quarta-feira, 31 de março de 2010

Demônio, o início como artista circense


Aí, tinha um circo, na divisa de Rivera e Livramento que se chamava Os Águias Humanas, e de tarde sempre eu ia por lá, em cima do morro, no Cerro do Marco. Ali, e de maneiras que eu me dava bem com o pessoal, com os artistas e o dono do circo, fiz amizade. Aí quando eu briguei com o meu pai eu fui para lá, eu treinava com eles ali, porque no Ginásio Santanense naqueles tempos a gente tinha que treinar (boxe). Também, aprender a subir corda e baixar corda essas coisas toda, porque no momento que se formasse e fosse para o exército tinha que saber, para sua defesa própria. Aí eu conversando com o proprietário do circo, eu disse que tinha largado os estudos e queria viajar com o circo. Aí ele veio, falou com o meu pai, arrumou a licença e eu viajei, aí começamo a viajar, por toda parte desse mundo! [... ] Eu escrevo poesia, teatro, eu faço música, faço tudo, eu tô escrevendo um livro também. No circo eu fazia trapézio, fazia o globo da morte com moto, eu treinava no circo, mas daí comecei a apreender muitas coisas, a magia, junto com os artistas, era praticamente uma escola. [...] Em toda parte do Brasil, quem não conhece o "Demônio" não é brasileiro! E no estrangeiro também, tanto Uruguai, Argentina. Mas mesmo assim nunca me subiu para a cabeça que eu fosse melhor que ninguém! [...] na primeira viagem eu fiquei três anos viajando e depois vim aparecer em Rio de Janeiro! Do Rio de Janeiro eu voltei, tive um mês em casa, aí seguido peguei outro circo.
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O lutador, músico e multi-artista David Camargo, o popular Demônio (foto), recentemente falecido, relembrou seu início no circo, em depoimento a Liane Chipollino Aseff. Publicado em Memórias Boêmias - Histórias de uma cidade de fronteira (Edunisc, 2008).

terça-feira, 30 de março de 2010

Paulo José e uma certa Porto Alegre



“Eu me lembro do meu primeiro encontro com Porto Alegre. A família vinha de Bagé, de carro, era noite. Eu cochilava no banco traseiro. Acordei quando entrávamos na Avenida Borges de Medeiros, ao lado da Avenida Praia de Belas, e aí eu vi imponente, monumental, maior do que a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Sebastião juntas, mais alto do que a Ponte Seca, mais bonito do que a casa do meu avô, o Viaduto Otávio Rocha. Depois, pela vida afora, vi outros espaços monumentais impressionantes: a Piazza San Marco, em Veneza, o Arco do Triunfo, o Coliseu de Roma, o Parlament House com o Big Ben, mas nenhum deles me fez o coração disparar como aquela visão dos meus oito anos. O Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento.

Eu me lembro que o Pão dos Pobres ficava nas margens do Guaíba, lá onde a cidade acabava. Eu me lembro que a lancheria das lojas Americanas era o ponto chique da cidade. Eu me lembro que tinha até banana split. Eu me lembro que eu sabia de cor todas as transversais da Avenida Independência, do Colégio Rosário à Praça Júlio de Castilhos: Rua Barros Cassal, Rua Thomaz Flores, Rua Garibaldi, Rua Santo Antônio, Rua João Telles. Eu me lembro da Pantaleão Teles, da Cabo Rocha, American Boite, Maipu, Gruta Azul. Eu me lembro do conjunto Norberto Baldauf, da Orquestra Espetáculo Cassino de Sevilha, do Conjunto Farroupilha, dos Quitandinha Serenaders: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda chora...” Lembro da tristeza da minha mãe quando emprestei o violão do meu irmão para um baiano que estava passando uns tempos aqui em Porto Alegre. Eu me lembro que o meu violão nunca mais voltou e que o baiano se chamava João Gilberto.

Lembro do Hino Rosariense. Lembro que Maria Della Costa era garota da capa da revista O Globo, e tinha as pernas mais lindas do mundo. Lembro dos festivais Tom & Jerry nas manhãs de domingo no cinema Avenida, das matinês do Cinema Victória, dos cinemas Rex, Roxi, Imperial, Cacique. Lembro do mezanino do Cinema Cacique, que servia a última novidade em gelados, o Peach Melba. Lembro que todo o mundo detestava os filmes do Cecil B. de Mille, exceto o público.

Lembro que no abrigo dos bondes da Praça XV podia-se beber o caldo da salda de frutas, sem frutas, apenas seus vestígios. Aquela água era néctar dos deuses. Lembro do Vicente Rao, do Bataclan, do brique Ao Belchior, do Senhor Joaquim da Cunha, do Farolito e do China Gorda.

Lembro que pela margem direita eram o Javaí, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu, e pela esquerda o Japurá, Negro, Trombetas, Paru e Jarí. Eu me lembro que meus professores diziam que ensinamentos como esses seriam de grande utilidade para a vida. Lembro do irmão Ary, professor de Biologia, recusando-se a falar da teoria de Darwin: “Quem quiser que descenda do macaco, eu descendo de Adão e Eva”. lembro que ele nos preparava para o vestibular de Medicina. Eu lembro do Pervitin que a gente tomava para passar a noite estudando e tirava nota ruim no dia seguinte.

Lembro do rodouro metálico e seu jato gelado que fazia tudo girar. Lembro do Gin Fizz, do Hi-Fi, do Alexander, da mistura de Coca-Cola com cachaça que levava o nome apropriadíssimo de Samba em Berlim. Lembro do footing da Rua da Praia, onde a gente exibia a camisa volta-ao-mundo, de nylon, e que diziam que iria revolucionar o vestuário masculino. Lembro das calças de brim-coringa farwest.

Lembro que a deusa da minha rua era a Maria Thereza Goulart, que não era ainda Goulart. Ela morava no edifício Glória e recebia visitas misteriosas de um João, este, sim, Goulart, que era invejado por toda a garotada da Barros Cassal.

Eu me lembro do tempo em que futebol se jogava com goleiro, com dois beques, três na linha-média e cinco no ataque e que, em geral, faziam-se gols. Eu me lembro do time do Inter, imbatível, nos anos 50: La Paz, Florindo e Oreco, Paulinho, Salvador e Odorico, Luizinho, Bodinho, Larry e Canhotinho.

Eu me lembro de um tempo sem malícia, quando o estádio dos Eucaliptos torcia, gritando em coro: Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado. Eu me lembro do Café Andradas, onde a gente ia matar aula e encontrava o Henrique Fuhro. O Abujamra, que anunciava tragicamente: “O homem é uma paixão inútil!...Mais um café, Macedo”.

Eu me lembro do Bar Matheus, na Praça da Alfândega, da Pavesa, do Treviso, da cadeira pendurada na parede, onde sentou Chico Viola. Da sopa, do mocotó levanta-defunto do mercado Público, do sanduíche-aberto do Bar Líder, daquela mostarda amarela do Galeto do Marreta e, por fim, do cachorro-quente da praça do Colégio Nossa Senhora do Rosário, sem favor nenhum, o melhor do mundo.

“O sabonete Cinta-Azul tem o prazer de apresentar um novo filme de caubói Bat Masterson, Bat Masterson”.

“Phimatosan, quando você tossir, Phimatosan, se a tosse repetir”.

“Ela é linda, ah! É noiva, oh! Usa Ponds, Aaah!”.

Eu me lembro do desodorante para privadas Desodor, “Libera o ambiente dos odores estranhos”, do Detefon, do espiral Boa-Noite, da cera Parquetina, da creolina Cruswaldina, do formicida Tatu.

Eu me lembro que o Jeca Tatu tinha verminose, era pálido, maltrapilho, preguiçoso e roubado pelo patrão. E era um herói nacional... Eu me lembro das missas rezadas em latim, dos padres de batina e do seu indisfarçável sotaque da Colônia: “caríssimos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo! Naquele tempo, vindo Jesus com os seus discípulos”...

Eu me lembro da Glostora, da Antisardina, “O segredo da beleza feminina”, Odorono, Cashmere Bouquet, “O aristocrata dos produtos femininos”, Lusoform Primo, poderoso desinfetante contra frieiras, pé-de-atleta, CC – cheiro de corpo, mau hálito e pós-barba.. Eu me lembro de um perfume da fábrica Colibri, Água de Cheiro Amor Gaúcho.

Eu me lembro de Ildo Meneghetti, o candidato invencível, e me lembro de sua quase absurda honestidade, quando declarou: “Meu maior erro foi ter derrotado Alberto Pasqualini, ele tinha um plano de governo e eu, não”.
Eu me lembro do dia 24 de agosto de 1954. A morte de Getúlio se alastrando pela cidade, incendiando a Rádio Farroupilha, empastelando o Diário de Notícias, destruindo a sede da UDN, depredando tudo que tivesse nome americano: o Consulado, as Lojas Americanas, até a American Boite...

Eu me lembro do P.F. Gastal, criador do Clube de Cinema e que me apresentou a alguns gênios da tela.. Um deles, contava Gastal, se apresentou para uma plateia de apenas quatro pessoas, em Berlim, dizendo: “Sou ator de teatro, cinema, escrevo contos, programas de rádio, TV, dirijo filmes, peças, sou ventríloquo, ilusionista, mágico. Pena eu ser tantos e vocês tão poucos. Meu nome é Orson Welles”.

Eu me lembro do Teatro de Equipe, na General Vitorino, do Teatro de Belas Artes, na Senhor dos Passos, e da Confeitaria Atlântica, na Praça Dom Feliciano, ponto de encontro e desencontros dos artistas do Theatro São Pedro. Eu me lembro que nós, Luiz de Matos, Ivete Brandalise, Peréio, Nilda Maria, Mário de Almeida e tantos outros, trabalhávamos como diretores, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, contra-regras. Eu me lembro que, às vezes, eu tinha a sensação de que éramos tantos e vocês tão poucos... Mas, eu me lembro que “qualquer prazer me diverte e qualquer china me interte!”
Eu me lembro que a Livraria do Globo era uma loja que vendia livros... Eu me lembro do Loxas, do Janjão, do Sunda... Mas, sobretudo, eu me lembro do Mário, aquele... Eu me lembro que: “Não adianta bater, que eu não deixo você entrar”.

Eu me lembro da Emulsão de Scott, do Calcigenol Irradiado, do Peitoral de Angico Pelotense, da Pomada Minâncora, das Pílulas de Vida do Dr. Ross, “fazem bem ao fígado de todos nós”, do Regulador Xavier, “vive melhor a mulher”, do Pó Pelotense, do vinho reconstituinte Silva Araújo, “V de Vida, R de resistente, S de saúde e A de alegria”. do rum Creosotado e dos reclames dos bondes da Carris: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado, e, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum Creosotado”.

Eu me lembro, sempre, de não confundir capitão-de-fragata, com cafetão-de-gravata. Eu me lembro que até os craques da locução confundiam “alhos com bugalhos”. Ernani Behs, a máxima voz da Rádio Farroupilha, uma noite anunciou, solenemente: “Transmitindo do alto do Viadeiro Borges de Meduto...”. Eu me lembro que “Bartolo tinha uma flauta, a flauta era do Bartolo, sua mãe sempre lhe dizia: toca a flauta meu Bartolo”. “Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão da boca e botava a mão no...”.

Eu me lembro que: “Até a pé nós iremos, para o que der e vier...”. Eu me lembro de que não foi exatamente a pé, mas atravessando o mundo, de avião, que o Grêmio conquistou o Campeonato Mundial de Clubes. Do show de bola do Renato, Mário Sérgio e demais heróis tricolores. “Até o Japão nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos.”
Eu me lembro que: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar...”
Eu me lembro do Programa Maurício Sobrinho, do Clube do Guri e de uma caloura que diziam ser a nova Ângela Maria. Eu me lembro que ela morava na zona Norte e se chamava Elis Regina. Eu me lembro de uns versos:
“Elis, quando ela canta me lembra de um pássaro,
Mas não é um pássaro cantando,
Me lembra um pássaro voando”.
Eu me lembro de uns quintanares:

“Olho o mapa da cidade
como quem examinasse
A anatomia de um corpo
(É nem fosse o meu corpo).
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas rua que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando for, um dias desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade do meu andar
(Deste já longo andar!)
E talvez do meu repouso...”
Eu me lembro de que o Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento. Era guri de Lavras, chegando nesta Cidade Grande. Esta cidade que me acolheu. Nela cresci, me fiz homem, aprendi ofício. Devo isso tudo a Porto Alegre. Hoje realizo uma fantasia de adolescência: ser porto-alegrense. Hoje, eu sou um cidadão da cidade que tem o Viaduto Otávio Rocha, orgulhosamente.
Agradeço a homenagem que me emociona, me toca fundo no coração. Eu sempre lembrarei disso, sempre lembrarei, e me lembrarei. Obrigado.”
/
Texto enviado por uma amiga, creditado ao ator Paulo José, quando homenageado com o título de Cidadão de Porto Alegre. Como tudo que é enviado pela Internet, no princípio há a desconfiança. Mas o texto é tão belo e recheado de tão vivas lembranças, que não resisti em postar aqui. (Na foto, a Catedral Metropolitana, vista da Rua da Ladeira, em novembro último)

sexta-feira, 26 de março de 2010

A imigração árabe na fronteira (parte 2)






A cidade de Rivera, fundada com o propósito de demarcar o território cobiçado em disputas fronteiriças, constitui-se em um vigoroso centro de comércio. Santana do Livramento, por outro lado, permanecia com o comércio dominado pela oligarquia rural e a característica de uma sociedade excludente. Rivera havia sido fundada por comerciantes estrangeiros, entre espanhóis, italianos e franceses, sendo mais tarde ocupada também pelos comerciantes libaneses, que criaram ali um núcleo comercial próprio. A concorrência entre os diversos grupos de imigrantes pela disputa do mercado consumidor fez com que os libaneses se radicassem na zona periférica. O comércio da rua central era dominado pelos espanhóis e italianos. Atravessar a fronteira e obter mercadorias sob baixos impostos era um atrativo para muitos comerciantes de cidades próximas. Aos imigrantes abria-se também a possibilidade de uma fiel clientela binacional, devido a constante instabilidade cambial e a economia pendular, característica da região. O tradicional comércio do tipo formiguinha, de gêneros alimentícios, do vestuário ou de gêneros variados, nunca foi reprimido com eficiência nessas cidades gêmeas. Rivera foi a segunda cidade do país, depois de Durazno, com maior número de comerciantes libaneses.
A comunidade libanesa estabeleceu-se na calle Brasil, próxima ao Ferro Carril, onde havia constante fluxo de mercadorias, pessoas, diligências e carroças. Os comerciantes árabes perceberam ali a grande oportunidade de vender suas mercadorias para a população local, que vinha tanto da cidade como do interior. Os jovens imigrantes que desembarcavam na ferroviária logo percebiam nos arredores um auspicioso núcleo comercial. Aquela via era habitada por uma população de maioria árabe, como carinhosamente relembrou o poeta Zaz Recarey ” había allí una turcada maravillosa” ele próprio filho de libaneses. Foi o caso de Elias Normey (em árabe, Nagme) e sua mãe Yesmín, que em fase de adaptação emigratória, decidiram deixar os Estados Unidos pelo promissor Uruguai. Sob indicações de parentes que já viviam em Rivera, sua prioridade foi saber, onde se localizava o centro comercial. Em 1912, quando ali chegou, fixou moradia na calle Brasil, que era garantia de bons negócios. Mais tarde, estabilizado, fundou a tradicional Casa Elias Normey. Elias procurou dentro da comunidade de imigrantes libaneses uma moça para casar e formar sua extensa família. Logo de sua vinda para a cidade, foi vítima de discriminação policial, quando trabalhava com a venda de mercadorias em uma carroça. Foi interpelado por um guarda, que agressivamente o chamou de turco, exigindo que o assustado jovem apresentasse sua documentação de estrangeiro e licença para “andar mascateando naquela rua”, segundo relembrou seu filho Luis Normey. Após muitas tentativas de comunicação, pois Elias ainda não dominava o idioma local, foi salvo por um amigo uruguaio, que fez sua apresentação para a autoridade, liberando-o da iminência da prisão.
A partir das primeiras décadas do novíssimo século que vinha à luz, as cidades da fronteira se tornaram alvos novos para a maioria da população estrangeira que chegava às capitais do Prata. Logo a comunidade libanesa estabelecida em Montevidéu soube que Rivera convertera-se em centro aglutinador do comércio e da emergente indústria da carne e do couro. A modernidade havia se instalado na região com a introdução de serviços que favoreciam o franco desenvolvimento daquela comunidade do interior da república: a estação ferroviária, os lampiões para a iluminação pública, a telefonia e ginásios públicos, os liceus, constituíram-se em significativos atrativos para os novos moradores. Havia muito tempo que o serviço dos correios atendia as cidades fronteiriças através das diligências que costumavam romper os limites, em direção a cidades como Bagé. A industrialização, por sua vez, agregou grande desenvolvimento cultural e econômico para a região. Inicialmente, as charqueadas, depois os frigoríficos estrangeiros excederam a mão de obra de trabalhadores locais, abrindo frentes para operários capacitados, como os imigrantes espanhóis, italianos e libaneses. Porém, se os europeus buscavam trabalhos sazonais nas indústrias, os árabes preferiam a autonomia da atividade varejista, baseada na informalidade. A maioria dos entrevistados nesta pesquisa se utilizaram da expressão liberdade para justificar sua escolha pelo cotidiano do comércio ambulante, mesmo sob condições de insegurança e intempérie. Entretanto, essa é uma das questões que devem ser investigadas sob novas perspectivas, tendo em vista que nesse momento a região foi tomada por intenso movimento de greves, liderada por anarquistas espanhóis e italianos, quando então estava em gestação uma classe operária nos países do Cone Sul.
A economia vigorosa dos frigoríficos em Santana do Livramento teve seu início em 1917 e viveu o apogeu no período da Segunda Guerra entre 1940-44, quando a indústria de carnes abastecia as frentes aliadas. Esse processo vinha desde o advento das charqueadas e, mais tarde, com a indústria frigorificada consolidou-se a exportação de carnes de qualidade para o consumo da população da Europa e Estados Unidos. Assim a região e as cidades próximas a ela, se tornaram um porto seguro para muitas famílias de emigrantes, especialmente os libaneses.
Na década de trinta, a cidade de Bagé, localizada a cerca de 200 km da fronteira, fazia parte do mercado exportador de carnes. Haviam seis charqueadas e uma considerável comunidade de comerciantes sírios e libaneses, que vendiam a esses trabalhadores suas mercadorias consignadas. Outros se dedicavam ao cultivo de hortaliças e temperos. Algumas famílias radicadas em Rivera cultivavam hortaliças em quintas e vendiam para a extensa comunidade libanesa que ali morava. Fouad Chein relembrou dessa troca comercial com Bagé, pois “os que plantavam em Rivera não dava para todos, papai comprava os que vinham de Bagé, dos nossos amigos patrícios"
A primeira geração de emigrados libaneses no Uruguai e na região da fronteira mostrou características semelhantes a outros países da América, composta por jovens solteiros que buscavam estabilizar-se financeiramente. No entanto, em meados dos anos cinqüenta vai se configurar um segundo processo imigratório na região, apresentando aspectos diferenciados daquela primeira geração. Segundo apurei preliminarmente, a maioria dos cidadãos que aportavam em Montevidéu já apresentavam conhecimento da fronteira, por meio de informantes. Através de dados minuciosos do lugar e com algum conhecimento básico do idioma local, sentiam-se seguros para iniciar o ciclo de prosperidade e árduo trabalho. Os que deixavam o mediterrâneo haviam recebido o convite de um parente próximo para seu estabelecimento na fronteira uruguaio-brasileira. O episódio protagonizado pelos amigos Antonio El Tors e Ibrahim Tarabay ilustra esse momento.
Antonio Iskandar El Tors e Ibrahim Tarabay, nascidos no Líbano, emigraram para o Brasil e Uruguai no início dos anos cinqüenta, integrando segunda geração de libaneses que residem na fronteira. Contudo, sua trajetória na América do Sul foi bastante diferenciada. Antonio, ao contrário de Ibrahim, emigrou para o Brasil com objetivo de desfrutar um “modelo brasileiro de viver”. Buscava o convívio alegre e caloroso da população, conforme anunciavam alguns de seus amigos que já tinham conhecimento e haviam trabalhado no país. Ibrahim, por sua vez, chegou ao Uruguai em meio a uma tragédia pessoal, e teve seu destino modificado. Esses dois libaneses, mesmo tendo conhecimento mínimo do idioma, buscavam um novo modo de viver, conforme anunciavam as publicidades do Brasil feitas no exterior.
No ano de 1956, Ibrahim deixou seu comércio e a família no povoado em que nasceu, ao norte do país, na fronteira com a Síria. Lá, havia casado há pouco tempo e tendo poucas perspectivas de trabalho, aceitou o convite para conhecer a América. Seu tio vivia confortavelmente em Rivera desde os tempos da Primeira Guerra. Em 1956, em meio a forte emoção de ter perdido seu primeiro filho, de três anos de idade, viajou com a esposa até Rivera. Ibrahim não pretendia prolongar sua visita, mas mudou de opinião após conhecer a fronteira e as boas possibilidades de trabalhar. Trabalhou por muitos anos com seu tio, em uma loja e na propriedade rural da família. Com a morte do tio herdou várias propriedades e montou seu comércio em Santana, a popular Casa Líbano. A trajetória de Ibrahim reforça um aspecto peculiar dessa fronteira, pois mesmo possuindo comércio no lado brasileiro, viveu e educou seus filhos em Rivera, e nunca quis mudar sua loja para o lado uruguaio. Alega que está satisfeito com a localização de seu comércio, no centro da linha divisória e de uma simpática vizinhança, composta por seu amigo Antonio El Tors e comerciantes palestinos, com quem diariamente conversa em árabe.
Antonio Iskandar El Tors chegou ao Brasil em 1950 até se decidir pela fronteira em meados de 1953. Por gostar de São Paulo, deu o nome de seu comércio localizado na linha divisória, de Supermercado Paulista. Adaptou-se plenamente ao Brasil, entre outros motivos, porque ‘ Ninguém pergunta aonde vai ou da onde vem!”Elegeu Santana para morar e criar seus filhos. Orgulha-se de visitar anualmente o Líbano, sua terra ”e nela manter muitas propriedades”. Todos em sua família falam árabe entre si, além da fluência em português e espanhol. Embora seus filhos tenham nascido no Brasil, são casados com mulheres libanesas. Antônio, no entanto, apesar de morar há mais de 60 anos na região, pouco aprendeu das línguas portuguesa e espanhola. Sua fala é acentuadamente árabe, e uma mistura das três línguas. A trajetória singular de Antonio pode ser caracterizada por essa linguagem híbrida, em uma espécie de resistência cultural que não o permite dominar plenamente nenhum dos dois idiomas falados na fronteira. Foi com muita dificuldade que com ele convesei, sendo auxiliada constantemente por sua nora, a libanesa Lourance, que fala fluentemente o português. No seu lar, a figura do patriarca é notadamente considerada, seus filhos, noras e netos se comunicam entre si em árabe. Observando os poucos libaneses que residem na fronteira, penso que essa prática de Antonio e sua família teve bons resultados, diante de outros núcleos que chegaram à fronteira na primeira geração e perderam a referência da língua. Os pioneiros geralmente casaram-se com pessoas da região. Integraram-se socialmente na comunidade e aos costumes locais, mas acabaram perdendo o contato com a língua mãe.
A trajetória dos irmãos Chein serve para ilustrar a adaptação e descaracterização dos costumes árabes impostos na terra estrangeira. Os irmãos Fouad e Inácio Chein, nascidos e batizados no Líbano chegaram ao Brasil em 1914, acompanhados de seus pais, Nahim Jorge Chein e Kanra Azario Chein. Fouad com apenas alguns meses de vida e Inácio ainda não havia completado dois anos. À procura de um lugar para fixar moradia, seus pais após percorrerem capitais como Rio de Janeiro e São Paulo, se decidiram pela cidade de Bagé. A escolha provavelmente tenha se dado pelo fato de que naquele momento a cidade abrigava um grande número de imigrantes árabes, em torno de um emergente centro comercial e industrial. Durante os dezesseis anos que viveram nessa cidade, a família costumava conversar em árabe, mantendo os costumes da pátria distante. Esse fato foi decisivo para os irmãos Chein terem crescido dentro da cultura libanesa. Fouad Chein, hoje com 96 anos, recorda-se das noites em que sua mãe, católica, fazia diariamente os filhos sentarem-se em roda, no chão, para rezar em árabe antes de irem para a cama. No entanto, a proximidade cotidiana dos costumes árabes não impediu que seus pais optassem pela nacionalidade brasileira, quando os irmãos ainda eram pequenos. Então Fouad e Inácio Azario Chein tornaram-se os brasileiros Fouad Azario dos Santos, sua mãe, Ámira Azario dos Santos e seu pai, Nahim Jorge dos Santos. Contudo, quando seu pai decidiu partir para a fronteira de Santana do Livramento e Rivera, suas vidas vão tomar um rumo muito diferente.
No início da década de trinta a família Chein sentiu de perto o desprendimento dos patrícos radicados ali pelas raízes libanesas. Sem o estímulo necessário, com o passar do tempo foram desaprendendo o árabe. Embora Santana fosse atrativa para os negócios, culturalmente os desarticulava e afastava do Líbano. Um dos maiores entraves que a família conheceu foi a escassez de compatriotas que dessem continuidade na língua pátria. Diferente de Bagé, onde existia uma vigorosa comunidade, em Santana havia poucos libaneses para se relacionar e dar continuidade a seus costumes. Sua sociabilidade então passou a ser dividida com as famílias de Salim Miguel e Rage Maluf. Entretanto, Salim e Rage haviam constituído um clã brasileiro, onde a segunda geração nunca foi estimulada a falar o árabe. Fouad e Inácio sentiram a necessidade de trabalhar, para auxiliar seus pais com sua extensa família. Logo souberam que o êxito dos negócios estava ligado à fluência da comunicação em português. A necessidade em se relacionar com os clientes e com comunidade fronteiriça exigia dos imigrantes a fluência nos idiomas português e espanhol. Outra limitação estava relacionada ao casamento. Casaram-se com mulheres brasileiras que não tinham interesse que seus filhos convivessem com a cultura árabe. Alguns motivos para esse fato, talvez seja a discriminação que essa geração de primeiros imigrantes sentiu logo no início de seu estabelecimento em Santana.
Ao contrário de Rivera, a cidade brasileira possuía uma comunidade conservadora e estratificada, onde os estabelecimentos comerciais eram fundados na tradição familiar. A maioria das casas era identificada com brasileiros natos, mantendo uma certa resistência aos comerciantes estrangeiros. Os imigrantes logo souberam que naquela região, a respeitabilidade e a ascensão social estavam intimamente ligadas. Desse modo, seus descendentes tinham que estar desvinculados de sua terra natal e da condição de “turcos” imigrantes. A solução para algumas famílias foi o esquecimento de seu idioma pátrio, absorvendo totalmente a cultura do país que os acolhia. Esse seria o legado a ser deixado pelos pioneiros aos filhos, integrados completamente na terra estrangeira.
Os irmãos Chein seguiram a trajetória exitosa de muitos imigrantes. Fouad, com apenas 14 anos, empregou-se na Casa Castro, tradicional comércio de tecidos e roupas de qualidade. Mais tarde integraria-se na maçonaria, completando um ciclo de aceitação pela sociedade local. Inácio trabalhou em casas de comércio até fundar seu próprio empreendimento, a Casa Garota. Foi então que propôs sociedade ao irmão. Em 1950 foi fundada a Casa Chein, para fazer a concorrência com outras lojas de qualidade, como a Loja Renner, o Varejo Martins, a Casa Castro e Casas Pernanbucanas. Retomando o vigor de sua ascendência libanesa, o comércio se notabilizou, através da estratégia publicitária criada por Fouad: Vamos a Casa Chein? Onde um cruzeiro vale cem! O anúncio permanece na memória fronteiriça.
Texto apresentado por Liane Chipollino Aseff no Festival Sul-Americano da Cultura Árabe, que acontece até o dia 31 de março em São Paulo. O texto integral fará parte de um livro sobre cultura árabe na América do Sul, abordada em variados aspectos, que será lançado durante o evento. Na foto, o pioneiro comerciante Foued Chein, de 92 anos, fotografado recentemente, em frente a sua loja.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A imigração árabe na fronteira ( parte 1)


Gostaria de abordar aqui aspectos de minha investigação sobre o processo imigratório árabe na fronteira brasileiro/uruguaia, entre as cidades de Santana do Livramento e Rivera, dos primeiros anos de 1900 a meados dos anos sessenta. Nas primeiras décadas do século 20 essa região, especialmente a cidade uruguaia de Rivera, foi escolhida por emigrantes árabes vindos, em sua maioria, do Líbano. A partir dos primeiros anos da década de sessenta, no entanto, são os palestinos que começam a chegar na fronteira. Muitos fugiram da opressão israelense após 1967. Irei tratar aqui das trajetórias de famílias tradicionais daquela fronteira, como os Normey, Maluf, Salim, Chein, Aseff, Tarabay, e El Tors. Esta investigação insere-se dentro de uma perspectiva da história cultural, onde me utilizei da memória oral, documentos particulares e oficiais, fotografias e periódicos. Convém ressaltar aqui o ineditismo desta pesquisa nesta fronteira do Cone Sul, especialmente no que se refere ao Uruguai e aos arquivos do Ministério do Interior daquele país.
Essa fronteira pode ser considerada um território ímpar, pois a delimitação física de sua linha divisória é quase imperceptível ao olhar forasteiro. Nesse sentido, ao longo de sua formação a região apresentou-se como um local para além dos horizontes regulatórios dos estados nacionais, atraindo toda sorte de estrangeiros, de turistas a emigrantes. O historiador uruguaio Waldemar Rodríguez Navarro assim caracterizou a região: “[...] desde el punto de vista urbanístico, forman una sola ciudad. Nosotros no vivimos en Rivera sino en Rivera y Sant’Ana. A nadie le extraña aquí que plazas, calles y avenidas, monumentos, un obelisco, una fuente luminosa, sean mitad uruguaya, mitad brasilera. Estamos habituados a esta manera de ser internacional". Os primeiros libaneses que ali chegaram puderam entrever o local como um mundo sem fronteiras, próspero, para viver e trabalhar e assim integrar-se ao universo pampeano-fronteiriço. Naturalmente que ao longo de sua linha de fronteira, os marcos divisórios orientam para o lado brasileiro ou para o uruguaio.
Embora as publicações que tratam sobre a chegada dos imigrantes árabes no Uruguai sejam esparsas, se destaca o pioneirismo do poeta e escritor uruguaio Antonio Dib Seluja Cecín, que em meados dos anos 80 deu início a investigação que o levaria aos pioneiros da emigração sírio e libanesa no país. Através da paciente compilação e catalogação de dados dispersos, documentos oficiais, literários e relatos de cartas manuscritas de descendentes de libaneses espalhados pelo interior do Uruguai, finalmente em 1991 conseguiu publicar sua obra Los Libaneses en el Uruguay .
A chegada dos primeiros buques (barcos) trazendo emigrantes estrangeiros ao Uruguai teve início entre as décadas de 1860-70. A maioria viajava de cidades do interior da Espanha, Itália e mais tarde, nas últimas décadas deste século, do Líbano. Segundos dados da Embaixada Libanesa no Uruguai, a população libanesa é a terceira maior comunidade estrangeira no país, superada apenas pela italiana e espanhola. O Uruguai, considerado terra da prosperidade pela primeira geração de imigrantes libaneses também se transformou em segunda pátria para essa comunidade.
Os primeiros imigrantes sírios e libaneses que aportaram em Montevidéu eram cristãos, católicos e maronitas. Alguns chefes de família sentindo-se perseguidos pelo rigor religioso do Império Otomano, deixavam sua prole e atravessavam o Atlântico. Buscando melhores condições financeiras, se arriscavam na nova terra para viver e trabalhar. Mais tarde, se utilizando de economias forjadas sob força de seu trabalho, buscavam suas esposas e filhos, ou retornavam para casar com jovens de sua pátria. Uma primeira pergunta se faz necessária: Qual motivo teria levado esses pioneiros a deixar seu amado Líbano? Os imigrantes árabes e seus descendentes que residem na fronteira foram unânimes em enfatizar a causa de sua saída: “No Líbano, não havia trabalho, era muito pouco, o país é bom para se viver, mas para trabalhar era muito difícil, a maioria vivia em aldeias agrícolas ou próximas a montanha, então um dia, resolvemos partir[...] O país era pequeno para tantos trabalhadores, mas sempre voltamos ao país para ver nossos parentes”, relatou um comerciante que reside em Rivera desde meados dos anos cinqüenta.
Pioneirismo e espírito aventureiro
A maioria dos emigrantes libaneses que buscavam o porto de Montevidéu vieram de aldeias camponesas das montanhas do interior do país. Muito jovens solteiros viajavam em busca de uma independência econômica. Aventuravam-se pelo interior da república uruguaia, tomando a campanha para si, vendendo suas variadas mercadorias, em busca da clientela que o novo ofício exigia. No princípio foram vistos com receio pela população rural, até que ganharam confiança e amizade da maioria das famílias da campanha. Sua freguesia principal eram as mulheres e crianças que moravam nas estâncias ou nas vilas próximas a elas. Também foram vítimas de violência e discriminação. No início os emigrantes libaneses ingressavam no país sem dificuldade alguma. Entretanto a partir de 1890, devido a grande afluência de estrangeiros árabes o governo uruguaio vai dificultar a entrada no país. Era a resposta às conseqüências do surto imigratório em um país pequeno e ainda muito ligado a atividade pecuária. A emenda constitucional que restringia a entrada dos árabes estabelecia em seu artigo 27 que se tornava proibida “en la República la inmigración asiática e africana”, sendo considerados inaptos “todo extranjero honesto y apto para el trabajo, que se trasladava a la República Oriental del Uuguay, em buquê a vapor o vela, com pasaje de segunda o tercera clase y con ánimo de fijar en ella residência”
A imigração então vai tomar outro rumo, estimulando os turistas emigrantes a embarcar e a chegar clandestinos ao país, já que poucos poderiam vir em primeira classe. Note-se que também não era nada barato passagens de segunda e terceira classe em navios que faziam a rota para a América. A partir de 1903, quando o presidente Juan Cuestas regulamenta a lei de imigração de 1890, vai ocorrer um espaçamento no surto emigratório.
O certo é que muitos burlavam a nova lei e continuavam viajando clandestinamente. Chegando em Montevidéu, logo recebiam o apoio e solidariedade de seus compatriotas. Havia muitos libaneses que mantinham uma espécie de pousada para os recém chegados ao país. Não raro, os clandestinos chegavam doentes, devido à longa viagem. Conforme nos ensina Antônio Seluja, nesses locais os viajantes se restabeleciam e enviavam notícias para a família que ficara no Líbano. Após dominar algumas palavras do espanhol, aprendiam o valor dos pesos uruguaios e recebiam algumas mercadorias. Passado o ritual inicial, com seus caixões estavam prontos para explorar a campanha uruguaia.
Os libaneses não foram indiferentes às transformações políticas que sacudiram o Uruguai no início do século 20. O sentimento de pertencimento a uma segunda pátria castelhana fez com que o imigrante acastelhanado Emilio Nizarala (em árabe, Nisrala), radicado em Rivera, se engajasse na coluna de seu amigo, o blanco Aparício Saraiva e fosse defender sua pátria. Antonio Seluja também relatou o célebre episódio da turca Carmen, da cidade de Trinta y Tres Orientales, que se engajou no exército colorado para lutar na revolução de 1904 junto ao General. Basilício Saravia. No cenário riverense dos primeiros anos de 1900, se impõe a figura de Juan Molke, já estabelecido e próspero comerciante. Entre a comunidade libanesa, atuará como uma espécie de cônsul, estimulando e patrocinando a vinda de jovens solteiros, que tinham esparsas oportunidades de trabalho em seus povoados. Porém, assim como o cônsul auxiliava os jovens, também mantinha sua autoridade sobre eles, estimulando e sugerindo o casamento entre as moças libanesas que chegavam ou as já estavam estabelecidas na cidade. Uma forma eficaz de perpetuar as raízes árabes no novo chão. Segundo Isabel Najas, Juan Molke pedia aos jovens solteiros que estavam sob sua proteção que constituíssem matrimônio, mesmo com as mulheres mais maduras, que já haviam, passado da idade para casar.
Emílio Nisrala, Juan Molke e Yussef Bushada (Juan Posada em espanhol), foram os pioneiros a se estabelecer em Rivera. Em comum tiveram o engajamento político nas fileiras do Partido Nacional, estimulando os jovens emigrantes de primeira viajem a aderirem a causa revolucionária blanca. A comprovação dessa hipótese encontrei nas imagens da época, onde a maioria das fotografias mostram os libaneses ostentando o simbólico lenço branco dos revolucionários de Aparício Saraiva. Mais tarde, os imigrantes e seus descendentes também iriam aderir às fileiras do Partido Colorado.
A segunda metade do século 20 encontraria os mascates já como respeitados cidadãos e suas mercadorias objeto de desejo da comunidade rural. Sujeitos transformadores do cotidiano pampeano, antes dos mercadores árabes, os artigos de consumo familiar eram escolhidos e comprados pelos chefes de família. Nesse sentido, os libaneses contribuíram para a inclusão das mulheres no universo consumista da região da campanha. Mais tarde, os vendedores de caches tornaram-se donos de lojas nos vilarejos, contribuindo decisivamente na formação de cidades, como é o caso de Tranqueras.

Texto apresentado por Liane Chipollino Aseff no Festival Sul-Americano da Cultura Árabe, que acontece até o dia 31 de março em São Paulo. O texto integral fará parte de um livro sobre cultura árabe na América do Sul, abordada em variados aspectos, que será lançado durante o evento. Na foto, a tradicional publicidade da Casa Chein, presente na memória dos santanenses.


segunda-feira, 22 de março de 2010

O cineminha de Hermes Walter


"Eu era guri pequeno, era bem pobre mesmo, sabe? Então eu ajudava pedindo nas casas em Rivera, nas famílias, pedindo para lavar as calçadas, limpar algo, e eles me davam uns trocados, e eu ia ao cinema ver meus filmes, eu tinha uns 10 anos... um dia quando passava um filme do Frankenstein, eu fui escondido do meu pai, e eu pensava, na portaria dos cinemas, porque eu era conhecido dos porteiros, sabe? Quanto jovem sem dinheiro como eu e querendo ver um filme...., Um dia eu vou fazer um cinema para mim e para eles! E fiz. Esses filmes passei todos lá ! (...) Um dia andando nas ruas de Montevideo, um senhor me pára e alegre me chama pelo nome- Don Hermes! - fiquei espantado, pois nunca tinha visto o sujeito. Ele notou e disse: Graças ao senhor eu pude ver filmes na minha infância. Eu ia de férias para Rivera, na casa da abuelita, e frequentava o seu cinema, o senhor passava filmes de Bang-Bang, alguns não passavam aqui... Quero dizer que tudo isso é lindo, eu vou fazer amanhã 85 anos, e estou feliz, pois aquela gurizada, hoje é tudo gente de bem, doutores, todos tem alguma profissão, não tem ninguém na rua ”.
Hermes Walter (na foto de 2005, com as lembranças do Cineminha), ou simplesmente Seu Hermes, como ficou conhecido pelos quatro cantos além-fronteira, desde a sua infância pobre alimentava o desejo da construção de um cinema popular. Hermes, pode-se dizer, foi um visionário. Em sua fantasia juvenil idealizava um lugar que acolhesse os jovens que, como ele, não tinham como pagar o ingresso das matinés. Em 1954, finalmente realizou seu almejado projeto juvenil. A inauguração do Cinema Hermes brindava a população carente com filmes de qualidade. Desde então, espectadores de Santana do Livramento e Rivera deram início com freqüência cativa ao mítico Cineminha do Seu Hermes, nesse momento construído sob a forma de um rústico galpão e que mantinha a assistência lotada. Seu público infanto-juvenil partilhava do desejo de seu proprietário de ver na cidade uma sala de exibições para crianças e jovens carentes. O Cinema Hermes estava localizado na vila Júlio de Castilhos, lugar popularmente conhecido como Beco dos Maragatos.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Humberto Bisso, o barbeiro memorialista


Humberto Bisso sempre manteve sua barbearia no mesmo local - na rua Conde de Porto Alegre, paralela à avenida principal de Santana- a duas quadras do Parque Internacional, próximo aos centros de lazer das duas comunidades. Mesmo com a idade avançada, esse personagem mantém um diálogo vigoroso com suas lembranças, que são minuciosamente revividas enquanto as relata. Na busca pelas emoções vivenciadas naqueles anos de juventude descomprometida, surgem em suas lembranças as cenas vividas com uma bela morena. Vistosa, porém comprometida com o chefe da Alfândega. Mesmo assim, destemido, enamorou-se da moça, expondo-se ao perigoso desenlace dessa ousadia. Ameaçado de morte pelos capangas do "bandidão", recorda do companheiro de serenatas que lhe emprestou uma arma para se defender, sem ele nunca ter dado um tiro! Pois quando o capanga entra em sua barbearia para tomar satisfações, Bisso vira-se de surpresa e desfere o tiro certeiro. A bala atravessou a boca do opositor, que foi levado às pressas dali. Bisso teve de recorrer ao auxílio do comissário de Rivera, seu aliado da boemia. Depois de algum tempo, voltou para Santana, sem mais ser incomodado. O tradicional barbeiro diverte-se apresentando as características físicas e os milagrosos dotes culinários de Don Godoy, o gorducho e bonachão cozinheiro uruguaio, seu amigo, responsável pelo requintado serviço gastronômico do Cabaret Cassino Internacional. Contudo, afora seus sofisticados pratos, o cozinheiro também podia lhe servir um singelo bife com batatas fritas não importando o adiantado da hora. Mas o que mais tinha gosto em assistir eram os espetáculos musicais, não deixava de admirar nenhum, pois todos eram apresentados por artistas estrangeiros: "Ah, tinha orquestras mui boa, mui boas! Teve um o Mejon Escalada, era espanhol, era o chefe da orquestra, tinha uma orquestra que tocava no cabaré, depois foi dono do cabaré também, tá sepultado aí (melancólico) Ele tocava de tudo não? Tango, valsa. O pessoal sentava assim numa mesa, e pedia cerveja, podia até pedir comida, porque vinha. Tinha até cozinheiro, o que tu quisesse tu pedia, se tu podia pagar né? (risos) Eu, muitas vezes me sentei na mesa e eu dizia - Godoy, hagame um bife bien gostoso eh! e vinha (risos). E os bifes não eram de carne braba, eram de carne boa! E as mulheres tomavam de tudo o que viesse, porque elas eram pagas pra isso, pra fazer gastarem não? Se sentavam numa mesa com um velho de dinheiro e impeçavam a pedir de tudo né? tinham que pagar, o trabalho delas era esse né! (risos)"
O barbeiro santanense Humberto Bisso (foto) viveu a plenitude dos anos românticos da fronteira, no início do século 20. Viu erguerem-se os cabarés de luxo, presenciou a banalização dos crimes nas ruas empoeiradas, viveu a boemia plena de uma época. Faleceu aos 101 anos, mas antes, dono de uma rara lucidez, narrou estas lembranças, reunidas no livro Memórias Boêmias, Histórias de uma Cidade de Fronteira (Edunisc, 2008).

quinta-feira, 18 de março de 2010

Hélio Santana relembra Santos Soares


"Eu sempre tive, na minha concepção, que nós não entendíamos de marxismo-leninismo, nós entendíamos de esquerdismo. Marxista era esse velho, Santos Soares, que mesmo com a saúde abalada, dava orientação de cima da cama. Todos os operários de fábrica e padaria lidavam com ele. Tinha mil e tantos operários militantes, entre o Armour, a Padaria Aragonez e outras, uma quantidade enorme. Foi um baluarte das lutas políticas entre Santana do Livramento e Rivera. Tinha uma biblioteca marxista, que era notável que um operário tivesse uma biblioteca tão perfeita(...) Para se analisar a situação da fronteira naquela época, era como se fosse um partido só. Tanto se militava no partido brasileiro como se militava no partido uruguaio. Onde havia um ato do partido iam quase todos das duas cidades. Aos grandes atos do partido comunista brasileiro, compareciam os comunistas do partido uruguaio, e assim também do outro lado. Mas o fundamental para mim, é que o marxismo-leninismo vinha de Santos Soares, que muitas vezes dava aula no partido comunista uruguaio. Foi o único elemento que mais se aproximou do marxismo naquela época."
Hélio Santana Alves (foto), comunista e ativista sindical, falecido recentemente, aos 96 anos, relembra a atuação de Santos Soares, criador da Liga Operária na fronteira, em 1918. Figura mítica, organizador dos trabalhadores fronteiriços das padarias, da construção civil e do Frigorífico Armour, cuja atuação se estendeu do começo do século até o início da década de 50.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Antecedentes do Golpe


Jango não tinha apoio em 31 de março. A esquerda não dava mais, não confiava, e quando a gente viu, tava naquele vazio. Porque a expressão do grande capital vamos dizer assim, aparecia nos comandos militares, porque os aparelhos da elite são as tropas, não são? Então fizeram um trabalho muito grande nas tropas, houve um trabalho de estado maior, para cooptar os comandos militares, e não só os militares, mas todos os comandos da sociedade brasileira. Nos comandos militares houve um trabalho estruturado, com tarefas. E conseguiram depois de 1961, cooptar e manipular as elites militares. Eles lançaram tudo, o grande capital liderado pelos americanos fez o possível e o impossível para segurar o Brasil [...] Mas eles contavam que haveria uma resistência. Eu sempre considerei que 15% das forças armadas eram nacionalistas, ou comunistas, ou de esquerda. 15% eram de direita ou filo-americanos, e 70% eram e são funcionários públicos. O que correr e pegar o bastão primeiro comanda o restante. Eles foram mais hábeis, mais capazes, tinham muito dinheiro, e assumiram o comando. Os nossos ficaram esperando uma ordem do Jango. O Jango queria negociar...e a direita não brinca. A direita age. E a direita agiu e assumiu o comando. E o Jango esperava que, uma vez derrubado, fosse para a fazenda ITU, como fez o Getúlio, e de lá voltava como senador. Mas os tempos eram outros. Ele tinha aquela visão de caudilho, mas os tempos internacionalmente eram outros. Ele foi para o Uruguai, e queriam matar ele no Uruguai e terminaram de uma maneira indireta matando mesmo, e isso ainda não está bem esclarecido .
Depoimento de José Wilson da Silva (foto), o chamado Tenente Vermelho, assessor militar de Leonel Brizola no exílio uruguaio, sobre as condições criadas para o golpe civil-militar de 1964. Publicado orinalmente em Retratos do Exílio - solidariedade e resistência na fronteira (Edunisc, 2009).

quinta-feira, 11 de março de 2010

O raio que atingiu a todos...


O anúncio, como um raio, atingiu todo o Rio Grande, cujo povo queria resistir e ir para luta. (...) Em fins de março, durante a Semana Santa, fui para Ijui, para fazer contato com os companheiros, com lideranças políticas, dirigentes sindicais e de entidades de classe. (...) Lembro que (...) bati na porta da casa de nosso companheiro Walter Arbo que (..) disse-me da preocupação que acompanhava os últimos acontecimentos. Concordei com ele mas procurei tranquilizá-lo, pois acreditava que os militares, sendo legalistas e tendo jurado defender a Constituição, impediriam qualquer tentativa de golpe. (...) Quando me preparava para viajar, bateu à porta de m/casa o Arno, trazendo-me a noticia de que, iniciava-se o golpe de estado. Liguei o radio e ouvi a Guaiba, dando as noticias. (...) Fui ouvido na Radio (Progresso, de Ijuí) e reafirmei minha confiança no Governo e a certeza de que a democracia não seria esmagada por um golpe liderado por maus brasileiros a serviço do capitalismo internacional e dos interesses da extrema direita. Logo, a Radio Guaíba e Gaúcha passaram a anunciar a Cadeia da Legalidade (tentando reviver l96l) (...) Infelizmente, já no dia seguinte, a situação começou a mudar e logo a tarde, alguns oficiais legalistas, foram afastados das reuniões do Comando. Quando (...) veio o pronunciamento do então Prefeito Sereno, informando que o Presidente Jango havia desistido da resistência, já que qualquer luta, mesmo vitoriosa, exigiria o sacrifício de muitas vidas e estas eram mais preciosas do que a eventual manutenção do poder. Naturalmente, ficamos acabrunhados. O povo que, na noite anterior, compareceu à Praça da Republica, aplaudindo os oradores e reafirmando sua disposição de lutar, após uma passeata pelas principais ruas da cidade, havia se recolhido, certo de que iríamos à luta e, agora sim, com nossa vitória, encerraríamos os ciclos de periódicas tentativas de golpe, estava novamente na rua, fazendo manifestações e reafirmando sua disposição de defender o Governo legítimo. A noticia surpreendeu a todos e, aos poucos, foram se dispersando e tomando o rumo de seus lares.

Dos apontamentos inéditos do deputado Beno Orlando Burmann (PTB-RS), cassado em 1964, na foto copiada e (mal)reproduzida do Jornal da Semana, de Santana do Livramento. Os textos de Burmann foram a mim confiados pelo seu filho, Sérgio, que também seguiu carreira política na sua Ijuí natal. No relato, inacabado e escrito poucos meses antes de sua morte, Burmann dá a sua versão para o momento seguinte ao golpe de 1964. Publicado originalmente em meu livro, intitulado Retratos do Exílio - solidariedade e resistência na fronteira (Edunisc, 2009).

terça-feira, 9 de março de 2010

"Todos para Rivera"


Eu, em seguida imediato ao golpe fui pra a prefeitura, por recomendações do Bisol. Tínhamos um grupo de esquerda...e ele tava aqui na época, até foi impedido de embarcar no aeroporto..E teve lá na casa do Aquiles, até conversei com ele lá na casa do Aquiles, e ele aconselhou que viéssemos por precaução. Era juiz. E tinha contatos com o partido, um sujeito muito talentoso, brilhante, fazia tertúlias literárias. E a prefeitura era do Sérgio Fuentes, um sujeito de muito valor. Era maragato, trabalhista. Mas um sujeito que não tinha restrições com esquerda, progressista.....uma coragem tremenda. Então nós fomos lá para a prefeitura, eu, o Chico Cabeda, tava esse Danilo Ucha, que pertencia a esse grupo que o Brizola meio influenciava, dirigia...E o Bisol tava na prefeitura. Ficamos conversando e tudo, e o Índio ali. Botou alto-falante, reunir o povo, resistir, essas coisas toda. Dali a um pouco, a gente sentiu que já não tinha mais resistência, e cada um tomou seu rumo. Tava todo mundo...tava o Marcos, o Aquiles, o Dalto, um paraguaio que tinha aí, médico, tanto é que ele nos aconselhou: - todos pra Rivera!

Perseverando Santana (foto), pecuarista e membro do PCB de Santana do Livramento, rememora o dia seguinte ao golpe de estado de 1964. Inauguramos este espaço com o que nos foi narrado por este legítimo memorialista da fronteira, de espírito generoso e testemunha de uma época fundamental.