terça-feira, 9 de maio de 2023

Santana do Livramento: a cultura jogada ao léu

 


Escrevi dois livros que considero importantes para conhecermos um pouco da história recente de Santana do Livramento e Rivera. Em um deles, chamado Retratos do Exílio – Solidariedade e resistência na fronteira, recupero a trajetória de atores políticos reconhecidos e anônimos cidadãos no enfrentamento das ditaduras brasileira e uruguaia, nas décadas de 60 e 70 nesta fronteira. Na outra obra, já no prelo, abordo as lutas operárias em torno do Frigorífico Armour, logo após o final do Estado Novo e inícios dos anos 1950.

Pois bem, em nenhum momento de pesquisa para estes dois livros me foi permitido investigar no acervo do Museu da Folha Popular. Senti na pele o que um jornalista e um historiador podem passar quando tentam de alguma maneira elaborar novos olhares sobre a nossa história.

Escrevo para refletir sobre o recente evento que veio a público, da doação do acervo daquele museu, construído a duras penas pelo historiador Ivo Caggiani, ao Museu Departamental de Rivera. Convém aqui um parênteses:  sabemos que um acervo se constrói em grande parte através de doações de documentos, em que pessoas, de boa-fé, compartilham seus pertences com a ilusão de que um “Museu” teria a guarda de uma institucionalidade e o futuro preservado.

Isso nos remete hoje a um desfecho caótico sob esse ponto de vista, e uma constatação dolorida: Santana do Livramento não possui uma elite cultural e política capaz de valorizar sua fortuna documental e histórica. O pior de tudo isso é que, como diria o velho roqueiro argentino, “no es solo una cuestion de elecciones”. Passam os homens e mulheres, mas o desprezo permanece no ar. Assim como o desprezo pelas periferias e pela real democratização da cultura em nossa cidade. Parecemos relegados a uma eterna condição de povoado subsidiário dos grandes latifúndios, que se hoje não possuem mais o poder oligárquico de outrora, pelo menos deixaram instalada uma mentalidade classista, divisionista e egoísta.

Rivera trata bem seu legado, parece que sim. Rivera nunca teve um acervo consistente como o nosso, também parece que sim. Pelo menos aos olhos do pesquisador que já fuçou nas gavetas disponíveis nos dois lados da fronteira.

Os acervos de Santana foram tratados de maneira irresponsável durante anos e assim documentos fundamentais para descortinar passados e erguer futuros foram queimados, jogados ao léu, destruídos, roubados.

Poderia adotar aqui uma posição cômoda, pois como historiador poderei ter acesso a partir de  agora a uma série de documentos antes inacessíveis. Mas não canso de me espantar com nossa incapacidade de sustentar no município um acervo que em última instância pertence ao povo desta cidade. Pois conversas vazias sobre  “fronteira irmã”, “da paz” e todos esses mitos construídos de maneira leviana, esbarram nos ditames legais dos estados nação, essa organização política e historicamente construída que a cada território impõe suas regras. Portanto, ao fim e ao cabo, alija-se grande parte da população santanense de um acervo que seria seu, por direito.

Não fomos competentes para retê-lo, não fomos. Porém, um acervo dessa monta abre o debate sobre o que é juridicamente correto e ético quando se discute o destino do patrimônio cultural de um povo. Iremos continuar a ver nossos documentos históricos virarem pó e sem o mínimo esboço de reação? Ao que parece, sim. Mas a todos os indignados – não com a competência pragmática de Rivera (que certamente irá preservar o acervo) – mas com o destino de nossas riquezas culturais, nos cabe o grito, mais uma vez, aos quatro ventos.