sexta-feira, 31 de maio de 2013

Pela preservação dos lugares da memória fronteiriça.



O esplendor da Praça General Flores da Cunha poderia exemplificar o glamour dos espaços de lazer do Santana do Livramento nas primeiras décadas do século vinte. Revendo meus arquivos para entender melhor o “desfalecimento” do lugar, deparei-me com o vigor das lembranças de dois grandes personagens da cidade: o barbeiro centenário Humberto Bisso e seu octagenário colega Floriano Menendes. Túnel do tempo acionado em umas fitas K-7 (gravadas em 2001) e em imagens flashback que envolve minha mente ressurgem suas vozes fracas, melancólicas, em suas reminiscências: os templos da noite, a diversão no Areial, daquela Santana escura, que “tinha apenas duas ruas, mui diferente e divertida”. Seu Bisso recorda os companheiros que tinham de atravessar a linha, para tocar serenatas para as famílias riverenses, os comerciantes e também para o Chefe da polícia Ventura Pires, quando em Santana imperava a repressão nos anos das revoltas de 1923 e 1924 . Sua orquestra era vanguarda, binacional, composta por barbeiros, alfaiates, guarda livros, estafetas e talabarteiros. Alguém ainda lembra desses ofícios? Alguém lembra o quanto era formosa a Praça Flores da Cunha, ou Pracinha dos Cachorros?

Quem recorda dos bancos de granito rosa, do moderno e vibrante calçamento petit pavê, dos lambe-lambes presentes em nossa infância no Parque Internacional? Sabemos que a construção da memória passa pela ação das forças sociais em constante luta pelo controle e exercício de poder, mas especialmente pela determinação do que se quer passar a posteridade. Creio que o momento é pertinente para tratarmos da ação da memória, quando na fronteira andamos em uma época de infertilidade no trato do patrimônio cultural. Porque temos que pensar em memória? Em que medida as memórias dessas experiências vividas, de sua construção como cidadãos, como profissionais, podem contribuir para que a comunidade passe a conhecer e respeitar seu patrimônio histórico? Pois bem, sabemos que só respeitamos o que conhecemos! Será que conhecemos a riqueza da história cultural de nossa cidade ou da fronteira? Ao longo de nossa existência tentamos rememorar e recontar a memória e os lugares do encontro fronteiriço aos nossos filhos, amigos e netos, como nossos avós, e pais o fizeram? Temos uma grande responsabilidade na preservação da memória social, precisamos nos responsabilizar e seguir o caminho do coração, sob pena de perdermos nossas referências culturais, e o pior, não termos herança a passar aos nossos descendentes. Essa advertência foi constante em minhas conversas com Bisso, Floriano, Elda Cortez e Sinhá Borba, entre outros memorialistas da cidade, que hoje não estão entre nós. “Quem irá contar que fomos grandes, que Santana teve vigor?” indagou certa vez, um deles. Calei, ouvindo muito do que eles tinham a relatar, porque naquele momento não saberia contrapor essa questão. Tentei dar uma luz ao que os memorialistas contaram, escrevendo minha pesquisa que abordava a memória oral e os lugares de lazer na fronteira. Não sei se consegui responder a eles, porém consegui registrar suas memórias para as novas gerações.

Vejo que existe uma ruptura na passagem dessa memória, seja oral ou mesmo  documental, em nossa fronteira. Prova disso é o distanciamento que nossa sociedade demonstra de temas tão atuais como a preservação do que restou do nosso patrimônio histórico, hoje ameaçado pela especulação imobiliária e falta de conservação. Se costumávamos escutar as histórias de nossos antepassados, será que contamos alguma história para esta nova geração? Por isso li com prazer o que o escritor Luciano Machado escreveu a um colunista deste jornal sobre a importância da Praça Flores da Cunha na memória da fronteira. Temos que ter o encantamento de rememorar, mas também ações para preservar os espaços da memória.

Pensar a preservação da memória de nosso patrimônio histórico e afetivo, em um tempo em que tudo deve ser novo, moderno, hiper-moderno, pós-moderno é um desafio que a comunidade e o poder público devem tomar para si.  Se os fenômenos da globalização nos conectam com o mundo todo, também nos impulsionam em direção contrária, negando muitas vezes essa representação do passado e sua força revitalizadora. Se pensarmos que a palavra patrimônio tem origem latina, derivada de pater, que significa pai, encontraremos o sentido de herança, legado, isto é, aquilo que o pai deixa para os filhos. Assim, patrimônio é o conjunto de bens produzidos por outras gerações, ou seja, os bens resultantes da experiência coletiva, que estão vivos e recentes em nosso cotidiano. E para preservá-lo precisamos de ações coletivas e individuais, pragmáticas, que contemplem também “exercícios” da memória, entre nossos familiares, vizinhos, amigos e comunidade.

O filósofo alemão Walter Benjamin, ao trabalhar com a memória como rememoração, destacou a importância da narrativa e do distanciamento como premissa para se entender a essência da função do narrador, em crise já nos anos 30. Cada momento, ensina, é importante para algum sujeito, portanto, nada é insignificante ou perdido para a história.  Sendo assim, será que observamos o som ao redor? Quem são nossos narradores? Temos milhares, basta buscá-los e, acima de tudo, registrá-los, mapeá-los e respeitá-los. Suas lembranças são nossa maior herança, em uma sociedade que a cada dia perde um significado, desfigurando-se, com a velocidade da informação. Como afirmou o poeta libanês Khalil Gibran, “as distâncias não existem para a recordação; e somente o esquecimento é um abismo que nem a voz nem o olho podem atravessar.”
 
texto: Liane Chipollino Aseff
fotos: Marlon Aseff, Lucianne Hamilton.

Um comentário:

  1. Ótimo e esclarecedor o texto da profa.Liane.Sem história, sem registro, atropela-se o passado. Sem passado ficamos sem rosto.Principalmente nessa linha que une dois povos que testemunham e sempre o fizeram de uma convivência fraterno exemplo para o mundo nestes dias conflituosos. Não descaracterizem a Pça.Internacional.

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