*por Marlon Aseff
A noite de 24 de setembro de 1950 ficaria marcada na história da
fronteira de Santana do Livramento e Rivera devido ao assassinato de quatro
militantes comunistas, reunidos em frente ao Parque Internacional, na linha
divisória que separa Brasil e Uruguai. O ato, de panfletagem e pichação, seria
de afronta ao governo Dutra, de apoio aos candidatos apoiados pelos comunistas
às eleições que se avizinhavam, de rechaço ao fascismo e contra o imperialismo,
reforçando o teor da linha adotada pelo Partido Comunista Brasileiro,
especialmente após o Manifesto de Agosto. Conhecido posteriormente como a
chacina dos quatro As – o nome dos mortos iniciavam todos sob a letra A (Aladim
Rosales, Ary Kulmann, Aristides Ferrão Corrêa Leite e Abdias da Rocha), o crime
teve a participação ativa de policiais, pistoleiros e representantes de
latifundiários, que faziam parte do grupo que chegou atirando, conforme a
versão dos comunistas. À frente do bando agressor estavam o comandante da
Brigada Militar em Santana do Livramento, Eleú Gomes da Silva; o comandante do
Exército, Ciro de Abreu, o delegado da polícia civil, Miguel Zacarias, o
advogado Mário Cunha e o inspetor de polícia Ário Castilhos, entre outros. Ao final
de menos de 15 minutos de confronto, jaziam os corpos dos quatro militantes
assassinados, e um saldo de pelo menos mais oito feridos, entre eles o
secretário do partido, Lúcio Soares Neto.
A primeira investigação consistente sobre a chacina surgiu em 2006,
através da dissertação de mestrado da historiadora Liane Chipollino Aseff. A
pesquisadora enfoca especialmente a vida cultural na fronteira de Santana do
Livramento e Rivera entre as décadas de 1930 e 1960, e embora não fosse seu
objetivo inicial, registra o crime do Parque Internacional como uma marca da
violência que imperava no ambiente político de Santana, onde desde o início do
século não era incomum a pistolagem, a mando de políticos e grandes
proprietários de terras. Talvez o grande mérito da abordagem seja a construção
dessa fronteira ao mesmo tempo envolta em jogos, cabarés e uma vida noturna
repleta de atrações, contrastando com um setor subalterno da população,
trabalhadores da fábrica ou dos campos, dependentes dos grandes mandatários,
fossem fazendeiros, comerciantes ou políticos. Uma fronteira caracterizada como
excludente àqueles que não possuíam poder ou riqueza, surge em depoimentos
orais que assinalam por primeira vez o protagonismo de personagens que iriam
ser abordados nas pesquisas seguintes. Conforme veremos, as causas do confronto
recaem ora para a irresponsabilidade da direção do partido, que teria instado o
ato, mesmo sob o clima aberto de conflito com as forças policiais e econômicas
da cidade, ora a uma cilada armada deliberadamente por setores ligados ao
Frigorífico, composta por forças policiais e pistoleiros.
O ex-operário do Frigorífico Armour, Hugo Nequesauert, fez questão de
absolver a direção do partido em Santana, afirmando ter presenciado o
telefonema em que Lúcio Soares Neto é instado a levar à frente o ato político
pela direção do comitê estadual do PCB, então na clandestinidade.
Em 1950,
quando aconteceu a chacina eu não estava mais no Armour. Já tinha sido botado
para a rua, por causa da greve que fizemos.
Havian sindicalistas, casi todos, mas era el partido que estava
determinando os acontecimentos. Era época de eleição, se supo que la policía ia tomar represálias, e se consultó a Porto Alegre e
yo era uno, solo yo, que estava com
Lúcio quando recibió ordenes de que podian hacer pichamento legalmente, que
estava todo determinado de que no ia passar nada. Entonces aí se resolvió
hacer, se convoco a la gente toda e se fez, se começo a pichar, quando vê,
somos surpreendidos pela polícia. E chegou atirando, insultando e atirando e
matando. E matou quatro! Havia 15 o
17 personas quando mucho, no havia
más...Unos dirigian el trabajo e otros executavan el trabajo. Estavam
completamente desprevenidos, a arma deles era o pincel e a cal.
Embora Hugo reforce a ideia de que o grupo estava desprevenido, relata a
existência de uma retaguarda armada, que ficou encarregada da segurança. O
iminente enfrentamento com a polícia e as forças mais conservadoras da cidade é
usualmente relegado a um plano secundário, talvez para abrandar a
responsabilidade pelo confronto que poderia ser imputado aos líderes
comunistas, especialmente a Lúcio Soares Neto, que dirigia o ato. De fato,
entre militantes comunistas remanescentes, como Jorge Ferrão, há uma velada
culpabilidade a direção do partido pela atitude extrema do ato em frente ao
parque, pois já existiria uma advertência, do chefe de polícia, de que não
seriam toleradas manifestações do grupo comunista a uma semana das eleições.
Lúcio ficaria com a imagem desgastada perante uma parte dos militantes, como
Ferrão, que levantaram a versão de que ele próprio teria buscado abrigo atrás
de um dos militantes, morto pela polícia, conforme versão que correu
especialmente quando do julgamento dos envolvidos na chacina. Posteriormente,
como veremos, foi descartada essa hipótese, embora persistam ainda hoje nos
relatos orais uma reprimenda a atitude do secretário do partido, que por muito
pouco escapou de ser morto no combate. Uma versão recorrente em outras
narrativas,
culpabiliza o delegado Miguel Zacarias de promover o confronto devido ao fato
de estar disputando uma mesma mulher com Lúcio, hipótese passional que se demonstraria
inverossímil, ao tentar isentar, ao menos sob essa alegação, o líder comunista
das consequências de promover o ato ou não perceber que jogava os militantes em
um enfrentamento aberto e previamente anunciado. Pouco antes do confronto, a
escassos metros do local, em solo uruguaio, o pecuarista e militante Perseverando
Santana e seu tio, Sona Santana, acompanhavam os preparativos de um pirão de
cola, que seria usado para afixar cartazes nos tapumes que protegiam a obra do
edifício Palácio do Comércio, ponto comercial que estava sendo construído bem
em frente ao parque. Estavam no restaurante Doña Maria, de propriedade de Ari
Kulmann, que seria assassinado logo em seguida. Conforme depoimento de
Perseverando Santana, o clima de enfrentamento era de conhecimento de todos.
Talvez por isso tenha se posicionado contra o ato, muito embora vencido pela
direção local.
(...) sentados em uma das mesas do restaurante Doña
Maria, Persevarando, Sona e Ari Kulmann, que não estava escalado para a
pixação, conversavam e aguardavam. Perseverando lembra que, em meio a um
ambiente tenso, o companheiro Ari disse: "Tchê, vocês não tem um revólver?
Sim, porque hoje vai se dar alguma coisa". Kullman decidiu então
participar das pixações e “tomou” o pincel de Magalhães, que estava já preparado
para o serviço. Na praça estavam escalados para dar segurança ao grupo os
companheiros Holmos, Lucio Soares Neto,
Hugo Nequesauert, Doralino Trindade, Pedro Perez, Santos Rodrigues e Amaro Gusmão.
Entre os militantes da linha
de frente, dois candidatos às eleições que se avizinhavam encabeçavam o ato: o
vereador Solon Pereira Neto, ex pessedista convertido à causa comunista,
jornalista incendiário e par de Lúcio Soares Neto nas causas operárias
defendidas na Câmara Municipal, candidato a deputado estadual pelo Partido
Republicano; e Aladim Rosales, reconhecido líder dos trabalhadores do
frigorífico, demitido na greve do ano anterior, candidato a deputado federal. A
versão de Perseverando Santana remete ao local do crime, por voltas das 22h.
Conforme ele, o primeiro a ser baleado pelos policiais, que teriam chegado insultando
e provocando o conflito foi Ari Kulmann.
Hélio Santana Alves levou um tiro nas nádegas. Aristides Corrêa foi
baleado no peito. Santos Rodrigues também baleado, nas pernas, sobreviveu. Abdias
foi atingido na boca e caiu mortalmente ferido dentro do Café Tupinambá,
tradicional cafeteria localizada no Largo, exatamente em frente à calçada onde
se deu o conflito. Aladim Rosales também morreria no local, com um tiro à
queima roupa. Ari Kulmann ainda seria levado ao hospital, mas não resistiria.
Finalmente, entre o grupo comunista, Lúcio Soares Neto escaparia ferido por
entre o Parque, buscando refúgio na casa de Francisco Cabeda, localizada a
poucos metros do conflito, no “lado uruguaio” da linha divisória.
Perseverando Santana
rememorou, 64 anos depois dos acontecimentos, o contexto em que se deu o crime,
afastando o partido de alguma responsabilidade pelas ações de confronto aberto,
mas reforçando nas entrelinhas a culpabilidade de setores mais conservadores da
cidade, especialmente os ruralistas e a direção do frigorífico, que não
aceitavam os desdobramentos da organização dos trabalhadores, especialmente
após a greve do ano anterior.
O partido foi cassado em 1947, depois cassaram os
representantes do partido em 1948, entraram na clandestinidade partidária,
então se usava as legendas de outro partido. Partido Socialista, Partido Republicano,
e quando se aproximavama as eleições para presidente da república e o governo
do estado, em 1950, lançamos pelo Partido Republicano o Solon
Pereira Neto. Mas anterior a isso, a greve de 1949 no Armour teve grande
repercussão, e os dirigentes dessa greve foram presos e até o Exército os levou
para o quartel, o que não podia, e depois soltaram. Daí formou-se um clima
muito grande sobre a atuação do partido, e o Armour tinha um poder muito grande,
econômico, onde 50% dos impostos da cidade eram do Armour. E houve uma reunião
na casa do Lúcio Soares Neto, que era o secretário naquela época, e de lá do
comitê estadual veio a ordem, pode pintar que é legal. E era legal mesmo, era o
Partido Republicano...Mas a polícia sabia que era o partido....ora...e tinha
algumas opiniões, tava o Mário (Santana), e outros, inclusive parece que o
Heron (Canabarro) também, que achavam que era provocar a polícia, que havia
perigo.
Hugo Nequesauert narrou sua
versão do conflito, desabonando o clima de enfrentamento aberto que existia
como consenso entre os militantes momentos antes do embate. Preferiu enfatizar
uma situação de emboscada e legítima defesa.
Nós estávamos tranquilos, os três num acento no Parque,
eu estava no meio, o Lúcio no lado uruguaio, mas no Brasil, e o Amaro (Gusmão)
no lado de Santana. Todos aí tranquilos, e numa dessas o Lucio me diz, que é
isso? Mas que é isso, barbaridade! E eu não entendia, até que me olhei para os
lado e me dei conta e vi aquele grupo tremendo de gente, todos armados,
bancando o valente, alguns com o chapéu bem requintado, pra frente, dispostos a
brigar. E insultando. Comiunistas filhos deste, comunistas filhos daquilo..de
tudo que é maldade diziam. E eu digo, são eles! E o Lúcio me diz, mas eles
quem? E digo, eles, a polícia hombre (risos). Aí ele entendeu, se levantou,
puxou o revólver, e marchou pela calçada. Eu fiquei no mesmo lugar, mas na
calçada, onde eles iam passar. E “ansim” foi. O Lúcio se pegou a tiro com um
policia lá adiante. Eu não vi nada disso, absolutamente nada dessa parte. Mas
chegou a minha. Porque seguiram invadindo. Chegou a minha. E eu já estou
atirando na montoeira, tirando vantagem. E não importa em quem pegue, que pegue
em qualquer um deles tá bem pegado. Mas se terminaram as balas rápido, eram
seis balitas. E eu tinha mais no bolso, porque eu sempre usava mais. Carreguei.
Mas quando eu tô carregando o revólver dô uma olhada não?, porque tem que estar
olhando. E o Solon vem com um boletim do pichamento, insultando a um polícia.
Chamando de facista, disso e de aquilo, de corrupto, de todo lo que cabe. E eu
baixei a cabeça pra carregar de novo. Porque cambiei de idéia. Digo, vou atrás
do Solon...vão matar. Bem essas foram as minhas palavras. Termino de carregar,
e olho e o Solon tá caído. Derrubaram ele à bala. Então eu cambiei de rumbo, eu
ia prum lado, e resolvi passar a rua e acudir o Solon, que tava morrendo ou baleado,
pelo menos tava caído...e atravessei a rua no meio das bala, brigando.
Perseverando reforça o caráter
arbitrário da ação e a prisão ilegal de Solon. Prefere retirar a responsabilidade
de Lúcio Soares Neto pelo ato. Tampouco faz uma autocrítica sobre o rumo de
radicalização extrema pela qual passava o partido naquele momento.
O Solon
ali tava fazendo propaganda. Não tava armado. Se ele tivesse armado.... tava fazendo propaganda como candidato. E
quando veio a polícia, que esparramou, ele com um maço de jornais disse, vocês
não respeitam, fascistas... e tal, como ele era, temperamental bárbaro, o Solon. Ali ele
recebeu uma pancada na cabeça e caiu... e quando vinha o policial para dar um
tiro, qualquer coisa, o Hugo Nequesauert me disse, deu o tiro e feriu na perna,
o Caetano. Compreendeu? E levantaram, o Solon foi preso. E colocaram ele no
presídio. Ele era vereador. Mas sem partido, porque ele aderiu ao partido
comunista... que foi outro erro. Como o Santos disse, ele não tinha que sair do
partido, o PSD, ele tinha que ficar lá dentro. Mas, naquele sectarismo.
Hugo não relata o suposto tiro no soldado Caetano. A partir do momento em
que narra o momento no qual acode Solon,
leva o depoimento para a ocasião em que estaria no Parque, em meio a uma
possível fuga, quando se encontra com o advogado Mário Cunha.
Me paro aí
perto do Solon, e olho para a esquina de lá, e por lá só pode vim ... bem pela
linha, tem um parquezinho ali que é metade Brasil, metade Uruguai, na mesma
rua. E apareceu aquele homem grande gritando, em manga de camisa...(imita
grunhidos de gritos), aqueles grito fantástico...reconheci...e chegou e me viu.
E eu tô me retirando, dale... que que ia fazer.
E me apontou. E aí eu reconheço que era o Mário Cunha, e digo, vai me
atirar...e não demorou nada, chegou perto, mas perto não?, relativamente cinco
ou seis metros. E me começou a atirar. Mas mal, atirava. Eu notava, ele me
apontava...eu tô aí, ele apontava aqui. E me olhava e atirava como se fosse em
mim. Errado todo. Então eu calmei. Esperei que tirasse seis tiro. Quando ele
tirou seis tiro eu avancei nele. Teria duas três bala ao máximo, capaz que no
tuviera. Avancei nele para dar bem de pertinho, porque já nem sabia bem quantas
bala tenia. E nos juntamos como el grando lua (?) (risos), e quando ele viu o revólver,
pequeno, 31, quando ele viu ele fez isso... com os braços levantou e me deu as
costas...e eu ia dá-lhe igual, que cosa....(risos) e se desesperou, gritou...e
o negro Ventura me grita do auto, não mate o homem seu, não mate. E eu vi que
era a voz de um companheiro, grande companheiro, e obedeci.
Assim como nos momentos decisivos que deflagraram a greve de 1949 no
frigorífico, o ano de 1950 e especialmente os meses que antecederam a chacina ficariam
marcados pelo tom das críticas comunistas sobre a ação deletéria do
imperialismo, com os frigoríficos estrangeiros estabelecendo verdadeiro terror
sobre a economia nacional. O aumento
crescente do preço da carne e a escassez do produto no mercado nacional, ofertado
de maneira precária e de má qualidade, denunciava o jornal Voz Operária, estaria
diretamente atrelado à ação nefasta dos grandes frigoríficos, que penalizavam os pequenos
produtores e destinavam o melhor da produção a um
esforço de guerra norte-americano na Coréia e a outros países sob ditaduras.
*Este texto é uma versão reduzida e adaptada de parte de um capítulo da tese de
doutorado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, intitulada “No
portão da fábrica - trabalho e militância
política na fronteira (1945-1954)”.
*foto: Ruínas do Frigorífico Armour em Santana do Livramento
VARGAS DE SOUSA. Oneider. As lutas operárias na
fronteira: a chacina dos quatro “As” (Livramento – RS/1950). Dissertação de
Mestrado. UFSM. 2014.