sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

 

       Lutas operárias na fronteira:  as mulheres na linha de frente 



A prisão de Hélio Santana Alves após se recuperar do tiro que levou no confronto do Parque Internacional, e seu encaminhamento ao cárcere em Montevidéu, foi um fator determinante para salvar a sua vida. Se fosse entregue à polícia brasileira, ninguém poderia prever os desdobramentos que poderiam ocorrer, dado a tensão extrema daqueles dias e a caça deliberada aos militantes comunistas. O que poucos sabem é que por trás de toda a operação de salvamento de Hélio esteve presente sua esposa, Celina Perez (foto), que como parte expressiva das mulheres militantes foi invisibilizada da história “oficial”, seja do partido ou das esquerdas em geral. Em uma sociedade estruturalmente machista, a atuação das mulheres na política, ou mesmo sua mera influência, conforme assinalou a historiadora Michelle Perrot, é nada menos que temida:

 

O lugar das mulheres no espaço público sempre foi problemático, pelo menos no mundo ocidental, o qual, desde a Grécia antiga, pensa mais energicamente a cidadania e constrói a política como o coração da decisão e do poder. (...) Prende-se à percepção da mulher uma ideia de desordem. Selvagem, instintiva, mais sensível do que racional, ela incomoda e ameaça. (...) Elas inquietam os organizadores das cidades, que veem nas multidões onde elas estão presentes, o supremo perigo.[1]

 

Dentro de um contexto de invisibilidade trafegaram boa parte das militantes fronteiriças, relegadas a apêndices das narrativas e culturalmente enquadradas na camisa de força patriarcal que as obrigava a conciliar a atuação política nos seus diversos níveis ao suprimento da vida doméstica e aos deveres do privado, espaço a elas relegado. No momento da prisão de Hélio, Celina teve de agir rapidamente para que o companheiro não fosse entregue aos algozes. Sérgio Alves, filho do casal, rememora:

 

A minha mãe, no mesmo dia em que meu pai ficou baleado no Uruguai procurou um deputado que era de Rivera, chamado Maximiliano Luz, e esse homem constatou que a prisão de meu pai não estava registrada em lugar algum. Então minha mãe liga para um advogado do partido chamado Garcia Moyano. E ele liga para cá e a polícia diz que não havia preso nenhum. Quer dizer, estavam armando para passar ele para o outro lado, e iam matar. Então esse advogado disse, não, há um preso político aí chamado fulano de tal e amanhã eu estarei aí para defendê-lo. E talvez isso tenha feito o comissário não ter entregue ele.[2]

 

Para Celina Perez, a parceria com o companheiro e o esforço para a sustentação dos filhos sempre foi a tônica de uma vida de lutas. Quando da prisão de Hélio, teve de manter a um alto custo pessoal a pequena engarrafadora de bebidas que o casal possuía no bairro da Tabatinga. A camioneta usada para as entregas fora sumariamente confiscada pela polícia e jamais retornou. Celina teve de trancafiar em um porão alguns barris de anis, que usou para fabricar novas bebidas e continuar o negócio na ausência do marido. Nos anos que viriam a luta não seria menos intensa. Pouco mais de duas décadas depois, Celina veria o filho Sérgio ser preso e torturado durante a ditadura uruguaia. Frente ao poder avassalador dos novos tiranos, reuniu um grupo de mulheres que enfrentava o dia a dia inquisitorial dos militares e acompanhava de perto os deslocamentos para outras cidades e quartéis dos filhos prisioneiros. Essa luta foi de fundamental importância para que uma série de militantes simplesmente não desaparecessem, como ocorreu com outras duas centenas de pessoas, além de mais de 100 mortos nas prisões uruguaias.

Assim como Celina Perez, a presença de mulheres fronteiriças como Gecy Rodrigues Soares, filha de Santos Soares e esposa de Francisco Fagundes Lima, de atuação intensa no acolhimento de exilados brasileiros durante a ditadura iniciada em 1964, precisam ser melhor iluminadas em pesquisas futuras. O que dizer da relevância de uma mulher como Maria Rodríguez, esposa de Santos Soares? Aguarda-se uma produção historiográfica que se debruce com o tempo necessário na fundamental atuação dessas mulheres, assim como outras citadas nesta pesquisa e que dentro de seus espaços locais dialogavam, de forma consciente ou não, com as ideias de ativistas fundamentais como Leolinda de Figueiredo Daltro, Olga Benário, Bertha Lutz, Lila Ripoll, entra tantas outras.

As ações mais visibilizadas das ativistas ligadas de alguma maneira ao PCB podemos encontrar em registros esparsos dos jornais do partido e, especialmente, nos relatos da Memória. A trajetória de Placelina Santana, por exemplo, esposa do líder Jovelino Santana, nos chega através do olhar de sua filha Olga. Conforme ela nos mostra, a casa da família, no bairro Industrial, era ponto de encontro e local de reuniões onde compareciam Renée Canabarro, Teresa Nequesauert, Francelina Cabeda, Virginia Apoitia. Olga Santana recorda-se que nesses momentos as mulheres reuniam-se à parte dos homens, e os assuntos discutidos giravam em torno das ações partidárias para arrecadação de fundos, mesmo que nem sempre a política fosse a tônica:

 

Elas vinham para cá, faziam chazinho, cafezinho, e conversavam, mas acredito que elas não conversavam assunto de política. Tinham umas que eram bem politizadas. Diferente da minha mãe, que meu pai sempre foi muito machista nesse sentido, então mulher não se mete em política. Mas as outras mulheres falavam e minha mãe assimilava muito bem. E faziam chás dançantes, para recolher algum dinheiro para o partido. Então elas eram encarregadas dessa parte social, para auferir algum dinheiro, para que eles pudessem manter o jornalzinho, a compra de livros... Na outra sala ficavam os homens, meu pai, o Solon, o Heron...[3]

 

Renée e Teresa Nequesauert, esposa de Solon Pereira Neto, eram das mais atuantes na liderança da ala feminina do partido. Na ocasião da chacina, Heron foi detido ao tentar interceder como advogado, denunciando a arbitrariedade e inconstitucionalidade da prisão de Solon. O ambiente exalava a tensão dos recentes assassinatos e Renée organizou a ala feminina, reuniu as viúvas, e se encaminhou ao quartel onde estavam detidos Solon e Heron, exigindo a soltura, falando em nome das famílias dos mortos e em desagravo ao crime. Foram recebidas pelo comandante Ciro de Abreu. Marlova Canabarro recorda de sua mãe narrar o áspero diálogo que manteve com o militar: “O Ciro de Abreu disse, ‘É, foram vocês que inventaram essa tal democracia, no que minha mãe retrucou, general, democracia não se inventa!”. Para Marlova, embora os militantes e simpatizantes do partido muitas vezes tivessem origens sociais distintas, pelo menos na sua casa os grupos não eram exclusivos, separados entre “intelectuais de um lado e operários de outro”. Ela acredita que para Renée e Heron não havia a distinção, muito embora circulassem também pelos meios pequeno-burgueses e de fazendeiros mais abastados.

 

Lá em casa desfilava gente, não tinha isso... e nas reuniões ia todo mundo. A mãe era uma pessoa que transitava muito dentro do partido e era extremamente coerente. Ela foi responsável pelos primeiros filmes italianos que meus amigos viram no cinema, e depois iam lá para casa discutir, tudo por influência da minha mãe. Ser comunista e participar de uma sociedade pequeno burguesa era complicado também, mas nunca houve... eu fui debutante, fui tudo... bailes... Tinha descriminação na escola primária... do tipo, minha mãe disse que teu pai é comunista.[4]

 

Mariana de Rossi Venturini, ao analisar as conferências dos comunistas de 1956 e 2007 que trataram da questão da mulher, aborda a tradição do feminismo marxista e seus desdobramentos entre os militantes brasileiros. Desde a elaboração de Engels e Marx, segundo a qual somente em uma sociedade sem divisão social e sexual do trabalho seria possível a liberação dos trabalhadores e da exploração de classe, a questão rondava as pautas da esquerda. Conforme a socióloga,

 

Os comunistas passaram décadas negando e criticando o “feminismo”, mesmo nos momentos em que eles próprios defendiam reinvindicações específicas das mulheres. A ideia de “feminismo” se confundia com a ideia de “feminismo liberal” ou “feminismo burguês” e, só muitas décadas mais tarde, mais precisamente a partir da década de 1970 em diante, com o avanço dos debates entre feministas de esquerda, é que se faria a distinção entre as correntes liberal e socialista e o termo “feminismo” passa a designar também a luta pela emancipação das mulheres no âmbito das esquerdas partidárias, incluindo muitos partidos comunistas.[5]

 

Com o final do Estado Novo, o movimento das mulheres comunistas ganha um novo impulso, amparado no fortalecimento das organizações de base e a criação de comitês populares de mulheres em todo o país. Em maio de 1949, realiza-se, no Rio de Janeiro a 1ª Conferência Nacional das Mulheres, onde foram debatidos os caminhos para se assegurar mais direitos para as mulheres brasileiras. A conferência denunciava fortemente a situação de fome e miséria do povo, contudo, apontava que era ainda mais penosa no país a situação das mulheres. Conforme Venturini, a tomada de consciência pelas mulheres de que sofriam duplamente uma exploração social foi gradual e consistente, e “ainda que não houvesse clareza nas motivações ou mecanismos pelos quais isso ocorria, já era clara a percepção de que eram mais atingidas pela pobreza, exploração, falta de liberdades e de direitos”.[6]

Nesse período, a imprensa comunista celebrava a participação feminina cada vez maior nas ações do partido, especialmente nas campanhas pela Paz, contra as armas nucleares e contra o envio de tropas brasileiras para a Guerra da Coréia. O Voz Operária registrava a batalha pela maior visibilidade das trabalhadoras e a extrema dificuldade que as mulheres passavam no ambiente de fábrica. No Armour, a mão de obra majoritariamente feminina estava concentrada nos setores da Picada, Latoaria e Rotulagem. A situação da mulher na fábrica é enfocada pela ativista feminista e colaboradora do Voz Operária, Ginia Machline, em uma edição de agosto de 1949. A nota faz um chamamento à participação da mulher na luta pela paz e contra a iminente guerra imperialista e reforça a situação dos frigoríficos gaúchos e especialmente o Armour como exploradores contumazes da mão de obra feminina.

 

Um exemplo dessa situação da mulher trabalhadora é dado pelas operárias dos frigoríficos do Rio Grande do Sul, que ganham salários na base de Cr$ 150,00, 230,00 e 420,00 – que entrando 5 minutos atrasadas não ganham o descanso semanal, que não tem assistência médica e hospitalar, que não tem creches nos locais de trabalho para deixar seus filhos com outras crianças (prejudicando-as em seus brinquedos infantis, pois tem que cuidar de seus irmãozinhos) isso quando não tem de deixá-las fechadas em casa, sozinhas, outras entregues a vizinhos, mediante pagamento, no que dispende quase todo o salário. São obrigadas a levar comida para o trabalho, pois os horários são apertados, com uma hora para o almoço, incluindo (...) comida péssima e intragável por preços pouco acessíveis, os “gringos” exigem pagamento à vista, pois os operários e operárias, além de serem vilmente explorados, não merecem créditos dos americanos fazedores de guerra.[7]

 

A denúncia estampada no jornal não poupa o governo Dutra, um inimigo declarado e a ser combatido, pois estaria levando o país à bancarrota, através de acordos com os “traficantes da guerra”, Estados Unidos e Inglaterra. A exploração das mulheres nos frigoríficos Armour, Anglo e Swift, aponta a reportagem, “é medonha”. De acordo com os historiadores Augusto Buonicore e Fernando Garcia, a organização feminina entre os comunistas teve um grande impulso com a fundação do jornal Momento Feminino, em julho de 1947, sob a direção de Arcelina Mochel. Nesse período o jornal “tornou-se um instrumento agregador e organizador das mulheres comunistas e progressistas brasileiras (...) impulsionou a criação de comitês femininos em bairros e sindicatos. Num artigo no Momento Feminino fala-se na existência de 43 núcleos funcionando (...) O resultado de todo esse trabalho foi a criação da Federação de Mulheres do Brasil (FMB) em 1949”.[8] A entidade congregou organizações femininas de 11 estados e foi responsável pelas pressões que resultaram na criação da Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento), durante o governo Vargas. Além das campanhas pelo Petróleo, contra as armas atômicas e o envio de soldados brasileiros para a guerra da Coréia, as mulheres organizadas também foram fundamentais para as vitórias obtidas na greve dos 300 mil, que sacudiu a capital paulista entre março e abril de 1953. No entanto, a organização das mulheres, especialmente ligadas ao PCB, teve uma retração a partir do final dos anos 1950 e a crise interna do partido. O momento de auge que iniciou com o final do Estado Novo e se consolidou na década seguinte não se repetiria, sendo fortemente abalado com a imposição de uma nova ditadura em 1964.


*  Fragmento do livro "No portão da fábrica - uma história social da fronteira (1945-1955)" 

 de Marlon Aseff 



[1] PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Unesp, 1998, p. 8-9.

[2] Sérgio Alves. Entrevista ao autor. Santana do Livramento, 25 de agosto de 2019.

[3] Olga Santana, entrevista citada.

[4] Marlova Canabarro, entrevista citada.

[5] VENTURINI, Mariana de Rossi. Comunistas do Brasil e a emancipação da mulher: as conferências partidárias de 1956 e 2007. 2018. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Unicamp, 2019, p. 12, 15, 35.

[6]Idem, p. 53.

[7] “A Mulher Operária na Luta pela Paz” – Ginia Machline. Voz Operária, Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1949, p. 3.

[8] BUONICORE, A.; FARIA, F. G. As mulheres e os noventa anos do comunismo no Brasil. Portal do Centro de Memória Sindical, 2022. Disponível em: https://memoriasindical.com.br/formacao-e-debate/as-mulheres-e-os-noventa-anos-do-comunismo-no-brasil/.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

 

“É sempre o opressor e não o oprimido 
quem determina a forma de luta” (Nelson Mandela)



 

Por mais de 75 anos, o povo palestino vem lutando, corajosamente, pelos seus direitos fundamentais, autodeterminação, independência, justiça e soberania.

Os atos de resistência, sejam eles pacíficos ou armados, são uma resposta legítima à opressão e ocupação israelenses, aos bloqueios de Gaza e à continuação da colonização ilegal, dentro do território palestino, segundo as resoluções da ONU, resultando na expulsão de centenas de milhares de palestinos de suas terras de origem. Condenamos, veementemente, os abusos perpetrados pelo estado sionista de Israel, que, inclusive antes dos ataques de vingança indiscriminados de hoje que causaram centenas de mortes, já destruíam infra-estruturas palestinas e matam numerosos civis, incluindo crianças.

A recente intensificação da política de colonização israelita de territórios palestinos, com a aprovação dos Estados Unidos, constitui uma violação flagrante do direito internacional, contrariando as resoluções das Nações Unidas e comprometendo gravemente a possibilidade de uma paz justa e duradoura. Os colonatos israelenses ilegais resultam no confisco de terras e na demolição de casas palestinas, na restrição de movimentos, restringindo o direito de ir e vir e demais liberdades essenciais e na humilhação diária do povo palestino. Agora, os sionistas pretendem ocupar lugares sagrados para os muçulmanos, como a região da mesquita Al-Aqsa em Jerusalém.

 A responsabilidade pelo que se está ocorrendo, nos dias de hoje, entre Israel e a Palestina, deve ser encontrada naqueles que incentivaram o desrespeito pelos direitos do povo palestino e na política terrorista do governo de Israel apoiada pelos EUA, constituída de um regime de apartheid, na realização de limpeza étnica  e na prática de um genocídio de palestinos.

Expressando a nossa preocupação e inquietação com a escalada do conflito, em particular com as suas trágicas consequências para as populações, alertamos para o perigo do seu alastramento, numa região já martirizada por décadas de ocupação, guerra e subversão por parte dos Estados Unidos da América, de Israel dirigida pelo partido Likud, de extrema direita, das potências da OTAN e da UE – seja no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, no Líbano, na Palestina ou na Síria, entre outros exemplos –, que espalharam a morte e a destruição e geraram milhões de refugiados.

Quando por décadas não estão sendo cumpridas as resoluções dos organismos internacionais que preveem a criação de dois Estados, a Célula Internacionalista do PCB – RR/RS reafirma a necessidade de uma solução política que garanta a concretização do direito do povo palestino a um Estado soberano e independente, com as fronteiras de 1967, com capital em Jerusalém Oriental, e  com o efetivo  retorno dos refugiados palestinos às suas terras, conforme as resoluções pertinentes da ONU.

Nós militamos pela solidariedade internacional dos povos, em particular de todos aqueles oprimidos pelo eixo EUA-UE-OTAN e pelos seus aliados, como o governo de Israel, e pela necessidade de reforçar o movimento de solidariedade à Palestina em todo o mundo.

 Porque, em última análise, não se trata tão-só da liberdade da Palestina, mas trata-se da liberdade de todas as nações do mundo agredidas pelo imperialismo, incluindo as liberdades democráticas em Israel, que estão sendo ameaçadas pelo governo de Netanyahu, com a reforma do judiciário, por exemplo.

 Solidários estamos com povos do mundo que estão sujeitos à desestabilização e às consequências das políticas imperialistas, até mesmo exterministas extremistas, do eixo EUA-UE-OTAN e dos seus aliados.

 Nós continuaremos a denunciar a opressão do governo de extrema direita de Israel e do imperialismo e a trabalhar por um futuro de paz e liberdade ao povo palestino.

 Apelamos à unidade de todos os progressistas, ativistas dos direitos humanos e amantes da paz entre os povos para pôr fim à opressão e ocupação israelense, para a criação de um Estado palestino soberano e indeependente, para a realização dos direitos inalienáveis ​​dos palestinos, com as fronteiras de 1967, com capital em Jerusalém Oriental e a efetivação do  retorno dos refugiados palestinos às suas terras, conforme as resoluções pertinentes da ONU.

 

 

Por Humberto Carvalho, Célula Internacionalista do PCB RR


terça-feira, 9 de maio de 2023

Santana do Livramento: a cultura jogada ao léu

 


Escrevi dois livros que considero importantes para conhecermos um pouco da história recente de Santana do Livramento e Rivera. Em um deles, chamado Retratos do Exílio – Solidariedade e resistência na fronteira, recupero a trajetória de atores políticos reconhecidos e anônimos cidadãos no enfrentamento das ditaduras brasileira e uruguaia, nas décadas de 60 e 70 nesta fronteira. Na outra obra, já no prelo, abordo as lutas operárias em torno do Frigorífico Armour, logo após o final do Estado Novo e inícios dos anos 1950.

Pois bem, em nenhum momento de pesquisa para estes dois livros me foi permitido investigar no acervo do Museu da Folha Popular. Senti na pele o que um jornalista e um historiador podem passar quando tentam de alguma maneira elaborar novos olhares sobre a nossa história.

Escrevo para refletir sobre o recente evento que veio a público, da doação do acervo daquele museu, construído a duras penas pelo historiador Ivo Caggiani, ao Museu Departamental de Rivera. Convém aqui um parênteses:  sabemos que um acervo se constrói em grande parte através de doações de documentos, em que pessoas, de boa-fé, compartilham seus pertences com a ilusão de que um “Museu” teria a guarda de uma institucionalidade e o futuro preservado.

Isso nos remete hoje a um desfecho caótico sob esse ponto de vista, e uma constatação dolorida: Santana do Livramento não possui uma elite cultural e política capaz de valorizar sua fortuna documental e histórica. O pior de tudo isso é que, como diria o velho roqueiro argentino, “no es solo una cuestion de elecciones”. Passam os homens e mulheres, mas o desprezo permanece no ar. Assim como o desprezo pelas periferias e pela real democratização da cultura em nossa cidade. Parecemos relegados a uma eterna condição de povoado subsidiário dos grandes latifúndios, que se hoje não possuem mais o poder oligárquico de outrora, pelo menos deixaram instalada uma mentalidade classista, divisionista e egoísta.

Rivera trata bem seu legado, parece que sim. Rivera nunca teve um acervo consistente como o nosso, também parece que sim. Pelo menos aos olhos do pesquisador que já fuçou nas gavetas disponíveis nos dois lados da fronteira.

Os acervos de Santana foram tratados de maneira irresponsável durante anos e assim documentos fundamentais para descortinar passados e erguer futuros foram queimados, jogados ao léu, destruídos, roubados.

Poderia adotar aqui uma posição cômoda, pois como historiador poderei ter acesso a partir de  agora a uma série de documentos antes inacessíveis. Mas não canso de me espantar com nossa incapacidade de sustentar no município um acervo que em última instância pertence ao povo desta cidade. Pois conversas vazias sobre  “fronteira irmã”, “da paz” e todos esses mitos construídos de maneira leviana, esbarram nos ditames legais dos estados nação, essa organização política e historicamente construída que a cada território impõe suas regras. Portanto, ao fim e ao cabo, alija-se grande parte da população santanense de um acervo que seria seu, por direito.

Não fomos competentes para retê-lo, não fomos. Porém, um acervo dessa monta abre o debate sobre o que é juridicamente correto e ético quando se discute o destino do patrimônio cultural de um povo. Iremos continuar a ver nossos documentos históricos virarem pó e sem o mínimo esboço de reação? Ao que parece, sim. Mas a todos os indignados – não com a competência pragmática de Rivera (que certamente irá preservar o acervo) – mas com o destino de nossas riquezas culturais, nos cabe o grito, mais uma vez, aos quatro ventos.