segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O Clube de Rage Maluf, culto e melancolia da terra longínqua!

A trajetória de Rage Maluf  foi marcada por um importante papel aglutinador entre seus companheiros e permaneceu na memória da coletividade fronteiriça. Nascido na cidade de Schiliffa, próximo a Baalbek, emigrou para o Brasil, para a cidade de São Paulo, entre 1924 e 1925. No princípio, como todos seus compatriotas, trabalhou como vendedor ambulante em várias cidades do sul do Brasil. Em 1930, após muito circular pelos estados do Paraná, Santa Catarina e São Paulo, escolheu Santana do Livramento para fixar residência, pois havia constituído família. Rage tinha parentes na cidade, provavelmente tenha sido por indicação deles que abriu comércio na linha divisória, próximo a aduana brasileira e uruguaia. A região havia se constituído em reduto da comunidade estrangeira: italiana, espanhola e árabe. Havia um restaurante italiano, uma pensão espanhola e uma outra de sua irmã, Vitória, além de casas comerciais de grande tradição na cidade. No comércio de Rage se vendia “de tudo um pouco”, segundo rememorou sua filha, a antropóloga Sônia Maluf:


Secos e molhados, alimentos, tecidos, fumo em corda, fogão a lenha, bebidas [...] e tinha também um depósito que fazia a distribuição de bananas na cidade, lembro dos caminhões descarregando as bananas no depósito que era no subterrâneo de nossa casa”

O comercio de Rage era um sucesso devido a variedade de mercadorias. Semelhante a um clube, o lugar constituía-se em espaço da sociabilidade árabe da fronteira, recebendo compatriotas que residiam em Rivera e Santana. Ali costumavam confraternizar ao final de tarde, quando terminava o expediente de trabalho. Buscavam o local para se distraírem, fosse conversando em árabe, fumando cachimbo ou jogando xadrez. A maioria dos libaneses mais antigos da comunidade ainda recorda-se com acentuada melancolia do clube. O local fechou suas portas no início da década de 1960, quando devido uma enfermidade, Rage tranferiu-se com sua extensa família para Porto Alegre, deixando seus amigos inconsoláveis.

Para o casal Khalil Aseff e Rosa Felis, a fronteira significou a esperança de uma vida renovada. Eles deixaram Beirute com destino a Montevidéu por volta 1900, época da rigorosa lei de imigração aos estrangeiros orientais. Provavelmente tenham viajado com passagens de primeira classe.Tomaram o barco que os levaria ao Uruguai em completo mistério e anonimato. Pouco se sabe sobre os motivos que levaram o jovem que tinha entre 14 ou 18 anos a migrar e tornar-se companheiro por mais de quatro décadas de Rosa, então com cerca de quarenta anos. Khalil, pelos relatos familiares teria vindo de Beirute ou do povoado de Bcharre, embora a documentação pessoal indique que era natural da Síria, nascido em Monte Líbano. Rosa possivelmente nascida em Bcharre ou Beirute, segundo amigos libaneses, encontrou Khalil em solo fronteiriço e ali montaram um pequeno restaurante, dando início a vida conjugal. Segundo relato esparso de familiares, é certo que ambos empreenderam uma fuga. Fugiria do alistamento obrigatório imposto aos jovens libaneses? E sua companheira, de um casamento mal sucedido ou infeliz? Rosa manteve sua história encoberta até a chegada à fronteira nos anos trinta de um de seus filhos que havia deixado no Líbano. A fronteira, porém, os acolheu como segunda pátria, como fazia a todos que dela buscaram refúgio e proteção. Ao chegarem no porto de Montevidéu, seguiram o protocolo aos emigrantes que tinham sua alcunha acentuadamente árabe, para que adotassem nomes castelhanos. A partir de então Khalil tornou-se Julian. De Rosa ninguém ficou sabendo se adotou outro nome ou se conservou o de sua origem árabe.

Empreendedores, primeiro aventuram-se na cidade de Durazno, próximo da capital uruguaia e mais tarde, escolheram a fronteira para fixar residência. Em meados dos anos 20, montaram um comércio na praça Rio Branco, no centro em Rivera. Depois de terem vivenciado o centro urbano do lado oriental da fronteira, se decidiram pela mudança de lado, escolhendo uma chácara no bairro brasileiro da Carolina, para morar e trabalhar. Julian quando cruzou a linha de fronteira, teve seu nome abrasileirado para Julião. Estrategicamente, a poucos metros do Frigorífico Wilson, a indústria multinacional de carnes e couro. Sua segunda esposa, Maria, acredita que a mudança tenha se dado pelo fato de que “tinham muitos operários para comer e ali passavam muitas carroças para atender”, vindas do interior do município de Santana.

O comércio do turco Julião, no entanto, não rivalizava com o de seus patrícios estabelecidos em Rivera. Localizado na periferia da cidade, atendia operários do frigorífico, assim como trabalhadores rurais, carreteiros e todo tipo de viajantes que deixavam a cidade e passavam por aquela região. Julião era muito considerado pelos seus vizinhos e fregueses. Diferente de outros libaneses da região, costumava trabalhar com o diferencial das cadernetas. Seus clientes e amigos podiam levar mercadorias e pagar quando recebiam seus salários. Atraiu muitos clientes, mas com o passar dos anos, o sistema não deu certo e teve de fechar suas portas. O frigorífico deixou a cidade, demitindo a maioria de seus operários, que ficaram sem ter como pagar as cadernetas. Por ser considerado um benemérito, após sua morte recebeu homenagem da Câmara de Vereadores, indicado para dar nome a uma rua no bairro Carolina. Assim como a história de sua primeira companheira, sua segunda esposa, Maria, protagonizou um episódio insólito. A jovem Maria casou-se com Julião, compadre de seu pai, a pedido de Rosa, quando estava em seu leito de morte. “Ela pediu que eu cuidasse dele, que casasse com ele, eu pensei e casei”, rememora Maria, que na época contava 16 anos. Embora Maria fosse educada nos moldes da lida campeira, não dominava nenhum tipo de tarefa doméstica, e Rosa, acamada então passou a dar lições de culinária para sua jovem sucessora. Julião, então com 54 anos, não tinha filhos e nunca havia se casado oficialmente com Rosa, nem tampouco procurado se naturalizar brasileiro ou uruguaio. Era um libanês acastelhanado. Costumava falar em espanhol, quando não estava conversando com seus compadres árabes. Adotou o espanhol como segunda língua, logo de sua chegada ao Uruguai, nunca tendo se interessado em aperfeiçoar o português. Apreciador de sua cultura, sempre que podia levava sua jovem esposa e os seis filhos que teve com Maria, a visitarem seus amigos patrícios que viviam em Rivera. Falavam em árabe, comiam e festejavam em família. Entretanto a conversa em árabe era reservada aos homens, pois as mulheres cozinhavam e cuidavam das crianças. Maria no principio não entendia aquele ritual, porém com o passar do tempo foi aprendendo a respeitar e admirar “a gente da terra dele”. Julião também costumava visitar, quando vinha ao centro de Santana o clube de Rage Maluf, para rever seus amigos libaneses que tinham comércio na linha divisória. A história dos anos que Julião permaneceu no Uruguai, antes de desposar Maria, permaneceram imersos em uma aura de mistério e desconhecimento para seus descendentes. Somente nos primeiros dias deste ano de 2010 é que parte da identidade do respeitado imigrante começaram a vir à tona, fruto desta pesquisa. Isabel Najas, amiga da família, que costumava acompanhar os sogros em visitas a Julian, revelou a memória perdida. Conforme relembrou Isabel, seu sogro, Masud Najas, amigo e contemporâneo de emigração de Julian, costumava anunciar Don Julian como o valoroso “soldado de Aparício”, que se engajara na revolução blanca de 1904. Na quietude de seu lar brasileiro, com sua discreta vida de comerciante, sua nova família e vizinhos, nada indicava que na juventude Julião teria sido valoroso combatente. Por força das circunstâncias, estabeleceu-se do outro lado da linha divisória devido a derrota de Aparício e as possíveis represálias que sofreria se permanecesse em solo uruguaio. Os companheiros de partido, no entanto, nunca abandonou, participando de reuniões políticas dos blancos uruguaios e convivendo intensamente com os patrícios no Uruguai.

Outro pioneiro libanês a procurar a fronteira de Santana do Livramento foi Miguel Salim Gabriel. Nascido e batizado em Sahida deixou o Líbano com seus pais, ainda criança, em direção ao Brasil, chegando ao Espírito Santo. Porém, com a firme disposição para “trabalhar, subir e crescer” quando tinha doze anos, já naturalizado, deixou sua família em direção ao promissor pampa gaúcho. Chegando a Santana do Livramento no ano de 1907, transformou-se em um dos precursores da imigração libanesa naquela região. Conforme costumava contar a amigos e familiares, com dois pesos uruguaios comprou um cavalo encilhado e no lombo desse animal deu início a sua aventura de mascate. Por oito anos trabalhou como vendedor ambulante, percorrendo os distritos do interior de Santana e municípios vizinhos. Ofereceu bijuterias e mercadorias variadas a “agregados, capatazes, senhores e senhoras de estância”, em vilarejos que limitavam a fronteira. Com 20 anos decidiu que estava na hora de fixar residência no centro de Santana do Livramento. Em viagem de trabalho à cidade de Alegrete, conheceu a brasileira Dalila e logo se casaram. Investindo a quantia de dois contos e oitocentos, fruto de suas economias no trabalho de mercador pelo pampa, deu inicio a sua atividade de comerciante. A pequena lojinha inicial veio a se transformar numa das maiores casas do tradicional comércio da cidade, a Casa Salim. Com o passar dos anos, Salim investiu seu capital na pecuária, tornando-se um estancieiro, como outros grandes comerciantes que faziam parte da elite pecuarista da cidade. Com sua esposa realizaram muitas viagens ao Oriente Médio e aos Estados Unidos, onde possuia parentes.

O estigma sempre acompanhou a trajetória do povo árabe. Ao chegar na fronteira, a exemplo de outros lugares, foram imediatamente identificados como turcos, fossem sírios, libaneses ou palestinos. Na fronteira não importa o país de sua origem, se vinham do Oriente Médio, ou até mesmo os gregos, recebiam a mesma alcunha: “São todos turcos, Tchê!” Enquanto Rivera os acolheu de maneira amistosa e integrada, em Santana do Livramento a sociedade local mostrou-se refratária e com as mesmas características excludentes que mantinham com os despossuídos e estrangeiros em geral. Se os espanhóis e italianos eram chamados de anarquistas, os árabes eram os turcos, exóticos e pouco confiáveis. Embora as características dessa sociedade pouco tenham se alterado com o passar das décadas, a pujança comercial árabe se impôs, forjando uma aceitação gradual e que teve o ingrediente da miscigenação cultural. Atualmente na fronteira, são os imigrantes palestinos que exercem forte influência econômica. Em Santana do Livramento, o comércio local é hoje predominantemente ligado aos emigrantes jordaniano-palestinos, que chegaram em meados dos anos sessenta. Também em Rivera, algumas das tradicionais casas comerciais da cidade foram compradas por palestinos, que emigraram nos final dos anos cinqüenta para Santana do Livramento.

Imagem: Rage Maluf, entre esposa e filhos, em foto tirada nas cercanias do Cerro do Marco.

6 comentários:

  1. Que história rica. Grato por compartilhar suas memórias.

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  2. Só a foto eu faria uma correção. Ela foi tirada em Porto Alegre e não em Livramento. Na rua Prof Langendonck.

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    1. Obrigada pela correção Sônia, até achei que fosse embaixo do Cerro do Marco e você uma das meninas!

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  3. Que beleza de história! Quanta garra, quanta determinação! Viva o Brasil 'melting pot'!

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  4. Lindo texto e foto. Eu sou neta do Rage, Marua José Maluf de Mesquita, e sou a primeira criança a esquerda. Feliz de ler e aprender um pouco mais.

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  5. Maria José, incrível saber que você está na foto! E que gostou do texto, Obrigada! Estou aprofundando mais a história de seu avô para minha tese! Se puder dar um depoimento, será muito bem vindo, estendo a todos familiares, escreva ao email que aparece ao lado!

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