O esplendor da
Praça General Flores da Cunha poderia exemplificar o glamour dos espaços de lazer
do Santana do Livramento nas primeiras décadas do século vinte. Revendo meus
arquivos para entender melhor o “desfalecimento” do lugar, deparei-me com o
vigor das lembranças de dois grandes personagens da cidade: o barbeiro centenário
Humberto Bisso e seu octagenário colega Floriano Menendes. Túnel do tempo acionado
em umas fitas K-7 (gravadas em 2001) e em imagens flashback que envolve minha mente ressurgem suas vozes fracas,
melancólicas, em suas reminiscências: os templos da noite, a diversão no
Areial, daquela Santana escura, que “tinha apenas duas ruas, mui diferente e
divertida”. Seu Bisso recorda os companheiros que tinham de atravessar a linha,
para tocar serenatas para as famílias riverenses, os comerciantes e também para
o Chefe da polícia Ventura Pires, quando em Santana imperava a repressão nos
anos das revoltas de 1923 e 1924 . Sua orquestra era vanguarda, binacional, composta
por barbeiros, alfaiates, guarda livros, estafetas e talabarteiros. Alguém
ainda lembra desses ofícios? Alguém lembra o quanto era formosa a Praça Flores
da Cunha, ou Pracinha dos Cachorros?
Quem recorda
dos bancos de granito rosa, do moderno e vibrante calçamento petit pavê, dos lambe-lambes presentes em nossa infância no Parque Internacional? Sabemos
que a construção da memória passa pela ação das forças sociais em constante
luta pelo controle e exercício de poder, mas especialmente pela determinação do
que se quer passar a posteridade. Creio que o momento é pertinente para
tratarmos da ação da memória, quando na fronteira andamos em uma época de
infertilidade no trato do patrimônio cultural. Porque temos que pensar em
memória? Em que medida as memórias dessas experiências vividas, de sua
construção como cidadãos, como profissionais, podem contribuir para que a
comunidade passe a conhecer e respeitar seu patrimônio histórico? Pois bem,
sabemos que só respeitamos o que conhecemos! Será que conhecemos a riqueza da
história cultural de nossa cidade ou da fronteira? Ao longo de nossa existência
tentamos rememorar e recontar a memória e os lugares do encontro fronteiriço
aos nossos filhos, amigos e netos, como nossos avós, e pais o fizeram? Temos
uma grande responsabilidade na preservação da memória social, precisamos nos
responsabilizar e seguir o caminho do coração, sob pena de perdermos nossas
referências culturais, e o pior, não termos herança a passar aos nossos
descendentes. Essa advertência foi constante em minhas conversas com Bisso,
Floriano, Elda Cortez e Sinhá Borba, entre outros memorialistas da cidade, que
hoje não estão entre nós. “Quem irá contar que fomos grandes, que Santana teve
vigor?” indagou certa vez, um deles. Calei, ouvindo muito do que eles tinham a
relatar, porque naquele momento não saberia contrapor essa questão. Tentei dar
uma luz ao que os memorialistas contaram, escrevendo minha pesquisa que abordava
a memória oral e os lugares de lazer na fronteira. Não sei se consegui
responder a eles, porém consegui registrar suas memórias para as novas gerações.
Vejo que existe
uma ruptura na passagem dessa memória, seja oral ou mesmo documental, em nossa fronteira. Prova disso é
o distanciamento que nossa sociedade demonstra de temas tão atuais como a
preservação do que restou do nosso patrimônio histórico, hoje ameaçado pela
especulação imobiliária e falta de conservação. Se costumávamos escutar as
histórias de nossos antepassados, será que contamos alguma história para esta
nova geração? Por isso li com prazer o que o escritor Luciano Machado escreveu
a um colunista deste jornal sobre a importância da Praça Flores da Cunha na
memória da fronteira. Temos que ter o encantamento de rememorar, mas também
ações para preservar os espaços da memória.
Pensar a
preservação da memória de nosso patrimônio histórico e afetivo, em um tempo em
que tudo deve ser novo, moderno, hiper-moderno, pós-moderno é um desafio que a
comunidade e o poder público devem tomar para si. Se os fenômenos da globalização nos conectam
com o mundo todo, também nos impulsionam em direção contrária, negando muitas
vezes essa representação do passado e sua força revitalizadora. Se pensarmos
que a palavra patrimônio tem origem latina, derivada de pater, que significa pai, encontraremos o sentido de herança,
legado, isto é, aquilo que o pai deixa para os filhos. Assim, patrimônio é o
conjunto de bens produzidos por outras gerações, ou seja, os bens resultantes
da experiência coletiva, que estão vivos e recentes em nosso cotidiano. E para
preservá-lo precisamos de ações coletivas e individuais, pragmáticas, que contemplem
também “exercícios” da memória, entre nossos familiares, vizinhos, amigos e comunidade.
O filósofo alemão
Walter Benjamin, ao trabalhar com a memória como rememoração, destacou a
importância da narrativa e do distanciamento como premissa para se entender a essência da função do
narrador, em crise já nos anos 30. Cada momento, ensina, é
importante para algum sujeito, portanto, nada é insignificante ou perdido para
a história. Sendo assim, será que observamos
o som ao redor? Quem são nossos narradores? Temos milhares, basta buscá-los e,
acima de tudo, registrá-los, mapeá-los e respeitá-los. Suas lembranças são
nossa maior herança, em uma sociedade que a cada dia perde um significado, desfigurando-se,
com a velocidade da informação. Como afirmou o poeta libanês Khalil Gibran, “as
distâncias não existem para a recordação; e somente o esquecimento é um abismo
que nem a voz nem o olho podem atravessar.”
texto: Liane Chipollino Aseff
fotos: Marlon Aseff, Lucianne Hamilton.
Ótimo e esclarecedor o texto da profa.Liane.Sem história, sem registro, atropela-se o passado. Sem passado ficamos sem rosto.Principalmente nessa linha que une dois povos que testemunham e sempre o fizeram de uma convivência fraterno exemplo para o mundo nestes dias conflituosos. Não descaracterizem a Pça.Internacional.
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