quarta-feira, 24 de março de 2010

A imigração árabe na fronteira ( parte 1)


Gostaria de abordar aqui aspectos de minha investigação sobre o processo imigratório árabe na fronteira brasileiro/uruguaia, entre as cidades de Santana do Livramento e Rivera, dos primeiros anos de 1900 a meados dos anos sessenta. Nas primeiras décadas do século 20 essa região, especialmente a cidade uruguaia de Rivera, foi escolhida por emigrantes árabes vindos, em sua maioria, do Líbano. A partir dos primeiros anos da década de sessenta, no entanto, são os palestinos que começam a chegar na fronteira. Muitos fugiram da opressão israelense após 1967. Irei tratar aqui das trajetórias de famílias tradicionais daquela fronteira, como os Normey, Maluf, Salim, Chein, Aseff, Tarabay, e El Tors. Esta investigação insere-se dentro de uma perspectiva da história cultural, onde me utilizei da memória oral, documentos particulares e oficiais, fotografias e periódicos. Convém ressaltar aqui o ineditismo desta pesquisa nesta fronteira do Cone Sul, especialmente no que se refere ao Uruguai e aos arquivos do Ministério do Interior daquele país.
Essa fronteira pode ser considerada um território ímpar, pois a delimitação física de sua linha divisória é quase imperceptível ao olhar forasteiro. Nesse sentido, ao longo de sua formação a região apresentou-se como um local para além dos horizontes regulatórios dos estados nacionais, atraindo toda sorte de estrangeiros, de turistas a emigrantes. O historiador uruguaio Waldemar Rodríguez Navarro assim caracterizou a região: “[...] desde el punto de vista urbanístico, forman una sola ciudad. Nosotros no vivimos en Rivera sino en Rivera y Sant’Ana. A nadie le extraña aquí que plazas, calles y avenidas, monumentos, un obelisco, una fuente luminosa, sean mitad uruguaya, mitad brasilera. Estamos habituados a esta manera de ser internacional". Os primeiros libaneses que ali chegaram puderam entrever o local como um mundo sem fronteiras, próspero, para viver e trabalhar e assim integrar-se ao universo pampeano-fronteiriço. Naturalmente que ao longo de sua linha de fronteira, os marcos divisórios orientam para o lado brasileiro ou para o uruguaio.
Embora as publicações que tratam sobre a chegada dos imigrantes árabes no Uruguai sejam esparsas, se destaca o pioneirismo do poeta e escritor uruguaio Antonio Dib Seluja Cecín, que em meados dos anos 80 deu início a investigação que o levaria aos pioneiros da emigração sírio e libanesa no país. Através da paciente compilação e catalogação de dados dispersos, documentos oficiais, literários e relatos de cartas manuscritas de descendentes de libaneses espalhados pelo interior do Uruguai, finalmente em 1991 conseguiu publicar sua obra Los Libaneses en el Uruguay .
A chegada dos primeiros buques (barcos) trazendo emigrantes estrangeiros ao Uruguai teve início entre as décadas de 1860-70. A maioria viajava de cidades do interior da Espanha, Itália e mais tarde, nas últimas décadas deste século, do Líbano. Segundos dados da Embaixada Libanesa no Uruguai, a população libanesa é a terceira maior comunidade estrangeira no país, superada apenas pela italiana e espanhola. O Uruguai, considerado terra da prosperidade pela primeira geração de imigrantes libaneses também se transformou em segunda pátria para essa comunidade.
Os primeiros imigrantes sírios e libaneses que aportaram em Montevidéu eram cristãos, católicos e maronitas. Alguns chefes de família sentindo-se perseguidos pelo rigor religioso do Império Otomano, deixavam sua prole e atravessavam o Atlântico. Buscando melhores condições financeiras, se arriscavam na nova terra para viver e trabalhar. Mais tarde, se utilizando de economias forjadas sob força de seu trabalho, buscavam suas esposas e filhos, ou retornavam para casar com jovens de sua pátria. Uma primeira pergunta se faz necessária: Qual motivo teria levado esses pioneiros a deixar seu amado Líbano? Os imigrantes árabes e seus descendentes que residem na fronteira foram unânimes em enfatizar a causa de sua saída: “No Líbano, não havia trabalho, era muito pouco, o país é bom para se viver, mas para trabalhar era muito difícil, a maioria vivia em aldeias agrícolas ou próximas a montanha, então um dia, resolvemos partir[...] O país era pequeno para tantos trabalhadores, mas sempre voltamos ao país para ver nossos parentes”, relatou um comerciante que reside em Rivera desde meados dos anos cinqüenta.
Pioneirismo e espírito aventureiro
A maioria dos emigrantes libaneses que buscavam o porto de Montevidéu vieram de aldeias camponesas das montanhas do interior do país. Muito jovens solteiros viajavam em busca de uma independência econômica. Aventuravam-se pelo interior da república uruguaia, tomando a campanha para si, vendendo suas variadas mercadorias, em busca da clientela que o novo ofício exigia. No princípio foram vistos com receio pela população rural, até que ganharam confiança e amizade da maioria das famílias da campanha. Sua freguesia principal eram as mulheres e crianças que moravam nas estâncias ou nas vilas próximas a elas. Também foram vítimas de violência e discriminação. No início os emigrantes libaneses ingressavam no país sem dificuldade alguma. Entretanto a partir de 1890, devido a grande afluência de estrangeiros árabes o governo uruguaio vai dificultar a entrada no país. Era a resposta às conseqüências do surto imigratório em um país pequeno e ainda muito ligado a atividade pecuária. A emenda constitucional que restringia a entrada dos árabes estabelecia em seu artigo 27 que se tornava proibida “en la República la inmigración asiática e africana”, sendo considerados inaptos “todo extranjero honesto y apto para el trabajo, que se trasladava a la República Oriental del Uuguay, em buquê a vapor o vela, com pasaje de segunda o tercera clase y con ánimo de fijar en ella residência”
A imigração então vai tomar outro rumo, estimulando os turistas emigrantes a embarcar e a chegar clandestinos ao país, já que poucos poderiam vir em primeira classe. Note-se que também não era nada barato passagens de segunda e terceira classe em navios que faziam a rota para a América. A partir de 1903, quando o presidente Juan Cuestas regulamenta a lei de imigração de 1890, vai ocorrer um espaçamento no surto emigratório.
O certo é que muitos burlavam a nova lei e continuavam viajando clandestinamente. Chegando em Montevidéu, logo recebiam o apoio e solidariedade de seus compatriotas. Havia muitos libaneses que mantinham uma espécie de pousada para os recém chegados ao país. Não raro, os clandestinos chegavam doentes, devido à longa viagem. Conforme nos ensina Antônio Seluja, nesses locais os viajantes se restabeleciam e enviavam notícias para a família que ficara no Líbano. Após dominar algumas palavras do espanhol, aprendiam o valor dos pesos uruguaios e recebiam algumas mercadorias. Passado o ritual inicial, com seus caixões estavam prontos para explorar a campanha uruguaia.
Os libaneses não foram indiferentes às transformações políticas que sacudiram o Uruguai no início do século 20. O sentimento de pertencimento a uma segunda pátria castelhana fez com que o imigrante acastelhanado Emilio Nizarala (em árabe, Nisrala), radicado em Rivera, se engajasse na coluna de seu amigo, o blanco Aparício Saraiva e fosse defender sua pátria. Antonio Seluja também relatou o célebre episódio da turca Carmen, da cidade de Trinta y Tres Orientales, que se engajou no exército colorado para lutar na revolução de 1904 junto ao General. Basilício Saravia. No cenário riverense dos primeiros anos de 1900, se impõe a figura de Juan Molke, já estabelecido e próspero comerciante. Entre a comunidade libanesa, atuará como uma espécie de cônsul, estimulando e patrocinando a vinda de jovens solteiros, que tinham esparsas oportunidades de trabalho em seus povoados. Porém, assim como o cônsul auxiliava os jovens, também mantinha sua autoridade sobre eles, estimulando e sugerindo o casamento entre as moças libanesas que chegavam ou as já estavam estabelecidas na cidade. Uma forma eficaz de perpetuar as raízes árabes no novo chão. Segundo Isabel Najas, Juan Molke pedia aos jovens solteiros que estavam sob sua proteção que constituíssem matrimônio, mesmo com as mulheres mais maduras, que já haviam, passado da idade para casar.
Emílio Nisrala, Juan Molke e Yussef Bushada (Juan Posada em espanhol), foram os pioneiros a se estabelecer em Rivera. Em comum tiveram o engajamento político nas fileiras do Partido Nacional, estimulando os jovens emigrantes de primeira viajem a aderirem a causa revolucionária blanca. A comprovação dessa hipótese encontrei nas imagens da época, onde a maioria das fotografias mostram os libaneses ostentando o simbólico lenço branco dos revolucionários de Aparício Saraiva. Mais tarde, os imigrantes e seus descendentes também iriam aderir às fileiras do Partido Colorado.
A segunda metade do século 20 encontraria os mascates já como respeitados cidadãos e suas mercadorias objeto de desejo da comunidade rural. Sujeitos transformadores do cotidiano pampeano, antes dos mercadores árabes, os artigos de consumo familiar eram escolhidos e comprados pelos chefes de família. Nesse sentido, os libaneses contribuíram para a inclusão das mulheres no universo consumista da região da campanha. Mais tarde, os vendedores de caches tornaram-se donos de lojas nos vilarejos, contribuindo decisivamente na formação de cidades, como é o caso de Tranqueras.

Texto apresentado por Liane Chipollino Aseff no Festival Sul-Americano da Cultura Árabe, que acontece até o dia 31 de março em São Paulo. O texto integral fará parte de um livro sobre cultura árabe na América do Sul, abordada em variados aspectos, que será lançado durante o evento. Na foto, a tradicional publicidade da Casa Chein, presente na memória dos santanenses.


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