Historicamente, é notório
que o Brasil é um país sem referências, elas são apagadas da memória coletiva por
ação regular do estado, que começa a fazer isso de forma processual a partir do
Século XX, com o apoio da mídia controlada pelas oligarquias políticas. Cito a Abolição
em que a população negra foi jogada ao relento; a proclamação da República, um
acordo construído a partir de acordos oligárquicos em represália à própria
Abolição; a Guerra de Canudos aonde se negava a revolta da miséria brasileira
com extermínio de quem bradava contra isso: o povo; a revolta do Contestado; Revolta
da Chibata contra os maus-tratos medievais denunciados por Antônio Cândido
contra o baixo oficialato da Marinha; greves de trabalhadores anarquistas que
eram imigrantes italianos, espanhóis e portugueses no Rio e em São Paulo em tecelagens e tantos outros episódios da
história brasileira esquecidos propositalmente. Isso é controle social.
Desta forma, é sim possível demonstrar como a
nossa elite faz uma verdadeira “lobotomia” e apaga tudo. E esse processo se repete
mais uma vez após a divulgação deste relatório. De imediato houve uma
orquestração midiática para a uma ‘eufemização’ dos sanguinários atos da
ditadura civil militar iniciada em primeiro de abril de 1964.
Percebo que essa é uma
pratica habitual em nossa sociedade. Dou mais um exemplo, a partir do que
acontece aqui no Rio de Janeiro. Antes mesmo da implantação das UPPs essa
‘lobotomia’ já acontecia de forma que é muito intensa no viés cultural e
religioso, nas favelas e morros cariocas. Hoje em dia, o samba aqui é agora restrito a
uma classe mais abastada em áreas como Botafogo e alguns pontos restritos do
Centro e Zona Norte Carioca. Aquele “samba da favela e do morro” acabou. Imaginemos a figura do malandro que saía de
sua sessão de Umbanda ou Candomblé na parte da manhã, que ia para o bar batucar
na sua caixinha de fósforo em plena alvorada do dia, como cantava Cartola em
seus versos.
Ali ele compunha sua obra
musical depois de se cuidar espiritualmente, e bebia uma cerveja naquela
birosca. Ali mesmo criava e pensava um samba com referência naquele batuque
africano, como também com maestria faziam Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, entre
outros gênios da música.
Hoje, praticamente, acabou
essa figura que frequentava os terreiros nessas “Pequenas Áfricas” como costuma
dizer o pesquisador Luiz Antônio Simas. Nesses
recantos, agora em maioria, só existem igrejas evangélicas. Assim, os cultos
afro-brasileiros foram aos poucos sendo expulsos destas áreas, pelo tráfico,
que se associou com essas igrejas, gerando um processo que elimina aos poucos
essa ponte com a história da nossa ancestralidade africana, essa referência com
o passado.
Notem que esse processo de
‘lobotomia’ é práxis em nossa sociedade. Ela derruba nossas pontes com as memórias
históricas e sociais do Brasil. Essa pode sim ser considerada uma razão para a
nossa falta de memória. E é o que querem fazer com o relatório final da
Comissão Nacional da Verdade.
Por André Lobão – jornalista
e escritor
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