sábado, 1 de novembro de 2014

Por las calles de Recarey: a Rivera mítica do poeta



 A leitura da obra do escritor riverense Hipólito Zas Recarey nos mostra um narrador pródigo de memórias e um historiador conectado com seu tempo. Muito além da literatura – sua obra nos traz as transformações culturais, sociais, políticas e econômicas de sua amada Rivera. Hipolito era filho de libaneses, criado em meio à cultura árabe dos primeiros imigrantes, mas também castelhana e “gaucha”. Sua obra, portanto, será o produto dessa miscigenação cultural. Ler seus escritos é retornar ao tempo, a uma época em que Rivera e a fronteira fluíam, respirando ares do velho mundo.

As histórias reunidas por Recarey tem em comum o tema da identidade regional, onde o memorialista leva o leitor às profundezas do ser fronteiriço. E o faz com maestria, quando nos convida a percorrer as páginas de seu livro ”Rivera Fronteiriza e Romântica”, e também em “Cerro del marco, 30 aquarelas”. Ali nos deparamos com uma memória mágica, impregnada pelas calles daquela Rivera antiga, perdida entre personagens vívidos, flanando entre os cafés literários, as casas comerciais e os patrimônios da cultura local das primeiras décadas do século 20. Tempos de vigor cultural, econômico e de refinada cena boêmia. Através de pequenas histórias, o escritor vai tecendo a identidade de sua cultuada cidade, mas também da vizinha Santana.


A fronteira está constantemente dentro do poeta, como um órgão vital. Buscando celebrar e perpetuar esse lugar coletivo da memória, ele indaga o que é a linha? Não é uma tarefa fácil defini-la. Para ele a divisa entre os dois países não se encontra na geografia, na diplomacia, senão na alma dos seres que habitam o lugar. A linha divisória possui distintos significados para cada período de sua existência: infância, juventude e maturidade. Uma zona de características variáveis, conforme o desenvolvimento da região. A divisa  o leva ao inicio de tudo, ao lugar onde todos desfrutavam o espaço coletivo, como o apaixonante Areial - um canavial de bambus que se estendia até o Fortin -  lugar mágico e maldito, conforme as lembranças de cada um.


Território de uma infância repleta de aventuras, de troca de figurinhas, campeonato de pedradas, pandorgas e circos. A adolescência transforma-se em espaço de desconfiança, curiosidade e conquista, pois ”a Leste das esbeltas palmeiras, em direção ao Cerro do Marco, encontram-se os quiosques Ribot, Biquita, o jogo de bocha e os ruivos chopps Gazapina, circulando generosos entre os jogadores e expectadores”. As cores da linha noturna definem ao jovem poeta que é chegado a hora de entrar ao mundo dos homens que o invade, levando-o a filmes mudos do Cinema Internacional, aos cafés e rodas de amigos, as comidas das cantinas com menus baianos e aos mistérios do mundo dos Cabarés.

A cidade que Recarey nos mostra aparece então, melancólica e distante. É nesse momento que o memorialista busca o reencontro com sua Rivera, em pleno processo de desfiguração daquele tempo dos gloriosos dias de sua juventude, com os cafés, os amigos, o basquete e os clubes. Na maturidade, acerca-se da cidade imbuído de escrever suas memórias , e deixar seu testamento às novas gerações. Empenhado nesta difícil tarefa, Recarey inicialmente transporta seu leitor para a mítica fronteira, onde Rivera e Santana ainda são povoados recém oficializados a cidade.


O autor, deliberadamente, como nas estórias de fábulas infantis, encanta, ao iniciar seus relatos com a frase: “Hace ya muchos años” quando se faz necessário, direcionando o leitor ao fato histórico de grande importância, como os escolhidos para apresentar o Cerro do Marco, os personagens riverenses, a Plaza Internacional ou o muy nuestro y querido la Bica.
 

A Bica d´agua, onde os riverenses costumavam aprovisionar-se de água para suas casas é tratada como uma personagem feminina, que possui alma, o bem maior daquele lugar, pois é  “aquella pequeña maravilla de la naturaleza, misteriosa e generosa” que abastece e revigora a população da jovem cidade. A maioria de suas obras foram publicadas nos anos 80, quando o autor atingia a maturidade, levando-nos a refletir o motivo que o levou a escrever suas reminiscências nessa década. Sua Rivera estaria perdendo as feições daquela antiga cidade? Seria a chegada das construtoras e seus monumentos de vários andares trazendo o convite da “modernidade”? Estaria a sua Santana agonizando economicamente, perdendo seu patrimônio histórico, em uma fase de baixa estima?


O poeta recorria as ruas de Santana e Rivera para buscar uma resposta! Havia deixado a fronteira em meados dos anos 40, apogeu da cena cultural das cidades para ir estudar na capital, Montevideo, e quando retornou algumas décadas mais tarde, avistaria o caos urbano!

Seus escritos tão melancólicos e urgentes arrastam o leitor mais sensível a submergir naquela outra cidade, provocando sensações anacrônicas. Ouvia o Cerro do Marco, seu altar fronteiriço, gemer de dor ao ser amputado e desfigurado; o apito da usina de luz,


O farfalhar dos cristais e as conversas ao longe, nas mesas de jogo do Casino Internacional.  Ainda podemos espiar o Pinga anunciando suas balas de Mocotó no antigo Areial, aceitando o convite do autor para uma viagem ao tempo. Recarey retorna a infância, e ouvimos a trombeta do Pinga ressoar pelo Areial. Pronto, não faltava mais nada na paisagem fronteiriça! Embora para a maioria das pessoas Pinga fosse apenas um vendedor ambulante, para o cronista a era “más, mucho mas”. Pinga refletia a alegria, a alma que vivia comodamente em um corpo que recorria os quatro rincões da fronteira. Talvez fosse essa essência que o aproximava do carismático vendedor, pois para o cronista os “andarilhos” apresentavam alto valor cultural dentro da comunidade, eram sábios, ídolos que conheciam a fundo a alma dos habitantes e dos lugares. De suas lembranças emergem figuras populares inesquecíveis daquela Rivera, nos divertimos ouvindo Maria dos cachorros maldizer os rapazes que a perseguem pelas ruas com suas brincadeiras inocentes.


Recarey nasceu em uma cidade de fluência cultural e econômica distinta, que atualmente sequer podemos encontrar seus rastros. Viveu intensamente os anos dos ateneos e cafés literários, Cassinos-Cabarés, clubes desportivos e também da apaixonante política uruguaia e fronteiriça. Foi fundador do lendário Clube Esportivo Atlas, quando os rapazes de sua geração estavam persuadidos em ser “homens-ação”, acompanhando o chamado dos anos pós Primeira Guerra.


Convivendo com a geração anterior a sua, participou da formação do clube literário Ateneo de Rivera, com os mestres fundadores, Maria Luiza Larena, Augustin Bissio, Olintho Maria Simões, Alfredo Lepro e Tejera. No Clube Uruguay, Olintho Simões, solidário e apaixonado pela literatura, costumava receber os rascunhos de jovens poetas. Entre os anos 30 e 60, havia reuniões literárias nos cafés da Sarandí, lembrados pelo jornalista Ariel Pereyra como verdadeiros templos literários.


A cultura efervescente formava uma geração consistente de novos e futuros escritores. Para esses jovens ávidos pela obra de mestres da literatura, a rotina era inalterada: como num ritual, após o almoço e final da tarde o encontro marcado dava-se nos Cafés Sorocabana, a Confeitaria City e no Clube Uruguai. O Sorocabana, reunia médicos, como Hugulino Andrade, Dr.Vieira, Carambula, Joãozinho, advogados e empresários como Paco e José Siñeriz, Gallego, Irigoyen, Braga, Galo, Thomazinho Albornoz, Lucio Soares Neto, funcionários do comércio e claro, poetas como Olintho Simões.


Pacientes, ouviam e sugeriam as poesias e contos dos jovens aprendizes, como os irmãos Zas. Dependendo do fervor das conversas e debates, que podiam girar em torno dos mais diversos assuntos - da poesia a ciência, da política a cultura universal- os cafés proporcionavam momentos de deleite para uma plateia composta de comerciários e transeuntes, que se aglomeravam em torno das mesas de conversas, que reuniam os poetas, os políticos ou os médicos. Homens das mais variadas vertentes, colorados, blancos, socialistas e comunistas dividiam a mesma mesa.  

Recarey emerge no tempo e, como um fantasma andando pelas calles desertas daquela Rivera, vibrante e tomada de lugares, de círculos literários, da cultura e do lazer, aponta-nos seus valiosos altares. Podemos escutá-lo dizer: “Yo quiero mucho a Rivera!”

Liane Chipollino Aseff
texto apresentado no Seminário Una Mirada al Medio Oriente, Cultura, Religiosidad y Politica, Unipampa- Campus Santana do Livramento - RS. 13 de Outubro de 2014.


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