sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

 

       Lutas operárias na fronteira:  as mulheres na linha de frente 



A prisão de Hélio Santana Alves após se recuperar do tiro que levou no confronto do Parque Internacional, e seu encaminhamento ao cárcere em Montevidéu, foi um fator determinante para salvar a sua vida. Se fosse entregue à polícia brasileira, ninguém poderia prever os desdobramentos que poderiam ocorrer, dado a tensão extrema daqueles dias e a caça deliberada aos militantes comunistas. O que poucos sabem é que por trás de toda a operação de salvamento de Hélio esteve presente sua esposa, Celina Perez (foto), que como parte expressiva das mulheres militantes foi invisibilizada da história “oficial”, seja do partido ou das esquerdas em geral. Em uma sociedade estruturalmente machista, a atuação das mulheres na política, ou mesmo sua mera influência, conforme assinalou a historiadora Michelle Perrot, é nada menos que temida:

 

O lugar das mulheres no espaço público sempre foi problemático, pelo menos no mundo ocidental, o qual, desde a Grécia antiga, pensa mais energicamente a cidadania e constrói a política como o coração da decisão e do poder. (...) Prende-se à percepção da mulher uma ideia de desordem. Selvagem, instintiva, mais sensível do que racional, ela incomoda e ameaça. (...) Elas inquietam os organizadores das cidades, que veem nas multidões onde elas estão presentes, o supremo perigo.[1]

 

Dentro de um contexto de invisibilidade trafegaram boa parte das militantes fronteiriças, relegadas a apêndices das narrativas e culturalmente enquadradas na camisa de força patriarcal que as obrigava a conciliar a atuação política nos seus diversos níveis ao suprimento da vida doméstica e aos deveres do privado, espaço a elas relegado. No momento da prisão de Hélio, Celina teve de agir rapidamente para que o companheiro não fosse entregue aos algozes. Sérgio Alves, filho do casal, rememora:

 

A minha mãe, no mesmo dia em que meu pai ficou baleado no Uruguai procurou um deputado que era de Rivera, chamado Maximiliano Luz, e esse homem constatou que a prisão de meu pai não estava registrada em lugar algum. Então minha mãe liga para um advogado do partido chamado Garcia Moyano. E ele liga para cá e a polícia diz que não havia preso nenhum. Quer dizer, estavam armando para passar ele para o outro lado, e iam matar. Então esse advogado disse, não, há um preso político aí chamado fulano de tal e amanhã eu estarei aí para defendê-lo. E talvez isso tenha feito o comissário não ter entregue ele.[2]

 

Para Celina Perez, a parceria com o companheiro e o esforço para a sustentação dos filhos sempre foi a tônica de uma vida de lutas. Quando da prisão de Hélio, teve de manter a um alto custo pessoal a pequena engarrafadora de bebidas que o casal possuía no bairro da Tabatinga. A camioneta usada para as entregas fora sumariamente confiscada pela polícia e jamais retornou. Celina teve de trancafiar em um porão alguns barris de anis, que usou para fabricar novas bebidas e continuar o negócio na ausência do marido. Nos anos que viriam a luta não seria menos intensa. Pouco mais de duas décadas depois, Celina veria o filho Sérgio ser preso e torturado durante a ditadura uruguaia. Frente ao poder avassalador dos novos tiranos, reuniu um grupo de mulheres que enfrentava o dia a dia inquisitorial dos militares e acompanhava de perto os deslocamentos para outras cidades e quartéis dos filhos prisioneiros. Essa luta foi de fundamental importância para que uma série de militantes simplesmente não desaparecessem, como ocorreu com outras duas centenas de pessoas, além de mais de 100 mortos nas prisões uruguaias.

Assim como Celina Perez, a presença de mulheres fronteiriças como Gecy Rodrigues Soares, filha de Santos Soares e esposa de Francisco Fagundes Lima, de atuação intensa no acolhimento de exilados brasileiros durante a ditadura iniciada em 1964, precisam ser melhor iluminadas em pesquisas futuras. O que dizer da relevância de uma mulher como Maria Rodríguez, esposa de Santos Soares? Aguarda-se uma produção historiográfica que se debruce com o tempo necessário na fundamental atuação dessas mulheres, assim como outras citadas nesta pesquisa e que dentro de seus espaços locais dialogavam, de forma consciente ou não, com as ideias de ativistas fundamentais como Leolinda de Figueiredo Daltro, Olga Benário, Bertha Lutz, Lila Ripoll, entra tantas outras.

As ações mais visibilizadas das ativistas ligadas de alguma maneira ao PCB podemos encontrar em registros esparsos dos jornais do partido e, especialmente, nos relatos da Memória. A trajetória de Placelina Santana, por exemplo, esposa do líder Jovelino Santana, nos chega através do olhar de sua filha Olga. Conforme ela nos mostra, a casa da família, no bairro Industrial, era ponto de encontro e local de reuniões onde compareciam Renée Canabarro, Teresa Nequesauert, Francelina Cabeda, Virginia Apoitia. Olga Santana recorda-se que nesses momentos as mulheres reuniam-se à parte dos homens, e os assuntos discutidos giravam em torno das ações partidárias para arrecadação de fundos, mesmo que nem sempre a política fosse a tônica:

 

Elas vinham para cá, faziam chazinho, cafezinho, e conversavam, mas acredito que elas não conversavam assunto de política. Tinham umas que eram bem politizadas. Diferente da minha mãe, que meu pai sempre foi muito machista nesse sentido, então mulher não se mete em política. Mas as outras mulheres falavam e minha mãe assimilava muito bem. E faziam chás dançantes, para recolher algum dinheiro para o partido. Então elas eram encarregadas dessa parte social, para auferir algum dinheiro, para que eles pudessem manter o jornalzinho, a compra de livros... Na outra sala ficavam os homens, meu pai, o Solon, o Heron...[3]

 

Renée e Teresa Nequesauert, esposa de Solon Pereira Neto, eram das mais atuantes na liderança da ala feminina do partido. Na ocasião da chacina, Heron foi detido ao tentar interceder como advogado, denunciando a arbitrariedade e inconstitucionalidade da prisão de Solon. O ambiente exalava a tensão dos recentes assassinatos e Renée organizou a ala feminina, reuniu as viúvas, e se encaminhou ao quartel onde estavam detidos Solon e Heron, exigindo a soltura, falando em nome das famílias dos mortos e em desagravo ao crime. Foram recebidas pelo comandante Ciro de Abreu. Marlova Canabarro recorda de sua mãe narrar o áspero diálogo que manteve com o militar: “O Ciro de Abreu disse, ‘É, foram vocês que inventaram essa tal democracia, no que minha mãe retrucou, general, democracia não se inventa!”. Para Marlova, embora os militantes e simpatizantes do partido muitas vezes tivessem origens sociais distintas, pelo menos na sua casa os grupos não eram exclusivos, separados entre “intelectuais de um lado e operários de outro”. Ela acredita que para Renée e Heron não havia a distinção, muito embora circulassem também pelos meios pequeno-burgueses e de fazendeiros mais abastados.

 

Lá em casa desfilava gente, não tinha isso... e nas reuniões ia todo mundo. A mãe era uma pessoa que transitava muito dentro do partido e era extremamente coerente. Ela foi responsável pelos primeiros filmes italianos que meus amigos viram no cinema, e depois iam lá para casa discutir, tudo por influência da minha mãe. Ser comunista e participar de uma sociedade pequeno burguesa era complicado também, mas nunca houve... eu fui debutante, fui tudo... bailes... Tinha descriminação na escola primária... do tipo, minha mãe disse que teu pai é comunista.[4]

 

Mariana de Rossi Venturini, ao analisar as conferências dos comunistas de 1956 e 2007 que trataram da questão da mulher, aborda a tradição do feminismo marxista e seus desdobramentos entre os militantes brasileiros. Desde a elaboração de Engels e Marx, segundo a qual somente em uma sociedade sem divisão social e sexual do trabalho seria possível a liberação dos trabalhadores e da exploração de classe, a questão rondava as pautas da esquerda. Conforme a socióloga,

 

Os comunistas passaram décadas negando e criticando o “feminismo”, mesmo nos momentos em que eles próprios defendiam reinvindicações específicas das mulheres. A ideia de “feminismo” se confundia com a ideia de “feminismo liberal” ou “feminismo burguês” e, só muitas décadas mais tarde, mais precisamente a partir da década de 1970 em diante, com o avanço dos debates entre feministas de esquerda, é que se faria a distinção entre as correntes liberal e socialista e o termo “feminismo” passa a designar também a luta pela emancipação das mulheres no âmbito das esquerdas partidárias, incluindo muitos partidos comunistas.[5]

 

Com o final do Estado Novo, o movimento das mulheres comunistas ganha um novo impulso, amparado no fortalecimento das organizações de base e a criação de comitês populares de mulheres em todo o país. Em maio de 1949, realiza-se, no Rio de Janeiro a 1ª Conferência Nacional das Mulheres, onde foram debatidos os caminhos para se assegurar mais direitos para as mulheres brasileiras. A conferência denunciava fortemente a situação de fome e miséria do povo, contudo, apontava que era ainda mais penosa no país a situação das mulheres. Conforme Venturini, a tomada de consciência pelas mulheres de que sofriam duplamente uma exploração social foi gradual e consistente, e “ainda que não houvesse clareza nas motivações ou mecanismos pelos quais isso ocorria, já era clara a percepção de que eram mais atingidas pela pobreza, exploração, falta de liberdades e de direitos”.[6]

Nesse período, a imprensa comunista celebrava a participação feminina cada vez maior nas ações do partido, especialmente nas campanhas pela Paz, contra as armas nucleares e contra o envio de tropas brasileiras para a Guerra da Coréia. O Voz Operária registrava a batalha pela maior visibilidade das trabalhadoras e a extrema dificuldade que as mulheres passavam no ambiente de fábrica. No Armour, a mão de obra majoritariamente feminina estava concentrada nos setores da Picada, Latoaria e Rotulagem. A situação da mulher na fábrica é enfocada pela ativista feminista e colaboradora do Voz Operária, Ginia Machline, em uma edição de agosto de 1949. A nota faz um chamamento à participação da mulher na luta pela paz e contra a iminente guerra imperialista e reforça a situação dos frigoríficos gaúchos e especialmente o Armour como exploradores contumazes da mão de obra feminina.

 

Um exemplo dessa situação da mulher trabalhadora é dado pelas operárias dos frigoríficos do Rio Grande do Sul, que ganham salários na base de Cr$ 150,00, 230,00 e 420,00 – que entrando 5 minutos atrasadas não ganham o descanso semanal, que não tem assistência médica e hospitalar, que não tem creches nos locais de trabalho para deixar seus filhos com outras crianças (prejudicando-as em seus brinquedos infantis, pois tem que cuidar de seus irmãozinhos) isso quando não tem de deixá-las fechadas em casa, sozinhas, outras entregues a vizinhos, mediante pagamento, no que dispende quase todo o salário. São obrigadas a levar comida para o trabalho, pois os horários são apertados, com uma hora para o almoço, incluindo (...) comida péssima e intragável por preços pouco acessíveis, os “gringos” exigem pagamento à vista, pois os operários e operárias, além de serem vilmente explorados, não merecem créditos dos americanos fazedores de guerra.[7]

 

A denúncia estampada no jornal não poupa o governo Dutra, um inimigo declarado e a ser combatido, pois estaria levando o país à bancarrota, através de acordos com os “traficantes da guerra”, Estados Unidos e Inglaterra. A exploração das mulheres nos frigoríficos Armour, Anglo e Swift, aponta a reportagem, “é medonha”. De acordo com os historiadores Augusto Buonicore e Fernando Garcia, a organização feminina entre os comunistas teve um grande impulso com a fundação do jornal Momento Feminino, em julho de 1947, sob a direção de Arcelina Mochel. Nesse período o jornal “tornou-se um instrumento agregador e organizador das mulheres comunistas e progressistas brasileiras (...) impulsionou a criação de comitês femininos em bairros e sindicatos. Num artigo no Momento Feminino fala-se na existência de 43 núcleos funcionando (...) O resultado de todo esse trabalho foi a criação da Federação de Mulheres do Brasil (FMB) em 1949”.[8] A entidade congregou organizações femininas de 11 estados e foi responsável pelas pressões que resultaram na criação da Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento), durante o governo Vargas. Além das campanhas pelo Petróleo, contra as armas atômicas e o envio de soldados brasileiros para a guerra da Coréia, as mulheres organizadas também foram fundamentais para as vitórias obtidas na greve dos 300 mil, que sacudiu a capital paulista entre março e abril de 1953. No entanto, a organização das mulheres, especialmente ligadas ao PCB, teve uma retração a partir do final dos anos 1950 e a crise interna do partido. O momento de auge que iniciou com o final do Estado Novo e se consolidou na década seguinte não se repetiria, sendo fortemente abalado com a imposição de uma nova ditadura em 1964.


*  Fragmento do livro "No portão da fábrica - uma história social da fronteira (1945-1955)" 

 de Marlon Aseff 



[1] PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Unesp, 1998, p. 8-9.

[2] Sérgio Alves. Entrevista ao autor. Santana do Livramento, 25 de agosto de 2019.

[3] Olga Santana, entrevista citada.

[4] Marlova Canabarro, entrevista citada.

[5] VENTURINI, Mariana de Rossi. Comunistas do Brasil e a emancipação da mulher: as conferências partidárias de 1956 e 2007. 2018. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Unicamp, 2019, p. 12, 15, 35.

[6]Idem, p. 53.

[7] “A Mulher Operária na Luta pela Paz” – Ginia Machline. Voz Operária, Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1949, p. 3.

[8] BUONICORE, A.; FARIA, F. G. As mulheres e os noventa anos do comunismo no Brasil. Portal do Centro de Memória Sindical, 2022. Disponível em: https://memoriasindical.com.br/formacao-e-debate/as-mulheres-e-os-noventa-anos-do-comunismo-no-brasil/.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

 

“É sempre o opressor e não o oprimido 
quem determina a forma de luta” (Nelson Mandela)



 

Por mais de 75 anos, o povo palestino vem lutando, corajosamente, pelos seus direitos fundamentais, autodeterminação, independência, justiça e soberania.

Os atos de resistência, sejam eles pacíficos ou armados, são uma resposta legítima à opressão e ocupação israelenses, aos bloqueios de Gaza e à continuação da colonização ilegal, dentro do território palestino, segundo as resoluções da ONU, resultando na expulsão de centenas de milhares de palestinos de suas terras de origem. Condenamos, veementemente, os abusos perpetrados pelo estado sionista de Israel, que, inclusive antes dos ataques de vingança indiscriminados de hoje que causaram centenas de mortes, já destruíam infra-estruturas palestinas e matam numerosos civis, incluindo crianças.

A recente intensificação da política de colonização israelita de territórios palestinos, com a aprovação dos Estados Unidos, constitui uma violação flagrante do direito internacional, contrariando as resoluções das Nações Unidas e comprometendo gravemente a possibilidade de uma paz justa e duradoura. Os colonatos israelenses ilegais resultam no confisco de terras e na demolição de casas palestinas, na restrição de movimentos, restringindo o direito de ir e vir e demais liberdades essenciais e na humilhação diária do povo palestino. Agora, os sionistas pretendem ocupar lugares sagrados para os muçulmanos, como a região da mesquita Al-Aqsa em Jerusalém.

 A responsabilidade pelo que se está ocorrendo, nos dias de hoje, entre Israel e a Palestina, deve ser encontrada naqueles que incentivaram o desrespeito pelos direitos do povo palestino e na política terrorista do governo de Israel apoiada pelos EUA, constituída de um regime de apartheid, na realização de limpeza étnica  e na prática de um genocídio de palestinos.

Expressando a nossa preocupação e inquietação com a escalada do conflito, em particular com as suas trágicas consequências para as populações, alertamos para o perigo do seu alastramento, numa região já martirizada por décadas de ocupação, guerra e subversão por parte dos Estados Unidos da América, de Israel dirigida pelo partido Likud, de extrema direita, das potências da OTAN e da UE – seja no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, no Líbano, na Palestina ou na Síria, entre outros exemplos –, que espalharam a morte e a destruição e geraram milhões de refugiados.

Quando por décadas não estão sendo cumpridas as resoluções dos organismos internacionais que preveem a criação de dois Estados, a Célula Internacionalista do PCB – RR/RS reafirma a necessidade de uma solução política que garanta a concretização do direito do povo palestino a um Estado soberano e independente, com as fronteiras de 1967, com capital em Jerusalém Oriental, e  com o efetivo  retorno dos refugiados palestinos às suas terras, conforme as resoluções pertinentes da ONU.

Nós militamos pela solidariedade internacional dos povos, em particular de todos aqueles oprimidos pelo eixo EUA-UE-OTAN e pelos seus aliados, como o governo de Israel, e pela necessidade de reforçar o movimento de solidariedade à Palestina em todo o mundo.

 Porque, em última análise, não se trata tão-só da liberdade da Palestina, mas trata-se da liberdade de todas as nações do mundo agredidas pelo imperialismo, incluindo as liberdades democráticas em Israel, que estão sendo ameaçadas pelo governo de Netanyahu, com a reforma do judiciário, por exemplo.

 Solidários estamos com povos do mundo que estão sujeitos à desestabilização e às consequências das políticas imperialistas, até mesmo exterministas extremistas, do eixo EUA-UE-OTAN e dos seus aliados.

 Nós continuaremos a denunciar a opressão do governo de extrema direita de Israel e do imperialismo e a trabalhar por um futuro de paz e liberdade ao povo palestino.

 Apelamos à unidade de todos os progressistas, ativistas dos direitos humanos e amantes da paz entre os povos para pôr fim à opressão e ocupação israelense, para a criação de um Estado palestino soberano e indeependente, para a realização dos direitos inalienáveis ​​dos palestinos, com as fronteiras de 1967, com capital em Jerusalém Oriental e a efetivação do  retorno dos refugiados palestinos às suas terras, conforme as resoluções pertinentes da ONU.

 

 

Por Humberto Carvalho, Célula Internacionalista do PCB RR


terça-feira, 9 de maio de 2023

Santana do Livramento: a cultura jogada ao léu

 


Escrevi dois livros que considero importantes para conhecermos um pouco da história recente de Santana do Livramento e Rivera. Em um deles, chamado Retratos do Exílio – Solidariedade e resistência na fronteira, recupero a trajetória de atores políticos reconhecidos e anônimos cidadãos no enfrentamento das ditaduras brasileira e uruguaia, nas décadas de 60 e 70 nesta fronteira. Na outra obra, já no prelo, abordo as lutas operárias em torno do Frigorífico Armour, logo após o final do Estado Novo e inícios dos anos 1950.

Pois bem, em nenhum momento de pesquisa para estes dois livros me foi permitido investigar no acervo do Museu da Folha Popular. Senti na pele o que um jornalista e um historiador podem passar quando tentam de alguma maneira elaborar novos olhares sobre a nossa história.

Escrevo para refletir sobre o recente evento que veio a público, da doação do acervo daquele museu, construído a duras penas pelo historiador Ivo Caggiani, ao Museu Departamental de Rivera. Convém aqui um parênteses:  sabemos que um acervo se constrói em grande parte através de doações de documentos, em que pessoas, de boa-fé, compartilham seus pertences com a ilusão de que um “Museu” teria a guarda de uma institucionalidade e o futuro preservado.

Isso nos remete hoje a um desfecho caótico sob esse ponto de vista, e uma constatação dolorida: Santana do Livramento não possui uma elite cultural e política capaz de valorizar sua fortuna documental e histórica. O pior de tudo isso é que, como diria o velho roqueiro argentino, “no es solo una cuestion de elecciones”. Passam os homens e mulheres, mas o desprezo permanece no ar. Assim como o desprezo pelas periferias e pela real democratização da cultura em nossa cidade. Parecemos relegados a uma eterna condição de povoado subsidiário dos grandes latifúndios, que se hoje não possuem mais o poder oligárquico de outrora, pelo menos deixaram instalada uma mentalidade classista, divisionista e egoísta.

Rivera trata bem seu legado, parece que sim. Rivera nunca teve um acervo consistente como o nosso, também parece que sim. Pelo menos aos olhos do pesquisador que já fuçou nas gavetas disponíveis nos dois lados da fronteira.

Os acervos de Santana foram tratados de maneira irresponsável durante anos e assim documentos fundamentais para descortinar passados e erguer futuros foram queimados, jogados ao léu, destruídos, roubados.

Poderia adotar aqui uma posição cômoda, pois como historiador poderei ter acesso a partir de  agora a uma série de documentos antes inacessíveis. Mas não canso de me espantar com nossa incapacidade de sustentar no município um acervo que em última instância pertence ao povo desta cidade. Pois conversas vazias sobre  “fronteira irmã”, “da paz” e todos esses mitos construídos de maneira leviana, esbarram nos ditames legais dos estados nação, essa organização política e historicamente construída que a cada território impõe suas regras. Portanto, ao fim e ao cabo, alija-se grande parte da população santanense de um acervo que seria seu, por direito.

Não fomos competentes para retê-lo, não fomos. Porém, um acervo dessa monta abre o debate sobre o que é juridicamente correto e ético quando se discute o destino do patrimônio cultural de um povo. Iremos continuar a ver nossos documentos históricos virarem pó e sem o mínimo esboço de reação? Ao que parece, sim. Mas a todos os indignados – não com a competência pragmática de Rivera (que certamente irá preservar o acervo) – mas com o destino de nossas riquezas culturais, nos cabe o grito, mais uma vez, aos quatro ventos.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Mucho más que acentos de frontera

 


Buenos Aires, 2017 - El show que el uruguayo Chito de Mello trae a Buenos Aires lleva consigo la novedad y el debut de toda una generación que está por detrás, crecida en los bordes de la frontera brasileña-uruguaya, y que reivindica el portuñol - un dialecto que mezcla español y portugués - como una legítima afirmación tanto estética como política. Pero si esa música está afiliada a una tradición que se recrea todos los días en la casi infinita franja de frontera donde la América hispánica encuentra a Brasil, el canto de Chito trae el sabor inconfundible de la campaña gaúcha, donde la chamarrita, la milonga o el vals son reinterpretados a su manera. La misma frontera de Santana y Rivera, que despertó la fascinación de Jorge Luis Borges, anotada con maestría en Tlön, Uqbar Orbius Tertius, retorna al imaginario porteño con las letras y la guitarra de Chito de Mello, legítimo representante de ese ser que atraviesa las líneas imaginarias de los estados nación y se recrea en un ambiente que no tiene cercas ni amarras.

Con sus letras llenas de protesta social y una guitarra que transita entre los ritmos del campo hasta el samba brasileño, el músico realizará tres presentaciones en la capital federal, como invitado del Duo Orillero (Tomas Diaz – bandoneon y Juan Cruz Barbero, guitarra), que completan dos años de actuación y también junto a Alfredo Tape Rubin y el grupo Emerger. En el marco de la tradición del canto popular, pero con referencias que hoy extrapolan una definición estática, Chito lleva consigo el mensaje de sus amigos, como el escritor Fabián Severo, los músicos Ernesto Diaz y el Ñato de la Peña, entre otros exponentes de esa movida que llega con la urgencia de estos nuevos tiempos, sembrados en la red social y que ya no pueden esperar años para ser conocidos.

En Uruguay la búsqueda por el reconocimiento del portuñol como patrimonio cultural inmaterial por la Unesco mueve a cada año reuniones y seminarios que reúnen intelectuales de las más variadas cepas. Lo que se verá en el show de Chito de Mello, sin embargo, será la expresión mucho más orgánica y distanciada de los embates políticos por la legitimación de esa cultura de frontera. Será el arte de un hombre que vive el cotidiano de ese embate y que refleja aún la fascinación y el imaginario tan caros a un Borges y que se vive en el cotidiano de esas regiones tan singulares como son las fronteras.

 * por  marlon aseff

 

SHOW -  Chito de Mello  - Uruguay

01/09 – Chito de Mello junto al Tape Rubin, em Espacio Cultural Benigno (Av. Chiclana 3045. Parque de Los Patricios).

02/09 – Chito de Mello junto al Duo Orillero em La Escondida Centro Cultural  (Acassusso, 119. San Isidro)

03/09 – Chito de Mello junto a Emerger Folklore em Teatro de la Media Legua (Aristobulo del Valle 199. Martinez)

sábado, 10 de outubro de 2020

Santos Soares e a organização operária na fronteira

por Marlon Aseff


Santos Soares foi líder dos trabalhadores fronteiriços, organizador de uma Liga Operária que constituiria um impulso importante na constituição futura do Partido Comunista do Brasil. Ele nos surge, em relatos orais e nos raros textos que anotam sua trajetória, como um homem cercado pelo mistério do líder comunista, idealizado pela imprensa partidária como o modelo exemplar do transformador social, a ser construído e seguido com a exaltação comum ao mito recorrente do ideário comunista. Para encontrarmos os primeiros rastros de Santos Soares, voltemos ao começo do século, quando a fronteira gaúcha de Santana do Livramento e a cidade uruguaia de Rivera vivia  a euforia da inauguração da Cervejaria Gazzapina (1908) e o pleno funcionamento de estabelecimentos comerciais como a Padaria Aragonez, que junto ao setor de construção civil incorporavam os núcleos de trabalhadores filiados a ideias anarquistas que muitos operários argentinos, uruguaios e espanhóis alimentavam. Os ecos dessas novas demandas políticas seriam estampados no jornal anarquista A Evolução, que viria a ser impresso em português e espanhol, em Santana do Livramento, a partir de 1911. Nesse ambiente gesta-se a figura de líderes operários que viriam a ser fundamentais na organização dos trabalhadores na região, primeiramente filiados aos ideais anarquistas, e mais tarde associados ao emergente partido comunista. Surgem nesse início de século o anarquista espanhol Antônio Apoitia, e pouco depois Santos Soares, mentor da organização comunista local. A atuação de Soares, que viria a criar em 1918 a Liga Operária, uma das primeiras ligas comunistas do país, consolidou-se durante a primeira greve que eclodiu nos frigoríficos Armour e Wilson, a 13 de março de 1919. Na greve de 1919, a pauta de reivindicações exigia redução da jornada de trabalho de dez para oito horas, aumento de salários para os trabalhadores braçais e um acréscimo de 25% sobre o salário das mulheres. Também pedia a instituição de horas extras para o trabalho nos domingos ou fora de horário. O evidente desalinho entre as leis trabalhistas vigentes no Uruguai e no Brasil ganhava nova conotação no ambiente de trabalho do frigorífico. Ali, trabalhadores uruguaios, brasileiros e de outras nacionalidades submetiam-se a um ordenamento laboral arcaico.[1]

Do outro lado da linha divisória, os trabalhadores uruguaios começavam a vivenciar as mudanças preconizadas pelo presidente José Batle y Ordóñez, que criara a partir de seu primeiro mandato, em 1903, uma série de normas legais de proteção aos trabalhadores, posteriormente reforçadas pela Constituição de 1917, que incluia jornadas de trabalho de oito horas, indenização por acidentes de trabalho, licença maternidade, proteção aos idosos e inválidos e a intermediação estatal em casos de conflitos laborais. Convém lembrar aqui, conforme aponta Gustavo López, que as normas laborais uruguais, extremamente avançadas para a época, não foram  um “presente” do governo de Batlle, mas fruto de anos de lutas cruentas do movimento sindical uruguaio.[2]  Durante a greve de 1919, os operários das companhias Armour e Wilson, conseguiram que as empresas concedessem um aumento de 10% nos salários e a redução de 10 para 9 horas de trabalho diário. Mesmo sob a repressão da força militar, a greve se fazia vitoriosa. Santos Soares cria nesse momento uma associação para promover a ajuda mútua entre os trabalhadores, o Centro de Assistência e Ofícios Vários, que iria originar em 1920 o Sindicato dos Ofícios Vários.

Em 1921, conforme aponta Marçal, Santos Soares editava um semanário de pequeno formato, “O Socialista”, um “desdobramento da Liga Operária, que não tardou a ser assaltado pela polícia” e teve vida efêmera.[3] Um texto assinado pelo jornalista e militante comunista Isaac Akcelrud, em 1952, permanece como um raro relato de cunho biográfico acerca da atuação do líder santanense. Marcado pela exaltação revolucionária do período stalinista, Soares é elevado a mito do movimento comunista naqueles anos de organização dos trabalhadores na fronteira:

A Primeira Greve Contra uma Empresa Imperialista -  Na folha de serviço de Santos Soares à causa do proletariado inscreve-se em relevo a sua atuação como organizador e dirigente da primeira greve contra uma empresa imperialista no Rio Grande do Sul. Foi a greve dos trabalhadores do Frigorífico Armour. Organizada a Liga, Santos Soares não permitiu que os comunistas se fechassem num estreito círculo sectário. Esta é a segunda grande lição de sua vida. Ele comparava os efetivos do pequeno núcleo de vanguarda com as massas dispostas à luta e reclamando a direção dos comunistas. O lugar do comunista é no Sindicato. — De onde é que nós saímos? Não foi da luta sindical? É no Sindicato, lutando pelos interesses dos trabalhadores, que está o ABC. Assim, com palavras simples, utilizando a própria experiência dos trabalhadores, Santos Soares organizou uma verdadeira campanha de sindicalização. Surgiram organizações sindicais de diversas profissões. Nas assembléias, um jovem tribuno operário inflamava as massas. Aos 28 anos, Santos Soares era um líder querido dos trabalhadores, reconhecido como seu chefe.[4]

O relato de Ackcelrud elenca as lutas do líder operário, legitimando a aura da honorabilidade comunista, conforme o mito alimentado pelos anos do stalinismo, quando os herdeiros da revolução soviética eram elevados a uma condição de “super-homens”, construídos por uma moral inabalável e intocáveis em sua conduta. Perseverando Santana, pecuarista e militante do partido, reforça a imagem de Soares como o melhor condutor da luta operária na fronteira em todos os tempos. Desde sua modesta atuação como funcionário da Correaria Cruz, tradicional loja da cidade, Perseverando recorda do líder “respeitado por advogados e pessoas da burguesia local”, graças a um posicionamento firme e idealista, que professsava uma fé inabalável na revolução soviética e seus desdobramentos.[5] Ackcelrud também enfatiza o aspecto da moral inabalável de Soares:

Ele não perdia oportunidade e não desprezava nenhum setor. Operários da construção civil, padeiros, pequenos contingentes de trabalhadores de diversas profissões ele unia e organizava em seus respectivos sindicatos e no sindicato de ofícios vários. Participou de diversas diretorias e invariavelmente os trabalhadores exigiam que Santos Soares ficasse responsável pelos fundos e pelo patrimônio das suas organizações. Era a homenagem pública à honestidade dos comunistas representados por Santos Soares.[6]

Porém não tardaria para que o aglutinador da força operária na fronteira encontrasse “a empresa fundamental”, nas palavras do biógrafo comunista.

(...) o jovem dirigente à medida que ia se temperando na luta, aprendendo e acumulando experiência, compreendeu que era preciso dar atenção especial à empresa fundamental. Santos Soares lançou-se à tarefa de organizar e levar à luta os trabalhadores do Frigorífico Armour. Ali era a cidadela dos patrões estrangeiros e dos fazendeiros. Mas ali também era que se concentravam os trabalhadores. No frigorífico, Santos Soares se defrontou com um inimigo de larga experiência na repressão ao movimento operário, experiência que se aliava aos métodos mais brutais dos senhores feudais das fazendas de gado e contrabandistas da fronteira. Com paciência e tenacidade preparava a luta e a vitória. Cada escaramuça com o inimigo lhe dava a noção das forças dos trabalhadores, do seu amadurecimento para o combate, revelava os homens que deviam ser chamados para o Partido, mostrava erros que era preciso corrigir.

 

Adoentado, Santos Soares já não mais comandava a linha de frente do partido quando os gestos extremos da repressão contra os comunistas começam a intensificar-se. Conforme veremos no capítulo seguinte, o chamado massacre dos trabalhadores e militantes comunistas em frente ao Parque Internacional, no dia 24 de setembro de 1950, iria abalar a militância e cobrir de suspeitas a direção do frigorífico como mandatária do ato de repressão, que resultou em quatro mortes.  Isaac Ackselrud traz à luz o nome dos militantes mortos pela repressão, ao enfatizar a ligação do operário Aladim Rosales com Santos Soares.

 

Aladim Rosales foi assassinado em 1950 por ordem dos anglo-americanos. Pereceram com ele os camaradas Kulman, Abdias e Aristides. Esse crime monstruoso foi executado pela policia dos traidores da pátria Eurico Dutra e Walter Jobim. Santos Soares procurava capitalizar todas as lutas para o Partido. Sim, dizia, é importante e é necessário conseguir melhorias para a classe operária. Mas não estava se vendo que os fazendeiros e os gringos do frigorífico continuavam donos de tudo, permanecem no governo, com o poder na mão, mesmo quando os operários conseguem uma reivindicação? A importância da luta pelas reivindicações não está só nas melhoras que pode trazer, mas principalmente porque une os trabalhadores, abre seus olhos, mostra que são fortes e que devem empregar essa força contra os patrões sempre prontos a anular as melhorias obtidas na primeira oportunidade. Portanto, em cada luta, para que seja uma luta de verdade, é preciso ter uma perspectiva revolucionária. Somente o Partido garante que todas as lutas reforcem a causa da revolução e impede que forças da classe operária se desmanchem em mil e um pequenos combates que ficam nas pequenas melhorias.[7]

 

Filho de Favorina e Domingos Soares, Santos viveu os primeiros anos no bairro São Paulo, nas cercanias da charqueada Livramento, de Pedro Irigoyen. Casado, transferiu-se para as proximidades do batalhão da Brigada Militar, em um local ainda com características rurais, constituído por pequenas chácaras. Sempre trabalhando na construção, mudou-se com a família para os arredores do parque municipal da Hidráulica e posteriormente, para Rivera, local escolhido por aqueles que deveriam zelar por uma proteção natural às perseguições em solo brasileiro e que faziam desse pêndulo entre os dois países, se não um salvo conduto, ao menos uma forma de ganhar tempo quando fosse necessário. Gecy Rodrigues Soares, filha mais jovem de uma família de três mulheres e um homem, lembra do pai como zeloso e trabalhador. Em meados dos anos 30, ela relembra de uma prisão que o pai sofrera, quando foi levado para Porto Alegre.

O ano eu não lembro, mas eu era bem guria. À noite, quando ele estava lendo, na beira da mesa. E bateram na porta e era a polícia, e reviraram toda a casa, e aí levaram ele preso. Mas não encontraram nada, papel nenhum. Ele sempre tava prevenido, né? E esteve uns três dias preso ali em Livramento, e mandaram para Porto Alegre. E lá, em seguida se avisou um tio meu, que era capitão da Brigada, e ele foi e tirou ele da cadeia. Ele teve uns três meses, que não podia vir, depois veio e seguiu trabalhando. Mas lá quando estava solto já trabalhava lá mesmo em Porto Alegre. Eu lembro, eu tinha uns oito anos. (...) Era, pelo sindicato e pelo partido. E daí a uns meses começaram a perseguir ele de novo, aí ele passou para o Uruguai. (...) Só sei que o sargento que foi prender ele, a mãe falou muita coisa para ele, porque meu pai tinha ajudado muito ele, esse sargento era muito pobre e o meu pai com o que tinha ajudava muito ele, dava comida para essas crianças dele, e a minha mãe falava e falava, mas ele era mandado também né?[8]

Nos dois últimos anos de vida, Santos Soares, mesmo enfermo, mantinha a voz ativa entre trabalhadores e expoentes do partido, como Perseverando e Aquiles Santana, Francisco Cabeda e Hugo Nequesauert. Em janeiro de 1951, a morte do líder que, conforme Perseverando, “sabia lidar com todo mundo, tinha uma autoridade moral muito grande e não gostava que o operário fizesse qualquer deslize”, foi sentida com pesar entre as lideranças e boa parcela dos trabalhadores, especialmente os envolvidos na idealização mítica do militante revolucionário do período stalinista. O poeta Mário Santana registrou no jornal do partido uma singela homenagem ao homem que possuía predicados tão fortes como “um bloco inteiriço de valor humano, social, político e privado”:

 

Livramento perdeu com a morte de Santos Soares um de seus mais dinâmicos elementos, o quadro mais completo. Autentico tipo de lutador, apresentando sua personalidade por todos os quadrantes, um bloco inteiriço, solidamente feito de valor humano, quer político ou privado. Foi sempre tido no seio do partido como um guia de confiança, coerente e lúcido, acatado e ouvido com respeito, certos de seu equilíbrio e ponderação como organizador sindical, condutor de massas.[9]

 

Como se pode constatar pelas palavras do poeta santanense, o guia dos operários fronteiriços que acabava de falecer encarnava as qualidades que um legítimo militante da causa comunista poderia ostentar: verdadeiro homem de ferro, acima de seu tempo e de seus pares, na melhor definição do mito do mensageiro eleito. Jorge Ferreira, ao analisar as origens das concepções messiânicas que elevaram o proletariado como redentor da humanidade conclui que o sucesso obtido pelo Manifesto Comunista não se restringiu apenas a revelação de determinadas “realidades que se fundaram como verdades”, mas também a uma série de imagens, simbologias e representações imaginárias que, ao final, cumpriam a função de resgatar estruturas mitológicas milenares. Utilizando-se das reflexões propostas pelo filósofo Mirceade Eliade, argumenta que, no limite entre o político e o profetismo social, as idéias mais vulgarizadas de Marx “retomaram e prolongaram um dos grandes mitos escatológicos de sociedades antigas (...), a narrativa do modelo redentor do Justo, também conhecido em diversas versões como o ‘eleito’, o ‘ungido’, o ‘inocente’, o ‘mensageiro’, que nos tempos modernos, sobreviveu entre os comunistas, mesmo que dessacralizado, na imagem do proletariado revolucionário.[10] Imbuído das homenagens póstumas e da construção do mito, prossegue Mário Santana:

 

Nunca teve um só instante de esmorecimento ou vacilação, uma única fenda por onde penetrasse a cunha do oportunismo, sectarismo ou comodismo deformadores dos princípios no processo político. Comedido e tenaz, enérgico e ponderado, dotado de um grande senso psicológico. Incansável sempre estava em todas as frentes de luta; mesmo nos últimos momentos antes de morrer ainda se fazia ouvir aconselhando com eficiência, lamentava não poder dar mais para o seu partido: O PARTIDO COMUNISTA. Achando que a morte lhe vinha inoportunamente aniquilar, no momento em que se aproximava a luta decisiva. A compleição moral deste homem pode servir de padrão para quem quiser ser um líder de vanguarda. A estatura de sua personalidade foi sempre uniforme em tudo, porque em tudo foi honesto e sincero e bom: como político, como chefe de família, como amigo, como irmão e como filho. O nobre e grande lutador da Serrilhada se impôs no seu partido por este conjunto de qualidades excepcionais.[11] 

Hélio Santana Alves foi parceiro das lutas sindicais junto a Santos Soares. Participante do ato de pichação no Parque, ele rememorou a importância do amigo nas lutas em comum, que muitas vezes envolvia os comunistas uruguaios.

 

Eu sempre tive, na minha concepção, que nós não entendíamos de marxismo-leninismo, nós entendíamos de esquerdismo. Marxista era esse velho, Santos Soares, que mesmo com a saúde abalada, dava orientação de cima da cama. Todos os operários de fábrica e padaria lidavam com ele. Tinha mil e tantos operários militantes, entre o Armour, a Padaria Aragonez e outras, uma quantidade enorme. Foi um baluarte das lutas políticas entre Santana do Livramento e Rivera. Tinha uma biblioteca marxista, que era notável que um operário tivesse uma biblioteca tão perfeita(...) Para se analisar a situação da fronteira naquela época, era como se fosse um partido só. Tanto se militava no partido brasileiro como se militava no partido uruguaio (...) Mas o fundamental para mim é que o marxismo-leninismo vinha de Santos Soares, que muitas vezes dava aula no partido comunista uruguaio. Foi o único elemento que mais se aproximou do marxismo naquela época.[12]

 Como um legítimo território em comum para os comunistas, a fronteira que surge nas lembranças de Hélio é a que unificava a militância e as solidariedades, onde havia um ato do partido iam quase todos das duas cidades. Aos grandes atos do partido comunista brasileiro, compareciam os comunistas do partido uruguaio, e assim também do outro lado.

 

* Este texto é parte modificada da tese " No portão da fábrica: trabalho e militância política na fronteira de Santana do Livramento/ Rivera (1945-1954)", apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; Programa de Pós Graduação em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 



[1] João Batista Marçal, pesquisador do movimento operário no Rio Grande do Sul, nota que as greves de 1919, nos Frigoríficos Armour, em Santana do Livramento, e Swift, em Rosário, foram duramente reprimidas. Na cidade de Rosário, distante cerca de 100 quilômetros da fronteira, dois dos líderes grevistas - um maquinista uruguaio e outro espanhol - foram degolados, no caminho de uma suposta deportação para o Uruguai. MARÇAL, João Batista. Comunistas Gaúchos. A vida de 31 militantes da Classe Operária. Tchê!: Porto Alegre, 1986. Pg. 118.

[2] LOPEZ, Gustavo. Uma breve história do movimento operário uruguaio. Revista Marxismo Vivo. Nº 15. P.116.

[3] MARÇAL, João Batista. Op. Cit., Pg.119.

[4]  Idem. Pg.120.

[5] Perseverando Fernandes Santana. Depoimento ao autor.  Documentário “Conversas com Perseverando”. Santana do Livramento, dezembro de 2015.

[6] MARÇAL. João Batista. Op. Cit., Pg.121

[7] Idem.Pg.122

[8] Gessy Rodrigues Soares. Entrevista concedida ao autor, em 23 de julho de 2011, Rivera, Uruguai.

[9] A Morte de Santos Soares. Unidade. Santana do Livramento, 20 de janeiro de 1951. Pg.1

[10] FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito. Cultura e Imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956). Rio de Janeiro: Eduff. 2002. Pgs 34, 35.

[11] A Morte de Santos Soares. Op.Cit.

[12] Hélio Santana Alves. Depoimento ao autor e Liane Chipollino Aseff em 5 de julho de 2005, Santana do Livramento.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Há 70 anos da chacina do Parque Internacional

 

*por Marlon Aseff

A noite de 24 de setembro de 1950 ficaria marcada na história da fronteira de Santana do Livramento e Rivera devido ao assassinato de quatro militantes comunistas, reunidos em frente ao Parque Internacional, na linha divisória que separa Brasil e Uruguai. O ato, de panfletagem e pichação, seria de afronta ao governo Dutra, de apoio aos candidatos apoiados pelos comunistas às eleições que se avizinhavam, de rechaço ao fascismo e contra o imperialismo, reforçando o teor da linha adotada pelo Partido Comunista Brasileiro, especialmente após o Manifesto de Agosto. Conhecido posteriormente como a chacina dos quatro As – o nome dos mortos iniciavam todos sob a letra A (Aladim Rosales, Ary Kulmann, Aristides Ferrão Corrêa Leite e Abdias da Rocha), o crime teve a participação ativa de policiais, pistoleiros e representantes de latifundiários, que faziam parte do grupo que chegou atirando, conforme a versão dos comunistas. À frente do bando agressor estavam o comandante da Brigada Militar em Santana do Livramento, Eleú Gomes da Silva; o comandante do Exército, Ciro de Abreu, o delegado da polícia civil, Miguel Zacarias, o advogado Mário Cunha e o inspetor de polícia Ário Castilhos, entre outros. [1] Ao final de menos de 15 minutos de confronto, jaziam os corpos dos quatro militantes assassinados, e um saldo de pelo menos mais oito feridos, entre eles o secretário do partido, Lúcio Soares Neto. 

A primeira investigação consistente sobre a chacina surgiu em 2006, através da dissertação de mestrado da historiadora Liane Chipollino Aseff.[2] A pesquisadora enfoca especialmente a vida cultural na fronteira de Santana do Livramento e Rivera entre as décadas de 1930 e 1960, e embora não fosse seu objetivo inicial, registra o crime do Parque Internacional como uma marca da violência que imperava no ambiente político de Santana, onde desde o início do século não era incomum a pistolagem, a mando de políticos e grandes proprietários de terras. Talvez o grande mérito da abordagem seja a construção dessa fronteira ao mesmo tempo envolta em jogos, cabarés e uma vida noturna repleta de atrações, contrastando com um setor subalterno da população, trabalhadores da fábrica ou dos campos, dependentes dos grandes mandatários, fossem fazendeiros, comerciantes ou políticos. Uma fronteira caracterizada como excludente àqueles que não possuíam poder ou riqueza, surge em depoimentos orais que assinalam por primeira vez o protagonismo de personagens que iriam ser abordados nas pesquisas seguintes. Conforme veremos, as causas do confronto recaem ora para a irresponsabilidade da direção do partido, que teria instado o ato, mesmo sob o clima aberto de conflito com as forças policiais e econômicas da cidade, ora a uma cilada armada deliberadamente por setores ligados ao Frigorífico, composta por forças policiais e pistoleiros.

O ex-operário do Frigorífico Armour, Hugo Nequesauert, fez questão de absolver a direção do partido em Santana, afirmando ter presenciado o telefonema em que Lúcio Soares Neto é instado a levar à frente o ato político pela direção do comitê estadual do PCB, então na clandestinidade. 

Em 1950, quando aconteceu a chacina eu não estava mais no Armour. Já tinha sido botado para a rua, por causa da greve que fizemos.  Havian sindicalistas,  casi  todos, mas era el partido que estava determinando os acontecimentos. Era época de eleição,  se supo que la policía ia tomar  represálias, e se consultó a Porto Alegre e yo era uno, solo yo,  que estava com Lúcio quando recibió ordenes de que podian hacer pichamento legalmente, que estava todo determinado de que no ia passar nada. Entonces aí se resolvió hacer, se convoco a la gente toda e se fez, se começo a pichar, quando vê, somos surpreendidos pela polícia. E chegou atirando, insultando e atirando e matando. E matou quatro!  Havia 15 o 17  personas quando mucho, no havia más...Unos dirigian el trabajo e otros executavan el trabajo. Estavam completamente desprevenidos, a arma deles era o pincel e a cal. [3]

Embora Hugo reforce a ideia de que o grupo estava desprevenido, relata a existência de uma retaguarda armada, que ficou encarregada da segurança. O iminente enfrentamento com a polícia e as forças mais conservadoras da cidade é usualmente relegado a um plano secundário, talvez para abrandar a responsabilidade pelo confronto que poderia ser imputado aos líderes comunistas, especialmente a Lúcio Soares Neto, que dirigia o ato. De fato, entre militantes comunistas remanescentes, como Jorge Ferrão, há uma velada culpabilidade a direção do partido pela atitude extrema do ato em frente ao parque, pois já existiria uma advertência, do chefe de polícia, de que não seriam toleradas manifestações do grupo comunista a uma semana das eleições. Lúcio ficaria com a imagem desgastada perante uma parte dos militantes, como Ferrão, que levantaram a versão de que ele próprio teria buscado abrigo atrás de um dos militantes, morto pela polícia, conforme versão que correu especialmente quando do julgamento dos envolvidos na chacina. Posteriormente, como veremos, foi descartada essa hipótese, embora persistam ainda hoje nos relatos orais uma reprimenda a atitude do secretário do partido, que por muito pouco escapou de ser morto no combate. Uma versão recorrente em outras narrativas[4], culpabiliza o delegado Miguel Zacarias de promover o confronto devido ao fato de estar disputando uma mesma mulher com Lúcio, hipótese passional que se demonstraria inverossímil, ao tentar isentar, ao menos sob essa alegação, o líder comunista das consequências de promover o ato ou não perceber que jogava os militantes em um enfrentamento aberto e previamente anunciado. Pouco antes do confronto, a escassos metros do local, em solo uruguaio, o pecuarista e militante Perseverando Santana e seu tio, Sona Santana, acompanhavam os preparativos de um pirão de cola, que seria usado para afixar cartazes nos tapumes que protegiam a obra do edifício Palácio do Comércio, ponto comercial que estava sendo construído bem em frente ao parque. Estavam no restaurante Doña Maria, de propriedade de Ari Kulmann, que seria assassinado logo em seguida. Conforme depoimento de Perseverando Santana, o clima de enfrentamento era de conhecimento de todos. Talvez por isso tenha se posicionado contra o ato, muito embora vencido pela direção local.

(...) sentados em uma das mesas do restaurante Doña Maria, Persevarando, Sona e Ari Kulmann, que não estava escalado para a pixação, conversavam e aguardavam. Perseverando lembra que, em meio a um ambiente tenso, o companheiro Ari disse: "Tchê, vocês não tem um revólver? Sim, porque hoje vai se dar alguma coisa". Kullman decidiu então participar das pixações e “tomou” o pincel de Magalhães, que estava já preparado para o serviço. Na praça estavam escalados para dar segurança ao grupo os companheiros  Holmos, Lucio Soares Neto, Hugo Nequesauert, Doralino Trindade, Pedro Perez, Santos Rodrigues e Amaro Gusmão.[5]

Entre os militantes da linha de frente, dois candidatos às eleições que se avizinhavam encabeçavam o ato: o vereador Solon Pereira Neto, ex pessedista convertido à causa comunista, jornalista incendiário e par de Lúcio Soares Neto nas causas operárias defendidas na Câmara Municipal, candidato a deputado estadual pelo Partido Republicano; e Aladim Rosales, reconhecido líder dos trabalhadores do frigorífico, demitido na greve do ano anterior, candidato a deputado federal. A versão de Perseverando Santana remete ao local do crime, por voltas das 22h. Conforme ele, o primeiro a ser baleado pelos policiais, que teriam chegado insultando e provocando o conflito foi Ari Kulmann.  Hélio Santana Alves levou um tiro nas nádegas. Aristides Corrêa foi baleado no peito. Santos Rodrigues também baleado, nas pernas, sobreviveu. Abdias foi atingido na boca e caiu mortalmente ferido dentro do Café Tupinambá, tradicional cafeteria localizada no Largo, exatamente em frente à calçada onde se deu o conflito. Aladim Rosales também morreria no local, com um tiro à queima roupa. Ari Kulmann ainda seria levado ao hospital, mas não resistiria. Finalmente, entre o grupo comunista, Lúcio Soares Neto escaparia ferido por entre o Parque, buscando refúgio na casa de Francisco Cabeda, localizada a poucos metros do conflito, no “lado uruguaio” da linha divisória.

Perseverando Santana rememorou, 64 anos depois dos acontecimentos, o contexto em que se deu o crime, afastando o partido de alguma responsabilidade pelas ações de confronto aberto, mas reforçando nas entrelinhas a culpabilidade de setores mais conservadores da cidade, especialmente os ruralistas e a direção do frigorífico, que não aceitavam os desdobramentos da organização dos trabalhadores, especialmente após a greve do ano anterior.

O partido foi cassado em 1947, depois cassaram os representantes do partido em 1948, entraram na clandestinidade partidária, então se usava as legendas de outro partido. Partido Socialista, Partido Republicano, e quando se aproximavama as eleições para presidente da república e o governo do estado,  em 1950,  lançamos pelo Partido Republicano o Solon Pereira Neto. Mas anterior a isso, a greve de 1949 no Armour teve grande repercussão, e os dirigentes dessa greve foram presos e até o Exército os levou para o quartel, o que não podia, e depois soltaram. Daí formou-se um clima muito grande sobre a atuação do partido, e o Armour tinha um poder muito grande, econômico, onde 50% dos impostos da cidade eram do Armour. E houve uma reunião na casa do Lúcio Soares Neto, que era o secretário naquela época, e de lá do comitê estadual veio a ordem, pode pintar que é legal. E era legal mesmo, era o Partido Republicano...Mas a polícia sabia que era o partido....ora...e tinha algumas opiniões, tava o Mário (Santana), e outros, inclusive parece que o Heron (Canabarro) também, que achavam que era provocar a polícia, que havia perigo. [6]

Hugo Nequesauert narrou sua versão do conflito, desabonando o clima de enfrentamento aberto que existia como consenso entre os militantes momentos antes do embate. Preferiu enfatizar uma situação de emboscada e legítima defesa.

Nós estávamos tranquilos, os três num acento no Parque, eu estava no meio, o Lúcio no lado uruguaio, mas no Brasil, e o Amaro (Gusmão) no lado de Santana. Todos aí tranquilos, e numa dessas o Lucio me diz, que é isso? Mas que é isso, barbaridade! E eu não entendia, até que me olhei para os lado e me dei conta e vi aquele grupo tremendo de gente, todos armados, bancando o valente, alguns com o chapéu bem requintado, pra frente, dispostos a brigar. E insultando. Comiunistas filhos deste, comunistas filhos daquilo..de tudo que é maldade diziam. E eu digo, são eles! E o Lúcio me diz, mas eles quem? E digo, eles, a polícia hombre (risos). Aí ele entendeu, se levantou, puxou o revólver, e marchou pela calçada. Eu fiquei no mesmo lugar, mas na calçada, onde eles iam passar. E “ansim” foi. O Lúcio se pegou a tiro com um policia lá adiante. Eu não vi nada disso, absolutamente nada dessa parte. Mas chegou a minha. Porque seguiram invadindo. Chegou a minha. E eu já estou atirando na montoeira, tirando vantagem. E não importa em quem pegue, que pegue em qualquer um deles tá bem pegado. Mas se terminaram as balas rápido, eram seis balitas. E eu tinha mais no bolso, porque eu sempre usava mais. Carreguei. Mas quando eu tô carregando o revólver dô uma olhada não?, porque tem que estar olhando. E o Solon vem com um boletim do pichamento, insultando a um polícia. Chamando de facista, disso e de aquilo, de corrupto, de todo lo que cabe. E eu baixei a cabeça pra carregar de novo. Porque cambiei de idéia. Digo, vou atrás do Solon...vão matar. Bem essas foram as minhas palavras. Termino de carregar, e olho e o Solon tá caído. Derrubaram ele à bala. Então eu cambiei de rumbo, eu ia prum lado, e resolvi passar a rua e acudir o Solon, que tava morrendo ou baleado, pelo menos tava caído...e atravessei a rua no meio das bala, brigando. [7]

Perseverando reforça o caráter arbitrário da ação e a prisão ilegal de Solon. Prefere retirar a responsabilidade de Lúcio Soares Neto pelo ato. Tampouco faz uma autocrítica sobre o rumo de radicalização extrema pela qual passava o partido naquele momento. 

O Solon ali tava fazendo propaganda. Não tava armado. Se ele tivesse armado....  tava fazendo propaganda como candidato. E quando veio a polícia, que esparramou, ele com um maço de jornais disse, vocês não respeitam, fascistas... e tal, como ele era,  temperamental bárbaro, o Solon. Ali ele recebeu uma pancada na cabeça e caiu... e quando vinha o policial para dar um tiro, qualquer coisa, o Hugo Nequesauert me disse, deu o tiro e feriu na perna, o Caetano. Compreendeu? E levantaram, o Solon foi preso. E colocaram ele no presídio. Ele era vereador. Mas sem partido, porque ele aderiu ao partido comunista... que foi outro erro. Como o Santos disse, ele não tinha que sair do partido, o PSD, ele tinha que ficar lá dentro. Mas, naquele sectarismo.[8]

Hugo não relata o suposto tiro no soldado Caetano. A partir do momento em que narra o momento no qual acode Solon,  leva o depoimento para a ocasião em que estaria no Parque, em meio a uma possível fuga, quando se encontra com o advogado Mário Cunha.

Me paro aí perto do Solon, e olho para a esquina de lá, e por lá só pode vim ... bem pela linha, tem um parquezinho ali que é metade Brasil, metade Uruguai, na mesma rua. E apareceu aquele homem grande gritando, em manga de camisa...(imita grunhidos de gritos), aqueles grito fantástico...reconheci...e chegou e me viu. E eu tô me retirando, dale... que que ia fazer.  E me apontou. E aí eu reconheço que era o Mário Cunha, e digo, vai me atirar...e não demorou nada, chegou perto, mas perto não?, relativamente cinco ou seis metros. E me começou a atirar. Mas mal, atirava. Eu notava, ele me apontava...eu tô aí, ele apontava aqui. E me olhava e atirava como se fosse em mim. Errado todo. Então eu calmei. Esperei que tirasse seis tiro. Quando ele tirou seis tiro eu avancei nele. Teria duas três bala ao máximo, capaz que no tuviera. Avancei nele para dar bem de pertinho, porque já nem sabia bem quantas bala tenia. E nos juntamos como el grando lua (?)  (risos), e quando ele viu o revólver, pequeno, 31, quando ele viu ele fez isso... com os braços levantou e me deu as costas...e eu ia dá-lhe igual, que cosa....(risos) e se desesperou, gritou...e o negro Ventura me grita do auto, não mate o homem seu, não mate. E eu vi que era a voz de um companheiro, grande companheiro, e obedeci.[9]

Assim como nos momentos decisivos que deflagraram a greve de 1949 no frigorífico, o ano de 1950 e especialmente os meses que antecederam a chacina ficariam marcados pelo tom das críticas comunistas sobre a ação deletéria do imperialismo, com os frigoríficos estrangeiros estabelecendo verdadeiro terror sobre a economia nacional.  O aumento crescente do preço da carne e a escassez do produto no mercado nacional, ofertado de maneira precária e de má qualidade, denunciava o jornal Voz Operária, estaria diretamente atrelado à ação nefasta dos grandes frigoríficos, que penalizavam os pequenos produtores e destinavam o melhor da produção a um esforço de guerra norte-americano na Coréia e a outros países sob ditaduras.

 

*Este texto é uma versão reduzida e adaptada de parte de um capítulo da tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, intitulada “No portão da fábrica -  trabalho e militância política na fronteira (1945-1954)”.

*foto: Ruínas do Frigorífico Armour em Santana do Livramento

 



[1] Depoimento de Perseverando Santana concedido a Marlon Aseff em 22 de janeiro de 2012. Santana do Livramento.

[2] CHIPOLLINO ASEFF, Liane. Op.Cit. Pgs. 164-175.

[3] Hugo Nequesauert. Entrevista a Marlon Aseff em 23 de agosto de 2011, Santana do Livramento.

[4] VARGAS DE SOUSA. Oneider. As lutas operárias na fronteira: a chacina dos quatro “As” (Livramento – RS/1950). Dissertação de Mestrado. UFSM. 2014.

[5] ASEFF. Marlon. Retratos do exílio: experiências, solidariedade e militância política de esquerda na fronteira Livramento/Rivera (1964-1974). Dissertação de Mestrado. UFSC. 2008.Pg

[6] Perseverando Santana. Depoimento ao autor em Conversas com Perseverando, documentário, 2013.

[7] Hugo Nequesauert. Depoimento ao autor em Conversas com Perseverando, documentário, 2013.

[8] Perseverando Santana. Depoimento citado.

[9] Hugo Nequesauert. Depoimento citado.