segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Sob as cinzas de Cruz e Sousa



O cineasta Joel Zito Araújo é um dos mais ativos produtores de conteúdo audiovisual sobre as relações raciais na sociedade brasileira. Autor de documentários de referência como São Paulo abraça Mandela (1991), Retrato em preto e branco (1993), Ondas brancas nas pupilas pretas (1995) e A exceção e a regra (1997), venceu o festival É Tudo Verdade, em 2001, com A negação do Brasil, onde aborda o papel conferido aos atores negros na teledramaturgia brasileira, dos anos 50 até hoje. Seu primeiro longa, As Filhas do Vento, ganhou o 32º Festival de Gramado e recebeu críticas positivas no The New York Times, após a première mundial, em Nova Iorque, onde participou a convite do Museu de Arte Moderna (MoMA). O currículo invejável, no entanto, não afastou Joel Zito da militância diária e da defesa dos valores democráticos e inclusivos na sociedade  brasileira. Quis o destino que no dia 20 de Novembro, quando se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, Joel Zito estivesse no Museu Cruz e Sousa, em Florianópolis, para participar de uma série de eventos alusivos a data, mas que foram cancelados pelo Governo do Estado no último momento. A seguir, publicamos a primeira parte de uma entrevista com o cineasta, realizada nos jardins do Palácio, a poucos metros dos restos mortais do poeta simbolista Cruz e Sousa.


JM - Você esteve ontem na Universidade Federal de Santa Catarina, apresentando A negação do Brasil e debatendo com estudantes. Hoje, no Dia da Consciência Negra, depara-se com um revés na programação do evento, e pouquíssima divulgação da data entre os órgãos de imprensa da capital. A que atribui a escassa importância conferida a uma data tão significativa ?

Joel Zito Araújo – Eu quero crer que é irresponsabilidade mesmo. A melhor hipótese, e a mais otimista das hipóteses para avaliar isso seria a irresponsabilidade.  Não só a imprensa, como o cancelamento dos eventos pelo governo do estado, é sintomático. Eu poderia relevar isso seu eu não soubesse que na Universidade de Santa Catarina existem grupos neonazistas cada vez mais ativos, em cursos importantes como medicina. E não só entre alunos, mas com professor também. Eu relevaria isso se eu não soubesse que no interior do estado tem cidade que comemora o nascimento do Hitler. Eu relevaria isso se eu não soubesse que Santa Catarina é o estado que  mais baixa conteúdos neonazistas na internet.

Mas essa é a realidade. Então porque que o governo do estado, porque que a prefeitura, porque a mídia local  não entende que a importância de comemorar um dia da consciência negra significa incluir Santa Catarina no Brasil, incluir em um país onde os afrodescendentes são 52% da população. Há que se entender isso tendo em vista que nas últimas eleições surgiu uma direita retrógrada, propondo a separação do Brasil do norte e do sul. Por isso eu quero crer que isso é apenas irresponsabilidade, que não existe por trás disso uma intencionalidade perversa. Como sou um cara otimista eu aposto que é apenas irresponsabilidade, imaturidade do governo municipal e estadual, da mídia local, diante de uma questão grave que estamos vivendo. Porque, de fato, eles estão alimentando no sul, na população de Santa Catarina, que é de maioria branca, uma arrogância racista de superioridade. 

Ao invés de alimentar um orgulho de participar de um país que é da diversidade, composto por negros, índios, brancos de Portugal, brancos da Alemanha, brancos da França, de vários locais da europa, asiáticos.  Então, ao invés de alimentar esse orgulho e fazer com que no futuro a gente seja um exemplo de democracia racial, com esse tipo de irresponsabilidade eles estão fomentando uma separação, no ódio, fomentando na população de Santa Catarina uma sensação de ser superior ao resto do Brasil e não integrada ao resto do Brasil. Então eu assisto tudo isso com uma sensação muito ruim e com muita gravidade.

JM - Você poderia destacar quais foram os grandes momentos de empoderamento da população negra no Brasil e como vivemos hoje a condição de inclusão social dessa população?  

Joel Zito Araújo - A população negra, através de seus líderes, de seus intelectuais, de seus artistas, tiveram momentos históricos, digamos, de pico, de afirmação, no Brasil. Um momento histórico que agora estamos comemorando é a resistência, por volta de um século, do Quilombo de Palmares, por Zumbi. Isso nos séculos 16 e 17. Depois nós tivemos outro movimento nacional, de muita magnitude, que foi o movimento abolicionista. Entre as grandes lideranças, destaca-se José do Patrocínio. Um negro nascido na cidade de Campos do Goytacazes, jornalista, mas que junto com ele tinha outro negro, o André Rebouças. Os irmãos Rebouças, os engenheiros irmãos Rebouças. Muita gente não sabe que os túneis Rebouças do Rio e de São Paulo são homenagens a esses engenheiros negros, que eram engenheiros de ponta naquela época, com cursos na Europa. Então o movimento abolicionista teve essas grandes lideranças.

Depois, nos anos 30, você vai ter um novo grande pico, que foi a Frente Negra Brasileira, que surgiu em São Paulo, mas se espalhou pelo país inteiro, e que formou um partido negro. Um partido de curta existência porque o Getúlio Vargas proibiu a existência. Por fim, nós tivemos esse novo movimento, que nós vivemos até hoje, que é o Movimento Negro Unificado, que surgiu no final dos anos 70, e embora ele tenha se desarticulado como movimento único, é responsável pelas conquistas recentes, como cotas, terra para quilombos e tudo isso.

JM - Se compararmos a experiência do movimento negro brasileiro com o norte americano é possível traçar similaridades e divergências?

Joel Zito Araújo – Temos em comum o fato de que ambas as sociedades foram escravocratas, e sua riqueza baseada na exploração do homem negro e da mulher negra. E sociedades que até hoje vivem o drama de não terem adotado no período de abolição, medidas de ascensão social do negro. Então essas duas sociedades vivem o problema da extrema desigualdade entre negros e brancos. Só que a colonização norte-americana foi de origem inglesa, puritana, protestante. Que não acreditava e não queria a miscigenação entre negros e brancos. Então é uma sociedade muito apartada até hoje, que não acredita nessa possibilidade. E a dureza do apartheid norte-americano provocou um movimento mais contundente do que o movimento brasileiro. Isso fez com que nos anos 50 surgisse o movimento de direitos civis, que tem início no ato simbólico daquela senhora, Rosa Parks, de se negar a sentar em um lugar segregado no ônibus, e que teve o Martin Luther King, como a primeira grande liderança. Mas depois veio o Malcom X, os Panteras Negras, entre outros. 

Em minha opinião esse profundo apartheid provocou conquistas muito mais rápidas do que no Brasil. Os negros norte-americanos são 15% da população, mas se você olhar a televisão e o cinema norte-americano você tem a impressão de que os Estados Unidos tem os 52% de população negra brasileira, e se você olhar a televisão e o cinema brasileiro parece que nós é que temos os 15% deles. Aqui a estratégia de miscigenação como estratégia de poder desarticulou o movimento negro. E provoca numa parcela ainda grande da população negra a baixa autoestima por ser negro, ou um desejo de branqueamento, o que desarticula as conquistas sociais. Apesar disso, nós temos cada vez mais conquistas. 

Eu acho que a maior conquista dos últimos tempos foi quando nós começamos a adotar, por pressão do movimento negro, as politicas afirmativas que beneficiaram não só os negros, mas a população indígena e os brancos pobres também. As cotas são para escolas públicas, portanto também beneficia o jovem branco pobre. Enfim, nós vivemos um momento de conquistas, mas comparativo aos Estados Unidos eu diria que estamos ainda a uns 20 anos de distância do nível de conquista de lá, comparando especialmente naquilo que é minha especialidade, que é a leitura sobre a representação do negro na mídia e na televisão.

Um comentário:

  1. Olá, Marlon! Gosaria de contacta-lo para evento futuro no DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA em especial sobre o Vídeo-documentário “Caminhos de Valda”, duração: 26 minutos. De autoria do jornalista e historiador Marlon Aseff. Favor remeter informações para prsc-memorial@mpf.mp.br

    ResponderExcluir