segunda-feira, 5 de julho de 2010

Lutas operárias na fronteira: trânsito de ideologias com o Prata

O começo do século encontra a fronteira sob a euforia da inauguração da Cervejaria Gazzapina (1908) e o pleno funcionamento de estabelecimentos comerciais como a Padaria Aragonez, que junto ao setor de construção civil incorporavam os núcleos de trabalhadores filiados às idéias anarquistas. O potencial explosivo dessa experiência distinta atravessava a linha de fronteira e ganhava um contorno central nessa cultura política que se desenhava, somando-se a forte influência anarquista que muitos operários argentinos, uruguaios e espanhóis alimentavam. Os ecos dessas novas demandas políticas seriam estampados no jornal anarquista A Evolução , que viria a ser impresso em português e espanhol, em Santana a partir de 1911. A aproximação dos movimentos anarquistas e socialistas uruguaios com as lideranças trabalhadoras na fronteira seria inevitável, levando-se em consideração a proximidade da região com as emergentes lutas desenvolvidas desde o final do século XIX em Montevidéu. A luta operária pela redução de jornadas de trabalho que beiravam as 14 horas diárias, o aumento do salário e melhoria nas condições de trabalho deflagram no Uruguai um longo movimento grevista em 1905. O clima de agitação operária dá lugar ao nascimento da FORU (Federação Operária Regional do Uruguai), em 23 de março de 1905. Em 1911, uma greve geral sacode o país, em um marco na história dos confrontos sociais. A demissão de dirigentes sindicais das empresas responsáveis pelos bondes em Montevidéu, deflagra uma reação policial extrema. A população reage em solidariedade aos grevistas, conforme aponta o dirigente sindical Gustavo López: "A imprensa da época registra as múltiplas expressões de solidariedade recebidas pelos grevistas por parte dos trabalhadores organizados de outros sindicatos e de amplos setores da população. Os comerciantes ofereciam alimentos para o sustento das famílias trabalhadoras, os intelectuais comprometidos doavam livros para o que o produto de sua venda financiasse a greve, diversas atividades de solidariedade foram organizadas em bairros da capital e das principais cidades do interior."
A fronteira, situada a cerca de 500 quilômetros de Montevidéu, vive nesse momento uma aproximação geográfica e cultural muito maior com a capital uruguaia do que com Porto Alegre. Embora as capitais estejam quase na mesma distância, cerca de 500 quilômetros para o sul ou para o norte, as precárias estradas do Rio Grande do Sul nesse momento dificultavam o deslocamento para a capital gaúcha, estigmatizando a região como terra distante e pouco acessível. Para Montevidéu, no entanto, uma via férrea estabelecia a ligação necessária. Local de exílios e resistência às normas políticas vigentes no Rio Grande do Sul, em Rivera gestavam-se as idéias contrárias ao poder absoluto do governo republicano riograndense. Ali eram editados os jornais O Maragato e O Canabarro, editados por ex-combatentes federalistas exilados do outro lado da linha divisória. Nesse ambiente gesta-se a figura de líderes operários que viriam a ser fundamentais na organização dos trabalhadores na região, primeiramente filiados aos ideais anarquistas, mais tarde associados ao emergente partido comunista. Nesse contexto surgiram as figuras de líderes operários do início do século, como o anarquista espanhol Antônio Apoitia e o mentor da organização comunista local, Santos Soares. A atuação do líder sindical Santos Soares , que viria a criar em 1918 a Liga Operária, uma das primeiras ligas comunistas do país, consolidou-se durante a primeira greve que eclodiu nos frigoríficos Armour e Wilson, a 13 de março de 1919. Santos Soares, pedreiro, nascido em Santana do Livramento, teve sólida atuação na organização dos trabalhadores locais a partir do final da década de 10. Posteriormente aderiu ao comunismo e foi figura central na luta sindical dos trabalhadores do Frigorífico Armour, da Cervejaria Gazapina e segmentos varejistas da cidade. Faleceu em 1951.
Na greve de 1919, a pauta de reivindicações exigia redução da jornada de trabalho de dez para oito horas, aumento de salários para os trabalhadores braçais e um acréscimo de 25% sobre o salário das mulheres. Também pediam a instituição de horas extras para o trabalho nos domingos ou fora de horário. O evidente desalinho entre as leis trabalhistas vigentes no Uruguai e no Brasil ganhava nova conotação no ambiente de trabalho do frigorífico. Ali, trabalhadores uruguaios, brasileiros e de outras nacionalidades submetiam-se a um ordenamento laboral arcaico.
Do outro lado da linha divisória, no entanto, os trabalhadores uruguaios viviam a plena vigência das idéias preconizadas pelo presidente José Batle y Ordóñez, que criara a partir de seu primeiro mandato, em 1903, uma série de normas legais de proteção aos trabalhadores, posteriormente reforçadas pela Constituição de 1917, que incluia jornadas de trabalho de oito horas, indenização por acidentes de trabalho, licença maternidade, proteção aos idosos e inválidos e a intermediação estatal em casos de conflitos laborais. Convém lembrar aqui, conforme aponta López, que as normas laborais uruguaias, extremamente avançadas para a época, não foram um “presente” do governo de Batlle, mas fruto de anos de lutas cruentas do movimento sindical uruguaio.

Nas fotos, uma vista aérea da Cervejaria Gazzapina nos anos 70, em seguida o líder anarquista Antônio Apoitia e o comunista Santos Soares. Para reprodução de texto ou fotos, por favor cite a fonte.

Um comentário:

  1. Excelente trabalho.
    Parabéns e obrigado por nos "refrescar a memória" e dar mais detalhes.

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