Os
árabes não são estrangeiros em território rio grandense. A tese defendida pelo
escritor Manuelito de Ornellas já em 1948, mostrava como a presença desses
povos entre nós remonta, por outras vias, a primeira ocupação luso e espanhola,
que trazia em seu DNA a forte herança da presença mourisca na Península Ibérica
(beduínos, berberes e maragatos). Em sua obra clássica, Gaúchos e Beduínos, o
autor estabelece semelhanças entre a cultura gaúcha e árabe, examinando os
costumes, hábitos, vestimenta e tradições. Numa poética referência às culturas,
o escritor recorre aos hábitos comuns ao gaúcho do pampa e ao homem do deserto
para miscigenar e integrar as culturas.
Cogita-se
que o primeiro imigrante árabe sírio libanês chegou ao Rio da Prata, por volta
de 1868, na Argentina, porém a Direción General de Inmigracón recebeu o primeiro
registro oficial apenas a partir de 1887. No Uruguai, segundo o literato e
pesquisador uruguaio/libanês Antonio Seluja, teria chegado em 1879/80. Ao
chegarem no porto de Montevidéu, seguiram o protocolo dos emigrantes que tinham
sua alcunha acentuadamente árabe, para que adotassem nomes castelhanos.
Inicialmente entravam sem impedimentos, porém a partir de 1890, devido a grande
afluência de estrangeiros árabes, o governo uruguaio vai fechar a porta de entrada
no país. Era a resposta às consequências do surto imigratório em um país
pequeno e ainda muito ligado a atividade pecuária. O certo é que muitos
burlavam a nova lei e continuavam viajando clandestinamente.
A maioria dos imigrantes sírios e libaneses
que chegavam o porto de Montevidéu vieram de aldeias camponesas das montanhas
do interior do país. Eles saíam de suas pequenas aldeias e povoados,
localizados na região da atual Síria e Líbano, chamada naquele momento de Monte
Líbano.
São
variados os motivos que levaram os sírios-libaneses a deixar seu país, como o crescimento da agricultura e
a diminuição de atividades ligadas ao pastoreio, forçando uma urbanização maior,
ao mesmo tempo em que aumenta o controle
governamental sobre essa população. Na Grande Síria, a administração pública
vai dar preferência a camponeses assentados, que pagavam impostos e que estavam
sujeitos ao recrutamento militar. Por outro lado, se o aumento dessa
urbanização provocou um crescimento populacional, com o declínio das epidemias
e da fome, o crescimento econômico favorecia apenas a uma elite que estava
ligada ao governo e aos grandes capitais.
É um momento de muita desigualdade
social, e esse progresso, descontínuo e desigual entre as regiões, classes
sociais e grupos religiosos aprofundam o sentimento de busca por alternativas e
a emigração. A rejeição ao domínio turco-otomano, também pode explicar a saída
de algumas famílias, especialmente as cristãs-maronitas. Também tornou-se mais
forte a disputa entre cristãos e mulçumanos e entre as seitas maronitas e drusas,
que viviam na região montanhosa de monte Líbano. Não é por acaso, que a maioria
das famílias de pioneiros sírio e libaneses são do culto cristão maronita.
As famílias de descendentes dos
pioneiros que vivem hoje no Rio Grande do Sul e especialmente na região da
fronteira brasileiro-uruguaia, descendem de cristãos maronitas e em menor
quantidade de muçulmanos drusos. Também colaborou para isso o fato do império
otomano instituir em 1903 o alistamento obrigatório dos cristãos no Líbano para
auxiliar na guerra dos balcãs, fazendo com que muitos cristãos maronitas e
ortodoxos enviassem seus filhos para fora do país, fugindo dos dominadores
otomanos. Muitos intelectuais e profissionais liberais perseguidos pelo governo
buscaram o exílio nesse momento.
Quando
desciam dos navios, em uma travessia que durava cerca de três meses, eram
recebidos por algum parente, amigo ou veterano da comunidade libanesa que os
levava então para uma casa de acolhimento, localizada nos arredores do Porto de
Montevidéo, na Ciudad Vieja.
Geralmente
os viajantes ali se restabeleciam e enviavam notícias para a família que ficara
no Líbano. Alguns mais pobres alugavam um quarto, pois se sentiam seguros com
esta nova família de paisanos. Por
cerca de quinze dias, recuperavam-se, conheciam a cultura local, apreendiam o
básico da língua castelhana. Após dominar algumas palavras do espanhol,
aprendiam o valor dos pesos uruguaios e recebiam algumas mercadorias. Passado o
ritual inicial, com seus caixotes – os Katches - estavam prontos para explorar a campanha
uruguaia. Logo em seguida viajavam de trem até a cidade em que moravam seus contatos
familiares. Entretanto havia os que chegavam muito doentes, não conseguindo
passar pela fiscalização da Imigração. Estes eram levados por um funcionário da
alfândega ao Hospital, onde depois de curados, e contando com a ajuda de algum árabe
que traduzia seus documentos, eram embarcados de volta para a Argentina e de
lá, se não tivessem amigos influentes e parentes, para seu país de origem. Também
a entrada de estrangeiros provenientes da África e Índia não era estimulada
pelo governo uruguaio.
Muito
jovens solteiros viajavam em busca de uma independência econômica.
Aventuravam-se pelo interior da república uruguaia, tomando a promissora
campanha para si, vendendo variadas mercadorias, em busca da clientela que o
novo ofício exigia. No princípio foram vistos com receio pela população rural,
até que ganharam confiança e amizade da maioria das famílias da campanha. Sua
freguesia principal eram as mulheres e crianças que moravam nas estâncias ou
nas vilas próximas a elas. Também foram vítimas de violência, quando eram
assaltados na campanha, e discriminação devido a língua e origem oriental.
A partir
das primeiras décadas do novíssimo século que vinha à luz, as cidades da fronteira
se tornaram alvos novos para a maioria da população estrangeira que chegava às
capitais do Prata. Algo como “terra da prosperidade”. A comunidade libanesa estabelecida em
Montevidéu soube que Rivera convertera-se em centro aglutinador do comércio e
da emergente indústria da carne e do couro. A modernidade havia se instalado na
região com a introdução de serviços que favoreciam o franco desenvolvimento
daquela comunidade do interior da república: a estação ferroviária, os lampiões
para a iluminação pública, a telefonia, os liceus, constituíram-se em
significativos atrativos para os novos moradores.
Havia
muito tempo que o serviço dos correios atendia as cidades fronteiriças através
das diligências que costumavam romper os limites, em direção a cidades como
Bagé. A industrialização, por sua vez, agregou grande desenvolvimento cultural
e econômico para a região. Inicialmente, as charqueadas, depois os frigoríficos
estrangeiros excederam a mão de obra de trabalhadores locais, abrindo frentes
para operários capacitados, como os imigrantes espanhóis, italianos e
libaneses.
Porém,
se os europeus buscavam trabalhos sazonais nas indústrias, os árabes preferiam
a autonomia da atividade varejista, baseada na informalidade. A maioria dos
entrevistados nesta pesquisa se utilizaram da expressão liberdade para
justificar sua escolha pelo cotidiano do comércio ambulante, mesmo sob
condições de insegurança e intempérie. Entretanto, essa é uma das questões que
devem ser investigadas sob novas perspectivas, tendo em vista que nesse momento
a região foi tomada por intenso movimento de greves, liderada por anarquistas
espanhóis e italianos, quando então estava em
gestação uma classe operária nos países do Cone Sul.
Um
atrativo na região para os estrangeiros, era a economia vigorosa dos
frigoríficos de Santana do Livramento. O Frigorífico Armour, teve seu início em
1917 e viveu o apogeu no período da Segunda Guerra entre 1940-44, quando a
indústria de carnes abastecia as frentes aliadas. Esse processo vinha desde o advento
das charqueadas e, mais tarde, com a indústria frigorificada consolidou-se a
exportação de carnes de qualidade para o consumo da população da Europa e
Estados Unidos.
Assim a região e as cidades próximas a ela, se tornaram um porto seguro para
muitas famílias de emigrantes, especialmente os libaneses.
Ao
chegarem a Rivera os imigrantes árabes vivenciaram a solidariedade de seus
pares já estabelecidos por aqui. Nessa primeira fase da imigração, que vai de
1890 a 1920, aqueles patrícios que já estavam estabelecidos, faziam o ritual do
acolhimento aos irmãos no país desconhecido, fossem sírios, libaneses, ou -
nesse momento - os raros palestinos. O abrigo e orientação nunca lhes foram
negados.
A exemplo de Juan Molke, estabelecido em
Rivera desde os primeiros anos do século XX, comerciante respeitado e bem
sucedido, que recebia muitos casais e jovens solteiros enviados sob sua
recomendação pelos pais ou amigos. Molke era reconhecido como uma espécie de cônsul e conselheiro da comunidade diaspórica
libanesa daquela região. No Chuy, é conhecido
o caso do sírio Mohamed El-Hom, emigrado em 1912, que nos anos cinquenta e
meados de sessenta acolhia muitos palestinos em sua casa, dando-lhes auxilio
financeiro e hospedagem para que iniciassem vida nova na região. Quando em
exílio, os árabes estavam reunidos sob emblema da solidariedade, não importando
suas preferências políticas ou religiosas.
Homens
valentes os libaneses não foram indiferentes às transformações políticas que
sacudiram o Uruguai no início do século 20. O forte sentimento de pertencimento
a uma segunda pátria castelhana fez com que o imigrante acastelhanado Emilio Nizarala (em árabe, Nisrala), radicado em
Rivera, se engajasse na coluna de seu amigo, o blanco Aparício Saravia defendesse sua pátria. Segundo
relatos da memória oral, Juan Molke também engajara patrícios recém chegados a
cidade na causa revolucionária. Embora não fossem encontrados registros
documentais da presença destes soldados
imigrantes nas listas oficiais dos partidos Colorados e Blanco é certo que alguns
foram ao front armado. Alguns lanceiros, como o jovem Khalil Aseff, emigrado em
1900 e ardoroso seguidor do General Aparicio Saravia. Ou a turca Carmem, engajada nas colunas coloradas em Trinta y Três Orientales.
Yussef
Bushada, libanês acastelhanado pela departamento de imigração como José Posada
foi um dos pioneiros em Rivera. Yuseff teria chegado à cidade em 1891,
radicando-se nos arredores do povoado. Inaugurando um comércio de gêneros
variados na Calle Brasil, deu inicio
a arabização daquela região, pois
logo chegariam outros paisanos para
juntar-se a ele. Constituindo um bairro de casas de comércio tradicionais como
a Tienda Normey, Casa La Negra, conhecida como el banco de los pobres, com preços atrativos e variedade de
confecções. A Calle Brasil, localizada próximo ao Ferro Carril, atraia imigrantes
que desembarcavam na ferroviária, pois logo percebiam nos arredores um
auspicioso núcleo comercial. Então, após a chegada de Yussef, a
via passou a ser habitada por uma população de maioria árabe, como
carinhosamente relembrou o poeta Zaz Recarey ” había allí una turcada maravillosa”. Muitos libaneses viveram pelas cercanias e ao
final das Av. Sarandi e Agraciada, como as famílias Dergam, Neme, Bouchacour,
Curi Zagia, Najas, Chalela, Manzor, Fiat, Kauche, Sajur, Nazer entre outras. A livraria
El Estudiante, fundada na década de dez,
de propriedade da Família Curi resiste ao tempo, no mesmo endereço, localizada
na Av. Sarandi. Como um monumento,
continua a tradição familiar distribuindo jornais e vendendo revistas a
comunidade riverense (foto acima).
Uma
curiosidade sobre os pioneiros libaneses que chegavam a Rivera: geralmente
jovens e solteiros, escolhiam suas noivas dentro da comunidade libanesa
radicada no local. Também acontecia deles trazerem suas noivas do Líbano,
depois de uns anos trabalhando, para casar e constituir família na região.
Muitos eram casados, jovens casais, que iniciaram sua vida aqui. A maioria dos
que vieram para Santana, casaram-se com moças locais ou de cidades próximas,
que não tinham descendência árabe. Outros já emigravam casados, porém era uma
minoria.
Há
diversas narrativas e histórias de vidas de famílias de imigrantes, relatando
suas trajetórias particulares e suas perspectivas em relação à terra de origem
e à de acolhida. Atualmente, há mais de 16
milhões de árabes e descendentes no Brasil. No estado do RS, conforme dados do consulado, a
comunidade libanesa é de aproximadamente 90 mil entre libaneses e descendentes.
Com relação a comunidade palestina, os dados, embora defasados, apontam para
uma estimativa 25 mil palestinos no estado. O Uruguai
conta com uma população de descendência árabe de cerca de 120.000 pessoas,
entre imigrantes e seus descendentes. Em Santana do Livramento, vivem cerca de
550 palestinos.

Muitas
famílias que viviam na campanha, nos arredores de Rivera, foram fotografadas pelas
lentes do jovem Elias, que recorria o interior das estâncias registrando o
cotidiano, as festas e costumes da população rural, logo de sua chegada à
região. No nordeste no Brasil, em meados dos anos vinte, também o jovem sírio libanês
Benjamin Abrahão Botto, mascate e
fotógrafo, teve a coragem de acompanhar e fazer o registro iconográfico
do cangaço e de seu líder, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Abrahão
morreu assassinado durante o Estado Novo, em 1938, provavelmente pelas suas
ligações com Lampião. Abrahão teve seus trabalhos, fotos e a película sobre
Lampião apreendidos pela ditadura de Getúlio Vargas. Alguns imigrantes que se engajaram nas
convulsões sociais e políticas dos países em que se radicaram, realmente
tiveram a coragem da escolha e fizeram a diferença. Seja o fotógrafo Emilio
Nisrala, ou o lanceiro Khalil Aseff, integrantes da coluna de Aparicio Saraiva,
seja Abrahão no Cangaço, que com suas lentes fez a espetacularização de Lampião
e seu bando na mídia nacional, em uma época de restrições de liberdades
individuais. Seja no Brasil ou no Uruguai, esses imigrantes libaneses foram
agentes da história, vivenciando profundamente a realidade social em ebulição
dessas nações.
Esse
fato foi decisivo para os irmãos Chein terem vivido sua infância e inicio de
adolescência dentro da cultura libanesa. Fouad Chein, hoje com 98 anos,
recorda-se das noites em que sua mãe, católica, fazia diariamente os filhos
sentarem-se em roda, no chão, para rezar em árabe antes de irem para a cama. A
proximidade cotidiana dos costumes e da língua árabe os aproximava de sua terra. A língua é um poderoso fator de
expressão de uma identidade instintiva comum, tal como a cultura a ela
associada. No entanto, quando seus
pais decidem partir para Santana do Livramento, suas vidas vão tomar um rumo
muito diferente.

O caso dos pioneiros em Rivera é distinto,
pois geralmente, os descendentes da segunda e até terceira geração, criaram um
vinculo afetivo com a pátria de seus pais, avós, e ainda hoje se pode ouvi-los discorrerem
sobre o Líbano, com grande admiração e paixão. Em 1917, o grande número de
imigrantes árabes exigiu que a comunidade fundasse a Sociedade Libanesa de
Rivera. A associação acolhia sócios libaneses também radicados em Santana, como
as famílias Salim e Mafuf, porém nem todos participavam. No local havia saraus
literários, danças, concursos culinários, campeonatos de jogo de gamão,
arrecadação de pesos para auxiliar alguma família que chegava, ou ainda para
doar a uma instituição pública. Os homens discutiam a situação política do Líbano
e Europa. Os que podiam compravam um rádio potente, de ondas curtas, que
transmitia rádios árabes, após a audição, reunidos todos debatiam as notícias. A
nova geração foi crescendo e aprendendo sobre a cultura árabe nos salões da
Sociedade, em casa, nas rodas de conversa de seus pais. Mesmo que na escola
apreendessem o espanhol, eles conheciam a língua de seus pais, embora muitos
não quisessem aprender. Essa aproximação cotidiana fez a diferença.
Santana
possuía uma comunidade estratificada, onde os estabelecimentos comerciais eram
fundados na tradição familiar. A maioria das casas era identificada com
brasileiros natos, mantendo certa resistência aos comerciantes estrangeiros.
Então, muitos imigrantes árabes perceberam que naquela região, a
respeitabilidade e a ascensão social estavam intimamente ligadas. Desse modo,
seus descendentes tinham que estar desvinculados da condição de “turcos” imigrantes, mesmo os filhos brasileiros
nascidos na cidade. A decorrência desse processo foi o esquecimento do idioma
pátrio, a nova geração foi absorvendo totalmente a cultura brasileira. Uma
espécie de legado a ser deixado pelos pioneiros aos descendentes, a integração
plena na terra estrangeira.

No
comércio de Rage se vendia de tudo, secos e molhados, alimentos, tecidos, fumo
em corda, fogão a lenha, bebidas. Também havia um depósito que fazia a
distribuição de bananas na cidade. Semelhante a um clube, o lugar constituía-se em espaço da sociabilidade árabe da
fronteira, recebendo compatriotas que residiam em Rivera e Santana. Ali
costumavam confraternizar ao final de tarde, quando terminava o expediente de
trabalho. Os companheiros buscavam o local para se distraírem, fosse conversando
em árabe, fumando arguile ou jogando gamão. Contudo, não eram todos que
frequentavam a casa de Rage. Os que já estavam integrados a sociedade santanense,
raramente visitavam o lugar.Os libaneses mais antigos da comunidade ainda
recordam-se com acentuada melancolia do clube
de Rage, local de relembrar a “terra dos cedros”. O comércio fechou as
portas no início da década de 1960, quando mudou-se com a família para Porto Alegre,
deixando seus amigos inconsoláveis.

A chegada da comunidade Palestina
Os
primeiros imigrantes palestinos chegaram em menor número, em meados dos anos
50, como Ibrahim Hussein e mais tarde, Hilmi Abadallah. A presença mais
significativa dos palestinos na região só viria a ganhar novo impulso após os
conflitos da guerra israelo-palestina, em 1967. A violência da ocupação fez com
que muitas famílias deixassem suas terras e casas na Palestina. Em sua maioria,
os homens chegavam sozinhos. Geralmente casados, ou compromissados, viajavam
com amigos ou familiares, deixando a mulher e filhos com parentes. A diáspora
impunha-se frente às impossibilidades de trabalho e ao amparo da família em uma
região de conflito e dor. Se a emigração era associada ao sinônimo de lugares
seguros onde trabalhar e viver, também significava encarar novos caminhos e
novas culturas. Os palestinos chegavam dispostos a trabalhar, adquirir capital
para, mais tarde, trazer suas esposas e filhos e reunirem-se com a família,
mesmo que em alguns casos esse processo perdurasse por vários anos. A relação
afetiva era mantida através de cartas, fotografias, lembranças, onde os pais viam
seus filhos crescendo através de imagens enviadas por suas esposas.
Para
relaxar e amenizar a distância da terra mãe, seja o Líbano ou a Palestina,
alguns imigrantes, no início dos anos 50, nas manhãs de domingo, reuniam-se em
frente ao obelisco do Parque Internacional, para conversar em sua língua, tratar
de temas como a turbulenta situação política do Oriente Médio ou, simplesmente fofocar.
Alguns costumavam levar seu chimarrão, como Samir e Sami Kazzaka, outros iam
acompanhados dos filhos, como Ibrahim Tarabay. Ali, reunidos, estavam integrantes da velha guarda, como o pioneiro
Nahim Chein, e recém-emigrados, Samir Kazzaka, Ismail Hussein, Antônio El Ters.
Logo
de sua chegada, os palestinos traziam as angústias de uma trajetória acentuada
pelo êxodo e pelo trauma da guerra. Em muitas narrativas, acentuam-se as
dificuldades em se adaptar ao Brasil, seja cultural, social ou economicamente. A
inserção em uma cultura diferente é desafio constante para a comunidade, pois
ocasionará dilemas com relação aos hábitos e a sua identidade. Muitos se adaptaram
ao novo modo de vida fronteiriço, integrando-se aos costumes locais, outros
tiveram dificuldades de introduzir algum hábito. Certamente os pioneiros
vivenciaram um processo dolorido de afastamento e ausência, consequência direta
do conflito de 1967. Na terra natal que ficava para trás, restava à imposição
de cruéis condições de subsistência com infelizmente, ainda vemos atualmente.
Nesse
período a comunidade local passou a conviver com uma cultura distinta, diversa
daquela tida como “fronteiriça”. O que inicialmente gerou certo encantamento, dado
à diversidade e à cultura do mundo árabe, a variedade de mercadorias e métodos
de vendas, também impulsionou o sucesso de suas “lojinhas”, muito coloridas,
diferentes da sobriedade das casas tradicionais. Semelhante ao que ocorrido com
os libaneses, que trabalharam de mascates, caixeiros viajantes, comerciantes e
tinham suas lojas baseada na variedade de gêneros, mercadorias e método de
vendas parcelado. Quando os palestinos chegaram encontraram os vigorosos
comércios de origem libanesa, já referenciais na comunidade. Os preconceitos
que alguns sofreram não alteraram a abertura positiva que sentiram por parte do
povo brasileiro, e as condições favoráveis de comércio, bem como o acesso e
assimilação da nova cultura.
Varejistas,
em sua grande maioria, introduziam novas formas de comercializar e uma
multiplicidade de mercadorias, unindo preços populares e diversidade.
Geralmente suas lojas eram batizadas como um símbolo que identificavam sua
terra, seja Casa Natal, Jerusalém, Belém, Palestina, ou mesmo Casa Paulista,
curiosamente, em homenagem a cidade de São Paulo, que primeiramente os acolheu
e que era provedora de suas mercadorias, onde havia numerosa comunidade de
imigrantes e descendentes que formavam uma vigorosa identidade árabe.

A
partir de então, a comunidade palestina, com sua cultura fortalecida, graças
também ao sucesso econômico de seus empreendimentos, vai resistir a novas ondas
de estigma e preconceito, recriando estratégias de sobrevivência e convivência
com a comunidade local. Seja na divulgação de seus hábitos culturais, como a
adoção do véu - hijab - pelas mulheres, ou no lazer, com o fortalecimento da Sociedade
Palestina e Árabe, e também a construção da Mesquita, a comunidade impõe seus costumes,
revigorando sua identidade.
Passadas mais de quatro décadas após sua
tímida chegada à fronteira, a comunidade palestina santanense pode enfim
comemorar sua unidade cultural e prosperidade econômica. Atualmente os
palestinos fixados em Santana e Rivera contam com cerca de 550 integrantes, a
maioria muçulmana. Muitos dos pioneiros residem no Brasil, porém tem
empreendimentos em Rivera. Isso os distingue daqueles primeiros libaneses do
início do século 20, que viviam e trabalhavam em Rivera.
As
famílias pioneiras tanto as siro libanesas como palestinas inscreveram-se nos
anais do crescimento econômico da região, graças a sua força de trabalho,
determinação e, finalmente, a consolidação de um crescimento econômico ímpar.
São proprietários de redes de hotelaria, imóveis, meios de comunicação, mega
empreendimentos no comércio de importados, devolvendo a região um vigor somente
vivenciado nas primeiras décadas do século passado. Embora nessa trajetória
tenham encontrado alguns obstáculos para reestruturar suas vidas em uma terra
estrangeira, estiveram sempre ligados a uma admirável persistência e vontade de
lutar por dias melhores.

O imaginário da presença árabe no Brasil e Uruguai é diferente que em outros países por exemplo, é comum que os brasileiros e uruguaios associem os árabes apenas aos sírios e libaneses, povos que formaram a maior parte da colônia nos dois países. Na França, no entanto, quando se fala em árabes, eles pensam nos argelinos, nos marroquinos. Na fronteira do RS, lembramos os palestinos.
Por último temos de lembrar que esse processo imigratório árabe que aconteceu no Uruguai e Brasil, no final do século 19 e inicio do 20 foi muito diferente do processo diaspórico que ocorre atualmente nos países árabes. Os primeiros imigrantes síro libaneses que deixaram suas casas, sua famílias, viajaram por variados motivos, mas também por melhores condições de vida na nova terra que escolheram para viver. Muitos ainda têm uma casa para retornar. A maioria pôde escolher seu destino. Os palestinos que emigraram depois de 1948 e principalmente, logo após 1967, foram obrigados a deixar sua família, seu lar e sua terra. Por conta da ocupação israelense que os expulsou violentamente, e até hoje continua fazendo que muitos jovens, que desejavam apenas constituir sua família, morar na terra de seus ancestrais, tenham que viver segregados ou em outros países, alimentando o sonho de um dia retornar e ter sua família e casa de seus avós de volta . Esses ficaram apenas com a chave da casa, mas continuam lutando e sonhando.
Liane Chipollino Aseff.
Texto apresentado na Sala Antel (Rivera) durante o IV Festival Sul Americano da Cultura Árabe, Unipampa.
Fotos: 1. Os jovens jornaleiros de Humberto Curi, em frente a livraria El Estudiante, em Rivera, 1939. (acervo Osmar Santos). 2. Jose Seluja e um amigo, mascates no Uruguai do início do século XX (acervo Antonio Seluja). 3. O fotógrafo pioneiro Elias Normey, em seu estúdio de Rivera (acervo Osmar Santos). 4. Os irmãos Sami e Samir Kazakka, em frente a Casa Sami, rua dos Andradas, na Santana do Livramento dos anos 50 (acervo Samir Kazakka). 5. A tradicional Casa Salim, em Santana do Livramento. 6. Vitoria Maluf e sobrinhos, em frente ao comércio de Rage Maluf, na Avenida João Pessoa (Santana do Livramento), na década de 50 (acervo família Maluf). 7. O pintor Clarel Neme, fotografado em 1971 por Osmar Santos. 8. A palestina é sua, liberte-a (foto Marlon Aseff). 9. O comerciante palestino Ahmad Musa Abdell Karin Shueik, em sua loja na cidade de Santana do Livramento. (clique nas imagens para ampliar).
Obrigado Estou usando estas memó
ResponderExcluirrias para construir meu memorial de Professora Titular na Coppe/UFRJ. Vera Salim, filha do Wilson!
Obrigado Vera! Liane está escrevendo sua Tese na USP, que aborda a trajetória de mulheres árabes na fronteira e Cone Sul. abraços fronteiriços !
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