sistema político que
reduziu as ambições do pai à sobrevivência do dia-a-dia. Pedro relembra do
momento em que o golpe militar chegou na roda das conversas familiares.
Nós já estávamos em Rivera. Eu lembro que era um
alvoroço tremendo dentro de casa. Eu tinha oito anos. Mas eu lembro que era um
alvoroço tremendo, não tem como esquecer aquilo. Eu me lembro que meu pai chamava os gorilas,
os gorilas, os gorilas... e ele não pôde entrar mais em Livramento. Aí nós
ficamos ilhados em Rivera. Nós já morávamos em Rivera e não pudemos sair mais
de Rivera. Ele tinha as fábricas de café em Montevidéu, em Rivera e Livramento,
mas acabou tendo problemas com os sócios e acabou perdendo, quebrando. [iv]
Na casa de Romeu aportariam muitos
dos refugiados de primeira hora, que tiveram de deixar o país sob pena de
prisão imediata. Nas lembranças de criança de Pedro Antônio, a casa paterna
surge como o local de solidariedade extrema, ofertada aos viajantes que
procuravam abrigo naqueles primeiros dias do golpe militar.
Pouco menos de um ano depois, por
ali passariam o coronel Jefferson Cardim, Albery Vieira dos Santos e o
comerciante de São Sepé, Alcyndor Aires, que deflagrariam a chamada “Guerrilha
de Três Passos”, o levante frustrado que marcaria a única tentativa concreta do
grupo exilado em Montevidéu de desestabilizar a ditadura instalada.
[...] como nós já morávamos lá, digamos que nós
fôssemos os melhores estruturados, logo que se deu a revolução. Já tinha a casa
da minha mãe, já tinha uma bela duma casa que a gente tinha ali. E por ser essa
casa muita bem estruturada, serviu como porta de entrada para muita gente no
Uruguai, para o exílio uruguaio. Muitas pessoas passavam por ali, eu digo que
quase todas as pessoas passavam por ali. De uma maneira ou de outra meu pai
interferia, ou era consultado, como melhor colocá-las dentro do Uruguai. O meu pai
era a pessoa que recebia no Brasil e colocava dentro do Uruguai. (...) era
insólito. Não tinha hora, chegavam de manhã, de tarde, de madrugada. Umas
figuras diferentes, homens quase todos, e ficavam conversando na sala, era um
mistério. E a gente queria ficar participando das conversas e acabava
participando no final. Muitas pessoas dormiram no meu quarto. Eu me lembro do
sargento Alberi dormindo no meu quarto, o Jefferson Osório...Doutor Benvenuto,
o Oscar Fontoura Chaves, o professor Chaves - que é outro, seu Valdemar, e
muitas pessoas que eu nem lembro mais o nome.[v]
Colaborador do governo Jango, o qual esteve servindo
pouco antes do golpe em Brasília, Oscar Chaves absteve-se em participar
diretamente do plano de Cardim e Alberi, mas seu encontro com os rebeldes seria
marcado pela repressão. Nas
lembranças de América Ineu Xavier, viúva do policial, a visita do grupo na
tentativa de arregimentar seu marido para a guerrilha foi definitiva para a sua
prisão, poucos dias depois:
[...] aí veio aquela coisa que houve lá, uma
guerrilha. Em Santa Catarina né? ou lá na divisa com o Paraguai...Aí houve a
formação de uma guerrilha, do Coronel Jeferson...uma coisa louca, e o cara esse,
da guerrilha, segundo...ele teria passado lá e teria convidado ele pra ir e ele
se recusou. Disse que não , que era uma coisa que não era organizada, tal e
coisa e que ele não iria. Segundo né? Eu não sei, é o que contam. Aí esse cara
foi preso, foram diversos, um tal de Alberi, foram diversos presos...e aí nos
depoimentos eles teriam dito que teriam convidado ele. Tá, eles prenderam ele
porque disseram que ele devia denunciar. Aí ele foi preso de novo, aí em São
Gabriel.Ele foi preso em São Sepé e levaram ele para São Gabriel, que tinha
quartel. Ele ficou lá abril, maio, junho, julho e agosto. E em agosto ele
fugiu. E nem eu bem sei, foi um horror aquilo![vi]
Naquele momento, Montevidéu já contava com mais de dois
mil exilados brasileiros e a cada dia passavam pela fronteira novos clandestinos.
A repressão que a ação mal-sucedida de Três Passos desencadeou em todo o Estado
iria redirecionar os destinos de muitas famílias para o caminho da fronteira.
Oscar Fontoura Chaves foi preso e levado ao 9º Regimento de Cavalaria de São
Gabriel, para interrogatório. O advogado Índio Vargas, natural de São Sepé,
engajado posteriormente no movimento de insurreição, lembra que a população
local já não suportava o trauma causado por constantes interrogatórios a que
era submetida por militares oriundos de São Gabriel, Bagé e Santa Maria.[vii]
Oscar Fontoura Chaves também experimentou a prisão e o interrogatório nos
primeiros dias do golpe, porém logo foi liberado.
Desta segunda vez, no entanto, seria severamente
torturado como cúmplice de Jefferson Cardim Osório. Menos de cinco meses
depois, Oscar Chaves conseguiu cerrar
as grades da cela em que o mantinham no quartel e empreendeu assim uma fuga
escondendo-se de dia nos matagais da região e deslocando-se à noite. Conhecedor
da região, onde atuava no combate ao contrabando de gado, ao lado do delegado
Acílio Pereira da Cruz, que mais tarde seria o chefe da 12ª região policial em
Santana do Livramento, conseguiu driblar as forças do exército. Auxiliado por
camponeses, Oscar chegou a Rivera, no final de 1965, onde pediu asilo político
na Chefatura de Polícia. Antes, porém foi recebido na casa de Romeu Figueiredo
de Mello. Pedro Antônio recorda do estado crítico que o policial chegou em sua
casa, vomitando e urinando sangue, devido às torturas a que foi submetido. Para
dormir, Oscar Chaves tinha de ser hipnotizado pelo doutor Adalberto Benvenutto,
médico de São Borja, exilado na fronteira com a família desde os primeiros
momentos do golpe, e que prestava serviços de toda ordem, desde que envolvesse
a saúde da comunidade de refugiados.
Pelos olhos de uma criança, curiosos com os
acontecimentos que a cada dia movimentavam o ambiente doméstico, ficaram
marcadas as lembranças de solidariedade da família e as condições de extrema
penúria com que chegavam os fugitivos da nova ordem, como a família Penalvo,
que depois viria a administrar a fazenda de João Goulart, em Tacuarembó.
Eu lembro da chegada do doutor Oscar. Lembro
mesmo, ele era um cara forte, grande. Bem, eu era uma criança de 11 anos, mas
ele parecia um gigante. Era um homem encorpado, já grisalho[...]Eu lembro que
chegou muito nervoso, não conseguia dormir, e expelia sangue pelas feses, pela
urina...Lembro como se fosse hoje também, a minha vó cedeu o quarto dela e o
doutor Oscar dormia ali. Era o único digamos que não dormiu no quarto meu e do
meu irmão, que dormiu fora. Tinha o quarto meu e do meu irmão, e uma terceira
cama, por onde passavam as figuras. Normalmente tinha uma cama "de
varde" como se diz na minha terra e normalmente tinha um dormindo na cama.
E aquele quarto da minha vó foi cedido...e era pro doutor Oscar poder
dormir...eu me lembro do doutor Benvenutto hipnotizando ele, para poder
dormir....E devagarinho ele foi revelando como é que foi a fuga dele. E eu me lembro
que ele revelou que foi a esposa dele que alcançou uma lima dentro de um pão,
ou algo assim. E com essa lima ele conseguiu fugir da cadeia. É, isso eu
lembro. E passou alguns dias lá em casa e depois foi para uma pensão. Lembro
também da chegada do Perci Penalvo e da Celeste, Dona Celeste. Com uma filha no
colo, um frio danado, não tinha nem cobertor, eu me lembro que a minha mãe foi
lá e deu um cobertor pra ele, e eles ficaram um dia ou dois e depois foram
embora. [viii]
A rotina de abrigo aos recém chegados
consistia em proporcionar um descanso por dois ou três dias, com comida, banho,
e a convivência da família, até uma gradual readaptação a nova situação. Muitos
seguiam viagem para Montevidéu, depois de
assegurados passes especiais. Os que
ficavam na fronteira eram encaminhados para uma pensão, próxima ao Colégio das
Freiras, nos arredores das ruas Ituizangó, Figueroa e Faustino Carâmbula. Nessa
pensão estava hospedado Oscar Fontoura Chaves, poucas semanas depois de ter
chegado à fronteira, tratando de reintegrar-se a nova situação. É então seqüestrado
por uma força policial uruguaia, que o leva para Tranqueras e logo após para a
cidade fronteiriça de Artigas, com o propósito de o devolverem às forças
militares brasileiras, que reclamava pelo fugitivo instalado em Rivera.
Oscar Chaves não seria devolvido à ditadura
brasileira graças à intervenção do advogado Adán René Fajardo, uma figura
humanista e defensor dos exilados, filiado a lista 99, do Partido Colorado, e
que teve ampla atuação em casos semelhantes durante os anos da ditadura
brasileira e, depois, na confluência de ambas as ditaduras, a partir de 1973.[ix]
No ambiente tenso do exílio, “desgastante e verdadeiro devorador de homens”,
nas palavras de Paulo Schilling, Pedro Antônio recorda das inúmeras discussões
em que seu pai e seus companheiros mantinham, onde não faltavam elementos de
traição e de ressentimento com a liderança de Jango e Brizola, que viviam sob
uma condição monetária estável, enquanto muitos correligionários e suas
famílias passavam enormes dificuldades para sobreviver no escasso mercado de
fronteira, em particular de Rivera, com menos de 50 mil habitantes e uma
economia atrelada ao setor de serviços e governamental.
Na difícil sobrevivência do
exilio, as mágoas permeavam os distintos grupos afetados pelo golpe. “Eu lembro
de muitas conversas de traição, eu lembro que se falava muito em traição. Quem
traiu o quê eu não sei, mas lembro que se falava muito em traição. Alguém
dedurou, alguém falou. Quem foi? Eu lembro que era a grande incógnita, quem
traiu quem”.[x] Uma
grande parcela dessas discussões referia-se ao destino dos recursos que
Brizola, Jango e Darcy Ribeiro teriam recebido de Cuba, um total de um milhão
de dólares, enviados em duas vezes, destinados a prover a insurreição e amainar
as dificuldades por que passavam os exilados. Como o dinheiro nunca chegou ao
grupo da fronteira, se acenderam os ressentimentos. José Wilson da Silva
descreve a vida dos exilados em Montevidéu como uma sucessão de dificuldades, parte
devido ao paternalismo das lideranças, que “davam o pão, mas não ensinavam a
plantar o trigo”, e parte devido à falta de iniciativas dos próprios
refugiados, que muitas vezes não demonstravam aptidão para mudar de vida,
esperando das lideranças a eterna ajuda. Em 1966, o ponto central da discórdia
entre o grupo ligado a Romeu Figueiredo de Mello, em Rivera, girava em torno do
mau uso dos dólares supostamente enviados por Fidel Castro. José Wilson vivia
em Montevidéu e dá a sua versão para a controvertida questão:
Que eu saiba, o primeiro contato feito com Cuba
foi através do deputado uruguaio Ariel Collazo, levando nossa disposição de uma
retomada da democracia no Brasil.(...) Fidel enviou, a título de ajuda,
quinhentos mil dólares. Desta importância, segundo um relatório de Brizola para
nós, um terço teria ficado com Jango, pois a este estavam ligados vários
exilados necessitados. Outro terço teria ficado com Darcy Ribeiro, por questões
de segurança e que também tinha parte de responsabilidade. O outro terço teria
ficado com Brizola. Lembro-me que ele, Brizola, ficou muito aborrecido porque
as ações mais positivas estavam sendo feitas pela nossa gente e ficamos desse
modo com relativamente pouco dinheiro. Parte dessa importância foi gasta com
elementos no exílio, parte com a assistência a companheiros no Brasil em
situações críticas, como presos com a família sem recursos, etc., e parte com
os nossos homens-correios para a implantação já de esquemas de trabalho, aliás,
tudo em função de um plano de ação armada. Dado o número de pessoas em
dificuldades pela desarticulação da sociedade, em especial gente humilde, que
eram as bases trabalhistas ou de esquerda, isto não era mais do que uma gota
d’água num oceano de necessidades. [xi]
A falta de apoio financeiro de
Jango ou do grupo brizolista, em Montevidéu, afetava a todos os que estavam
ancorados em Rivera. Ali viviam companheiros que exerciam importantes funções
de pombo-correio, ou de passagem de companheiros de um lado a outro da
fronteira. Por isso a falta de uma assistência centralizada gerava notórios
ressentimentos. Mas entre o grupo que gravitava em torno de Romeu Figueiredo de
Mello, um detalhe deixou a questão muito mais explosiva. Parte do dinheiro,
destinado a João Goulart, teria passado pela casa de Romeu, transportado por
ninguém menos que o braço armado de Fidel na América Latina, Ernesto Che
Guevara! Hoje seria quase impossível provar essa hipótese sem o cruzamento de
relatos orais, que não foram obtidos por esta pesquisa, salvo um: o depoimento
da viúva de Romeu Figueiredo de Mello a seu filho.
Minha mãe lembra que teve um contato com o Che nas
escadarias de minha casa, acompanhado de mais dois homens vestidos de
religiosos franciscanos. Eles estariam indo a fazenda de Jango, em Tacuarembó,
por entre os corredores de campo, que eram seguros e impossíveis da polícia detectar.
Traziam o dinheiro, segundo meu pai disse. E passou pela minha casa. Minha mãe se recorda de ter visto ele, de
relance, ele sorriu para ela. Eu me lembro do meu pai dizendo que eles estavam
em um corredor, não sei onde, os franciscanos esses, y la plata. [xii]
Por mais fantasiosa que a versão
possa parecer em um primeiro olhar, dados biográficos de Guevara colhidos pelo
jornalista argentino Hugo Gambini apontam para sua estadia no Uruguai justamente
no ano de 1966, onde teria chegado disfarçado de frei dominicano! Dali partiria
para sua última missão, na Bolívia. Fontes ligadas a João Goulart não endossam
a versão oficialmente, embora reconheçam o fato em privado. Assim, ligando as
pontas desse quebra-cabeça é possível vislumbrar a imagem de Ernesto Che
Guevara em pleno Parque Internacional, na fronteira de Santana do Livramento e
Rivera, onde a poucos metros adentro do território uruguaio iria se valer do
traçado ensinado por Romeu Figueiredo de Mello para percorrer os corredores de
campanha e chegar até a estância El Rincón, de João Goulart, distante 66
quilômetros da cidade de Tacuarembó. Hugo Gambini, biógrafo de Guevara, credita
certo exagero nas versões que corriam sobre o paradeiro do guerrilheiro
naqueles dias, mas não se exime de anotar:
El
5 de agosto de 1966 la Cancillería del Paraguay dijo haber ordenado “una
vigilancia especial en el limite con Brasil, debido a que Guevara ha sido visto
en Baribao, a escassos kilômetros de la frontera paraguaya”. Las versiones
confidenciales, demasiadas exageradas, sostenían que El Che cirulaba disfrazado
de hermano dominico, con el nombre de Fray Hernando Juan de los Santos(...) [xiii]
Da estadia de Ernesto
Guevara no Uruguai, nos primeiros meses de 1966 não restam mais dúvidas, apenas
divergem as versões sobre a maneira de como teria chegado à Bolívia, vindo do
Uruguai. Também é interessante notar a aproximação de Che Guevara com o grupo
Tupamaro, já estabelecido como partido político revolucionário, e que manteve
estreito contato com o cubano, mesmo sem compartilhar das táticas de guerrilha
defendidas por Che[xiv].
Sérgio Israel, jornalista do semanário uruguaio Brecha, reuniu algumas das
versões sobre a estadia do guerrilheiro no Uruguai, sob proteção do Partido
Comunista Uruguaio, que mesmo não estando afinado com a proposta de guerrilha
rural e o foquismo, defendido por Che, o colocou sob a proteção de seu aparato
militar. O então deputado comunista Ariel Collazo, o mesmo que proporcionou a
aproximação do grupo janguista exilado em Montevidéu com Fidel Castro, levanta
a hipótese de que Guevara usara um campo de aviação em Taquarembó quando partiu
para a Bolívia, em setembro daquele ano. Conforme o relato de Israel:
La versión difundida una década después de
la muerte del guerrillero, en plena dictadura, por la inteligencia militar
uruguaya, también confirma que el Che estuvo aquí, y agrega que los documentos
que usó para arribar a Bolivia fueron robados del Ministerio de Relaciones
Exteriores uruguayo, que en esa época era el emisor de pasaportes. Jaime Pérez,
sucesor de Arismendi al frente del pcu, escribió en sus memorias que se enteró
de la estadía del Che una vez que éste se había ido, pero también confirmó que
"el Che salió de Montevideo y de aquí fue para Bolivia y mientras estuvo
en Montevideo fue bajo protección del partido". El ex diputado Ariel Collazo explicó a su vez
a Brecha que aunque Arismendi nunca se lo confirmó, también tuvo la información
de que el Che estuvo en Uruguay apoyado por el pcu. Collazo, que en ese tiempo
como dirigente del Movimiento Revolucionario Oriental (Mro) era muy apreciado
en Cuba, obtuvo la versión de que el Che llegó a Bolivia en un vuelo
clandestino que salió desde Tacuarembó.[xv]
Do episódio restam algumas indagações. Seria o campo de
aviação de Jango, para quem supostamente o guerrilheiro havia levado o
dinheiro? De outra maneira, porque rumaria para a cidade de Taquarembó para
alçar-se a sua empreitada boliviana?
Outro fato que coloca uma nova indagação nessa equação ainda por
resolver foram as constantes declarações do piloto de avião conhecido por
Ribeiro, que prestava serviços ao presidente deposto. De acordo com Vladecir
Fagundes, filho de um militante comunista muito ligado a Goulart, Ribeiro
apregoava aos quatro cantos em Rivera que teria transportado Guevara em uma
missão secreta. Naquele momento, era comum os pilotos realizarem a rota
Brasil-Paraguai-Uruguai, sempre com transporte de cigarros e uísque
contrabandeados. A exemplo da morte de Jango, cujas suspeitas de assassinato
tornam-se cada vez mais evidentes, Ribeiro morreria subitamente, de um ataque
cardíaco, no barco que faz a travessia de Buenos Aires para Montevidéu, anos
depois. Ribeiro iria depor em um inquérito que apurava roubos de documentos e
de propriedades do ex-presidente. Outra informação que merece ser considerada é
afirmação de Avelino Capitani, marinheiro e guerrilheiro do foco de Caparaó,
que sustenta que a viagem de Che a Bolívia teria acontecido a partir do Uruguai
e sob a companhia do coronel Dagoberto Rodrigues, homem de confiança de Jango e
na linha de frente do MNR naquele momento. A estadia de Guevara no Uruguai em
novembro de 1966 também coincide com a articulação do foco guerrilheiro de Caparaó
e a organização de outros focos em Mato Grosso e na linha fronteiriça.
[i]
MELLO, Pedro Antônio Dávila de. Engenheiro. Entrevista concedida ao autor em
12/10/2006.
[ii]
Ibidem.
[iii]
Idem.
[iv]
Ibidem.
[v]
Idem.
[vi]
XAVIER, América Ineu. Dona de casa. Depoimento concedido ao autor em
22/12/2006.
[vii]
VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o
torturador. Rio de Janeiro. Codecri. 1981. p.17.
[viii]
MELLO, Pedro Antônio de. Entrevista Citada.
[ix] A
atuação de Adán René Fajardo na defesa dos exilados será melhor explicitada no
terceiro capítulo.
[x]
MELLO, Pedro Antônio de. Entrevista Citada
[xi]
SILVA, José Wilson da. O Tenente
Vermelho. Op. Cit., p. 202.
[xii]
MELLO, Pedro Antônio de. Entrevista Citada.
[xiii]
GAMBINI, Hugo. El Che Guevara: la biografia. Buenos Aires. Booket, 2006. p.
300.
[xiv]
Os jornalistas Antônio Mercader e Jorge de Vera vão mais além nessa questão, e
afirmam que o disfarce com que Guevara chegou na Bolívia, o de um senhor calvo
sob o nome Adolfo de Mena, teria sido forjado pelo grupo Tupamaro, em apoio
moral ao combatente, mesmo sem a adesão à causa da guerrilha na Bolívia. In: Tupamaros, Estrategia Y Accion. Revista
Siete Dias Ilustrados. Junio 1969.
[xv]
Pasage clandestino y discusiones sobre estratégica y táctica. Huellas
Orientales del Che. Sergio Israel. In: www.brecha.com.uy.
Acessado em 09/12/2007.
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