quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Máscaras e lugares de Valda Costa



Diz-se que os olhos são os espelhos da alma, pois refletem e deixam refletir as sensações e os desejos, como aponta Chauí (1988). Segundo Leonardo da Vinci, os olhos são a janela do corpo, “por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento” (CHAUÍ, 1988, p. 31). O poder dos olhos em Valda Costa está na constância melancólica, é quase uma marca registrada da artista. Para aqueles que a conheceram, como Eliane Oliveira, os olhos dos personagens de Valda são os olhos dela própria, que tais quais os do seu pai, “seu” Timóteo, tinham esse ar de tristeza e melancolia”[1]
O paradoxo é a marca. A obra está inserida em muitos lugares e, ao mesmo tempo, em nenhum lugar. Talvez esteja num entre-lugar. Valda viveu no limiar[2]: a exuberância das formas e das cores é compartilhada com a tristeza e a melancolia fixada nos traços e, muitas vezes, no corpo de suas figuras, que são, provavelmente, desdobramentos da artista, já que possuem os mesmos padrões visuais. São esses os vários duplos de Valda Costa? Será uma tipologia (séries) criada propositalmente pela artista, que, segundo consta, foi a primeira[3] a pintar o cotidiano de negros e negras no Estado de Santa Catarina? 

 A produção de Valda Costa indica esse possível caminho, já que há repetição de tipos ou séries. A palavra “série”, quando aplicada à pintura, pode ser descrita para as obras encomendadas por um patrono, cujo tema dá unidade ao grupo, e que são expostas em conjunto, ou para as obras realizadas ao mesmo tempo[4] com procedimentos técnicos semelhantes a partir de motivos idênticos ou similares, desde que a série seja intencionada pelo artista e exibida em conjunto.

Em Valda Costa, as séries se referem[5] a uma ordenação do seu mundo, na repetição de tipos, na construção de possíveis versões de si. Segundo Lacan (1998, p. 448-453), a repetição de um mesmo, ao ser repetido, inscreve-se como distinto, já que a repetição possui o estatuto de uma “intrusão conceitual”, de uma insistência significante. Os elementos se repetem para fazer aparecer deliberadamente o que não se mostra. Valda se repetiu, se mostrou e se ocultou[6] nas suas telas, pintou vida desejada e vivida, narrou através das tintas.

 Negros, jovens, fortes, belos. Homens duplicados, homens dos desejos de Valda: seus filhos, seus amores. Valda amava os negros. Todo homem afrodescendente, “de porte”, que chegava ou passava por Florianópolis ela namorava. Eram modelos, jogadores de futebol, músicos, artistas. Em depoimento, o artista plástico Décio David[7] disse que “Valda Costa teve vários namorados, mas nenhuma paixão foi igual à que ela teve pelo Marcão[8]”.

Várias vidas, várias faces, várias telas (ou seriam palcos?). Por um lado, como Nina, foi mãe, filha, esposa. Como Vivalda Teresinha da Costa trabalhou como enfermeira[9] e cabeleireira, levando uma vida simples, sem brilho, sem glamour. Mas, por outro, também como Valda Costa (como passou a assinar o seu nome nas telas), conheceu o mundo da fama, teve o respaldo de políticos, críticos e marchands, comprou carro e apartamento, teve luxo e reconhecimento. Pediu de tudo e para todos, viveu de favores e teve muitos amores. Mas somente um a levou à loucura. Qual dessas vidas lhe pertencia?[10]

Ninfas negras, jovens, belas e sensuais. Amantes da música e das artes. As faces retratadas são a mesma face, as máscaras são diversas. O vestido listrado saiu muitas vezes do guarda-roupa da memória, assim como os acessórios. O retrato (ou auto-retrato) é pintado (na maioria das vezes em primeiro plano) por baixo de uma camada de tinta (ou seria pó-de-arroz?) que mascara a face. O pincel “é assim como um bisturi. Será também uma navalha, um raspador, e por que não, uma picareta? Isto é também um trabalho de arqueologia” (saramago, 1999). 

Valda incansavelmente retirou e recolocou camadas de tintas, se fez em arquivo dando visibilidade às suas diversas faces. Pintou tudo o que pode e desejou ver e dizer (ou mesmo esconder) de si, se construiu e reconstruiu na vida paralela que criou (pintou) para si.


Texto extraído da Tese “Para uma história das sensibilidades e das percepções: Vida e Obra em Valda Costa”, de Jacqueline Wildi Lins.






[1] Eliane Oliveira, funcionária pública e amiga de Valda Costa, freqüentou a casa da artista no Morro do Mocotó e depois dividiu com ela um apartamento no bairro Itaguaçu durante dois anos, na década de 1980. Em entrevista, disse que só deixou de morar com a amiga depois que Valda conheceu Marco Antônio Riobranco dos Santos (OLIVEIRA, 2007).
[2] Valda Costa sempre viveu no limiar, seja o da fama ou o do total esquecimento, o da riqueza ou o da pobreza, o da alegria ou o da tristeza, o do reconhecimento ou o da rejeição, entre outros.
[3] Martinho de Haro, entre outros artistas de Santa Catarina, já haviam inserido o morro e as mulatas em suas temáticas, mas com uma conotação mais vinculada à exuberância, ao Carnaval e à sensualidade.
[4] No caso de Valda Costa, acredito que não houve exposição em conjunto de séries. Todas as exposições elencadas em seu currículo foram investigadas, e nenhum documento foi encontrado. Além do MASC, as demais instituições pesquisadas não possuem registros anteriores à década de 1990.
[5] Valda também realizava séries (ou, talvez, fosse mais conveniente dizer repetições de temas) por encomendas.
[6] Segundo o depoimento de José Ricardo Ramos de Souza, proprietário da molduraria ARTCA (molduraria que emoldurou muitas obras de Valda), Valda se escondia atrás de suas telas, criava outras Valdas, duplos dela mesma.
[7] Décio David, artista plástico, pintor autodidata, amigo de Valda Costa, de quem possui grande influência estilística. É coordenador do Núcleo de Estudos Negros (NEN). Segundo Décio, Marcão foi a grande paixão de Valda Costa, negro bonito vindo do Rio Grande do Sul e pai de cinco dos seis filhos da artista (DAVID, 2005).
[8] Marco Antônio Riobranco dos Santos viveu muitos anos com Valda Costa, e o casal teve cinco filhos, uma menina e quatro rapazes. Marcão, como era conhecido, é gaúcho e chegou em Florianópolis para trabalhar como modelo (manequim). Teve problemas com a Justiça e foi por diversas vezes preso. Cursou, na Universidade Federal de Santa Catarina, Geografia e Filosofia, não terminou nenhum dos dois cursos (abandonou o primeiro em 1996 e o segundo em 2002). Hoje é aposentado por invalidez pela Universidade Federal de Santa Catarina, onde trabalhou como jardineiro alocado na Prefeitura do Campus.
[9] Segundo depoimento do Dr. Gerent, médico do Hospital de Caridade desde os anos 1970, Valda Costa trabalhava no setor de serviços gerais daquela instituição (GERENT, 2007).
[10] Talvez como o personagem Omar Kayan, de Fernando Pessoa, Valda tivesse muitas e diferentes personalidades: “Omar tinha uma personalidade; eu, feliz ou infelizmente, não tenho nenhuma. Do que sou numa hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci. Quem, como Omar, é quem é, vive num só mundo, que é o externo, mas num sucessivo e diverso mundo interno. A sua filosofia, ainda que queira ser a mesma que a de Omar, forçosamente o não poderá ser. Assim, sem que deveras o queira, tenho em mim, como se fossem almas, as filosofias que critique; Omar podia rejeitar todas, pois lhes eram externas, não as posso eu rejeitar, porque são eu” (PESSOA, 1999, p. 395).

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