sábado, 15 de maio de 2010

1949: dias de luta no Frigorífico Armour


A greve no Frigorífico Armour arrebentou em abril de 1949. A polarização entre capital e trabalho extrapolava os limites da negociação, e alguns dos principais líderes do movimento foram presos. Na edição de segunda-feira, 4 de abril, o jornal O Republicano, porta-voz da UDN local, publicava: “Como vinha sendo esperado de ha muito, finalmente 6.a feira última irrompeu o movimento grevista no Frigorífico Armour desta cidade, sob o pretexto de pleitear o aumento de salários dos operários daquele Frigorífico e contra o desconto do Imposto Sindical, mas, na realidade, servindo aos desígnios revolucionários e subversivos dos comunistas, que procuram acima de tudo a anarquia, a desordem e a desharmonia social. O movimento teve uma longa preparação psicológica, através da imprensa comunista, da distribuição de boletins subversivos, e da atuação desenvolvida pelos vereadores comunistas Lucio Soares Netto e Solon pereira Netto, na Câmara Municipal, procurando da tribuna daquela Câmara agitar os meios operários e sindicais e justificar o direito de greve. Porque a greve, é preciso que se diga, embora uma faculdade constitucional, por não ser de auto-aplicação, e depender de regulamentação legal, praticamente não existe em nosso país”. Era voz corrente na cidade de que os líderes grevistas presos seriam levados para Porto Alegre. Na tensão pulsante daquelas horas, os companheiros remanescentes, entre eles Lucio Soares Neto, secretário do partido, e Hugo Nekesaurt, braço direito da militância, tramavam a reação. Escondidos em um fundo de quintal de uma modesta casa nas cercanias no frigorífico, junto a um chiqueiro de porcos, varavam a noite despistando a polícia, correndo risco de vida. Hugo recorda: “Estávamos nos fundos de uma casa de gente requetepobre. E de madrugada é que se deu o caos. As mulheres dos companheiros presos foram exigir, chorando, uma solução. Se dizia que iam ser levados para Porto Alegre no trem que saía de manhã e ninguém sabia o que podia acontecer”.
Pressionado, Lucio não resistiu ao apelo desconcertante das companheiras, angustiadas pela incerteza da luta e o que poderia acontecer aos seus maridos. De súbito, determinou a Hugo mais uma das missões quase suicidas, que já faziam parte do cotidiano da luta. É o velho militante comunista, sobrevivente daquelas décadas radicalizadas, que rememora: “No portão do Armour a greve tava fervendo, miles de personas não? quase dentro da fábrica. E o Lúcio me manda a mim que vá ao bairro Wilson, na estação ferroviária, a conquistar brigando a liberdade dos comunistas que iam seguir preso. E digo, e vou só? Sim, você vai no Armour, pega gente no portão e vai lá, o trem vai parar na estação do Wilson, você sobe no último vagão, passa por todos e manda que eles desçam. Mas não era para dizer aos companheiros qual era a missão que o partido mandou, só quando chegasse no trem. Aí caminhamos uns cinco ou seis quilômetros pela via férrea, e quando chego e digo olha, nós vamos fazer o seguinte, vamos ver se recuperamos a liberdade dos nossos companheiros, todos deram volta, uns cinco ou seis, e eu fiquei sozinho.Agora imagina, tinham que levar gente muito bem armada para fazer isso, e eu com um revólver 32 e sozinho”.
Hugo não desertou. Esperou o trem, e conforme o combinado com Lucio, ofereceu-se ao sacrifício pela liberdade dos companheiros. Nem que fosse à bala iria tirar dali Felício, Aladim, Horacílio, Pedro e Adair. Também deviam estar no trem o Juvelino, o Nazário, o Joventino, o Antônio, o Ernesto e o Toríbio. Com a arma em punho, dissimulada no bolso, percorreu os vagões em intermináveis minutos. Mais uma vez, a sorte o acompanhou. O conflito fora adiado. Os companheiros ficaram detidos na delegacia, de onde só sairiam depois de sumariamente demitidos do frigorífico.
Hugo desceu em Palomas e empreendeu uma arriscada caminhada rumo ao centro do conflito, novamente. Enquanto percorria os quilômetros que o separavam da cidade, da fábrica e dos grevistas, pensava na peculiaridade da luta. Mal poderia supor que pouco mais de um ano depois veria quatro de seus companheiros chacinados em frente ao Parque Internacional. Quem observasse aquele homem caminhando pelos trilhos; obstinado, cansado, envolvido até a raiz na luta social, não poderia supor que a luz daquela manhã outonal iluminava um idealista que pouco se importava com as privações que o combate impunha. Conforme bem notou o historiador Jorge Ferreira, para os comunistas “amargurado era aquele que não sabia as origens de seu sofrimento, infeliz era o operário alienado que desconhecia as razões de sua miséria, sacrificado era o camponês que nascia e morria faminto acreditando na vontade de Deus; sofrido era o pequeno-burguês em sua vã corrida para alcançar os capitalistas. Para um autêntico revolucionário, o sofrimento era um sentimento perturbador tão somente para aquele que ignorava as matrizes de suas dores”.
Para Hugo, ser revolucionário era viver a plenitude da moral comunista, que preconizava a destruição de uma ordem social desigual e farta de valores injustos. Foi assim que viveu intensamente as transformações políticas que sacudiram o século 20, refletidas nas batalhas operárias de uma fronteira desigual, marcada pela luta de classes. Um tempo em que ser comunista bastava para abrir as portas da frente e dos fundos da casa. Virtude que não se questionava. Quando guri, morador das cercanias da charqueada São Paulo, conheceu Santos Soares, secretário do partido e legítimo líder do operariado santanense. Experimentou a grande transformação que o fez comunista de corpo e alma quando um vizinho o fez ler uma carta em que Olga Benario Prestes relatava a vida na prisão nazista. As agruras vividas pela pequenina filha de Olga e do líder Luis Carlos Prestes comoveram o jovem aprendiz de pedreiro e despertam para sempre um senso de justiça social que nunca mais abandonaria. Ao mesmo tempo, a guerra civil na Espanha incendiava os corações operários, era preciso tomar uma posição, mudar o mundo enquanto era tempo!
Mais tarde, sua ligação com Lucio Soares Neto, que assumira a secretaria do partido no final dos anos 40, seria de altos e baixos. Os unia uma obsessão pela luta operária, pela justiça social, o afronte aos poderosos da oligarquia local e aos gringos do frigorífico. Os afastava, no entanto, uma classe distinta. Hugo questionava alguns valores que creditava a origem pequeno burguesa de Lúcio, e isso constantemente os levava a posições conflitantes. Porém, como soldado da causa, cumpria as ordens que vinham do líder partidário, embora muitas vezes desconfiasse de suas reais intenções: “Me colocava em missões que seguramente eu morreria, mas não morri nunca!”. Em alguns momentos, a paranóia que rondava a luta fazia Hugo crer que Lucio o achava um elemento da polícia, plantado no partido. Só podia ser isso. “Me perseguiu porque achava que eu estava vendido para a polícia, que eu não podia ser tão inteligente assim!”. Entre Lúcio e Santos Soares, Hugo via quilômetros de distância. Para ele, um era o legítimo “obrero”, o outro “um burguês que atuava como caudilho”. Ainda assim, o unia a Lucio o cotidiano do partido e a paixão revolucionária, que alimentava uma insólita e fiel amizade. Admirava a trajetória do brilhante advogado em defesa dos pobres e o passado que o ligava a Aliança Nacional Libertadora, o exílio no Estado Novo, e a rejeição em comum que nutriam por Getúlio Vargas.
Não que Hugo fosse frontalmente contra os pequenos burgueses ou os caudilhos. Admirava Don Pedro Irigoyen, o dono do saladeiro, que soube ludibriar os gringos que pensavam ter comprado o terreno do Armour com direito aos eucaliptos da avenida, semeados por ele. Lembra com indisfarçável orgulho da frase proferida tantas vezes por Don Pedro: “Mientras exista Pedro Irigoyen, y sea dueño del saladero, nunca van a ver un milico en el portón”. A hombridade da luta política também acendia a admiração ao caudilho maior, Flores da Cunha. “Gosto do Flores, apesar do Flores ser da UDN , porque era um homem romântico, humano, chorava por qualquer coisa. E era o valente número um não?”. A relação com o Frigorífico passou da admiração para uma crescente consciência de classe. Quando olha para trás e revê a luta que teve como palco o frigorífico, Hugo reflete sobre os prós e os contras que o desenvolvimento capitalista impôs naquele momento : “Isso eu penso até hoje, quando perco o sono. É a evolução do mundo, claro, eram uns ladrões, sempre foram uns ladrões, mas teve uma etapa em que eles ajudaram os povos, verdade? Porque quer indústria melhor do que um frigorífico para trabalhar? As pessoas aqui de Santana trabalhavam em campanha, grátis, por comida. Faziam muro de pedra, quando não havia alambrado. E eu faço uma comparação do Frigorífico com um filho. Você cria o seu filho, ajuda, mas ele cresce e casa e você deixa de ajudar. Ele já é livre. E com os capitalistas sucede a mesma coisa, a princípio é encantador trabalhar em um frigorífico, mas depois um se dá conta de que é roubado”.

Este texto poderia se chamar "Crônica para Hugo", pois é também uma homenagem a este velho militante comunista, meu amigo e fonte de tantos relatos fundamentais para a compreensão de uma época de lutas na fronteira. Na foto tirada no inverno de 2009, o que sobrou do Frigorífico Armour, em Santana do Livramento (RS). clique na foto para ampliá-la

2 comentários:

  1. Tenho a honra de ter convivido com Hugo por muito tempo.
    Nubem A C Medeiros
    66 anos
    PCB - PORTO ALEGRE

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  2. Matilde Brodt,conheci visitei a Cidade no final de Setembro-2015.Fiquei encantada com a área do Frigorifico.E agora sabendo da historia daquela região,me sinto muito feliz! Matilde Brodt 57anos Viamão|RS

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