sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Sobre história e novos eufemismos



A partir da divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade – CNV, sobre os crimes praticados pelo o Estado brasileiro durante a ditadura, e sua posterior repercussão na grande imprensa aqui no Brasil, fiz algumas reflexões: infelizmente, como a memória histórica e social ainda é um problema sério que temos que resolver. Ela simplesmente é apagada ou omitida da maioria do povo brasileiro. E de alguma forma precisamos tentar entender como isso é feito.

Historicamente, é notório que o Brasil é um país sem referências, elas são apagadas da memória coletiva por ação regular do estado, que começa a fazer isso de forma processual a partir do Século XX, com o apoio da mídia controlada pelas oligarquias políticas. Cito a Abolição em que a população negra foi jogada ao relento; a proclamação da República, um acordo construído a partir de acordos oligárquicos em represália à própria Abolição; a Guerra de Canudos aonde se negava a revolta da miséria brasileira com extermínio de quem bradava contra isso: o povo; a revolta do Contestado; Revolta da Chibata contra os maus-tratos medievais denunciados por Antônio Cândido contra o baixo oficialato da Marinha; greves de trabalhadores anarquistas que eram imigrantes italianos, espanhóis e portugueses no Rio e em São Paulo  em tecelagens e tantos outros episódios da história brasileira esquecidos propositalmente. Isso é controle social.

 Desta forma, é sim possível demonstrar como a nossa elite faz uma verdadeira “lobotomia” e apaga tudo. E esse processo se repete mais uma vez após a divulgação deste relatório. De imediato houve uma orquestração midiática para a uma ‘eufemização’ dos sanguinários atos da ditadura civil militar iniciada em primeiro de abril de 1964.

Percebo que essa é uma pratica habitual em nossa sociedade. Dou mais um exemplo, a partir do que acontece aqui no Rio de Janeiro. Antes mesmo da implantação das UPPs essa ‘lobotomia’ já acontecia de forma que é muito intensa no viés cultural e religioso, nas favelas e morros cariocas.  Hoje em dia, o samba aqui é agora restrito a uma classe mais abastada em áreas como Botafogo e alguns pontos restritos do Centro e Zona Norte Carioca. Aquele “samba da favela e do morro” acabou.  Imaginemos a figura do malandro que saía de sua sessão de Umbanda ou Candomblé na parte da manhã, que ia para o bar batucar na sua caixinha de fósforo em plena alvorada do dia, como cantava Cartola em seus versos. 

Ali ele compunha sua obra musical depois de se cuidar espiritualmente, e bebia uma cerveja naquela birosca. Ali mesmo criava e pensava um samba com referência naquele batuque africano, como também com maestria faziam Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, entre outros gênios da música.

Hoje, praticamente, acabou essa figura que frequentava os terreiros nessas “Pequenas Áfricas” como costuma dizer o pesquisador Luiz Antônio Simas.  Nesses recantos, agora em maioria, só existem igrejas evangélicas. Assim, os cultos afro-brasileiros foram aos poucos sendo expulsos destas áreas, pelo tráfico, que se associou com essas igrejas, gerando um processo que elimina aos poucos essa ponte com a história da nossa ancestralidade africana, essa referência com o passado. 

Notem que esse processo de ‘lobotomia’ é práxis em nossa sociedade. Ela derruba nossas pontes com as memórias históricas e sociais do Brasil. Essa pode sim ser considerada uma razão para a nossa falta de memória. E é o que querem fazer com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade.


Por André Lobão – jornalista e escritor

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