quinta-feira, 22 de junho de 2017

Solidariedade, conflitos e traições no exílio: a última conversa


Por Pedro Dávila de Mello.

Com a morte de Roberto Fagundes, em Rivera, Ofélia caiu num abismo de sentimentos. Primeiro veio a tristeza, depois, uma profunda depressão jogou-a ao fundo do poço, e, por último, uma tentativa de suicídio. O amor incondicional aos filhos Paulo e Aníbal, e o tratamento com psiquiatra ajudaram-na a reerguer-se lentamente. Na verdade, tentou ficar bem durante mais de quarenta anos, alternando as crises de tristeza com breves momentos de euforia. Em todo esse tempo os filhos estiveram presentes dando-lhe apoio emocional e financeiro. Na verdade, a dedicação à mãe foi tanta, que, impostos pelas circunstancias, nalguns momentos chegaram a inverter os papéis de filhos com os de pais. Condições estas que levaram os rapazes a uma exaustão física e mental, contribuindo involuntariamente com a desestruturação familiar. Pensando em melhorar a situação da mãe, resolveram hospedá-la numa casa de repouso.
Na tarde, antes da mudança, Ofélia Fagundes quis ter uma conversa com seu filho mais velho. Para isso, chamou-o pelo telefone com urgência. Em poucas horas ele já estava diante da mãe.
-- Fizeram muito bem em conseguir-me essa hospedagem, meu filho. Começou dizendo-lhe assim que Paulo entrou na sala e a viu sentada na velha poltrona.
-- A situação aqui em casa, com as empregadas, com a comida, com tudo, estava ficando muito difícil. Estou velha e minha cabeça já não dá para muitas questões. Penso que agora, na nova casa, possa descansar e conviver com pessoas da mesma idade, aproveitando o tempo que me resta de vida.
O filho, atento e um pouco incomodado com a conversa, tentou acomodar-se na outra poltrona a seu lado. Quando ia começar a justificar-se, a mãe o interrompeu:
-- Não necessitas dizer-me nada. Tu e teu irmão fizeram muito bem em conseguir-me esse asilo. Sabes que eu os amo e sempre amarei. Vocês cuidaram-me com carinho e esmero durante todos esses anos, desde que o Roberto faleceu, mas agora chegou a hora de descansarem um pouco.
-- Não estou entendendo, onde a senhora está querendo chegar? --perguntou Paulo inquieto.
-- Fica tranquilo! Chamei-te porque tenho um assunto muito importante para contar. – Ao dizer isso, olhou-o fixamente antes de continuar. – Será a primeira e a última conversa sobre um tema que guardei a sete chaves durante todos esses anos.
Sem dar-lhe tempo para qualquer pergunta, ela começou:
-- Eu já havia almoçado e estava prestes a sestear, quando naquele dia de 1966 a campainha lá de casa soou. Ainda sonolenta abri a porta e topei-me com três monges franciscanos em seus hábitos. O da frente perguntou-me pelo teu pai. Surpresa e desconfiada, respondi-lhe que não sabia, pois ele havia saído muito cedo de casa. Diante da negativa, despediram-se e, ao retirarem-se, o do meio, que parecia ser o líder, apesar do capuz cobrir-lhe a cabeça, fitou-me com ternura e esboçou um leve sorriso. Tive a sensação de conhecê-lo, pois aqueles olhos, de certa forma, eram-me familiares. Assim que partiram, pedi imediatamente para que o primo de vocês, Jacinto, que casualmente estava na frente da casa, os seguisse, pois percebi algo de estranho em seus comportamentos. Em uma hora ele retornou contando-me que os três frades tinham ido até a Iglesia de la Inmaculada Concepción, e haviam entrado pela porta dos fundos.
Prevendo que a história se alongaria, Paulo interrompeu o relato.
-- Mãe, eu não estou entendendo nada. O que está acontecendo?
-- Silêncio. Não me interrompas. Essa história tenho-a guardada no peito há muito tempo e necessito colocá-la para fora.
O tom quase áspero raramente fazia parte dos modos de sua mãe, o que o deixou um pouco apreensivo, além de bastante curioso. Pausadamente, ela continuou:
-- Naquele dia, o teu pai retornou tarde da noite. Eu mal podia conter a vontade de perguntar-lhe a respeito de sua demora, quando ele surpreendeu-me dizendo que esteve com uns monges, os mesmos que passaram em nossa casa, e os levou em missão relâmpago até a cidade vizinha de Taquarembo. “Até Taquarembo? Fazer o que lá?”, perguntei espantada.
“Eles estavam em missão secreta e tive que levá-los com segurança”.
“Monges em missão secreta? Como assim?”
“Na verdade não eram bem monges. Estavam disfarçados de frades e...”
“Fala homem, estou curiosa!”
“Estavam escoltando o Ernesto.”
“Quem é o Ernesto? E por que a escolta?”.
-- Antes de responder, teu pai deteve-se alguns segundos para recobrar o ar. Ele estava visivelmente emocionado.
“Ernesto Guevara.”
“Quem? O Chê Guevara?”
“Sim, ele mesmo.”
“Isso são horas de zoares comigo?”
“Não estou brincando, querida. Um dos frades era o Chê. Veio em missão secreta trazer o dinheiro que o Fidel mandou entregar aos líderes brasileiros exilados em Taquarembo.”
-- Custei a acreditar no que o teu pai me contava. Achei que poderia estar enganado, afinal de contas, por que mandariam o Chê a Rivera cuidar pessoalmente de uma entrega? Além disso, era difícil crer que ele tivesse batido à porta da nossa casa disfarçado de monge. Não, não, se teu pai não estava enganado, então era algum tipo de brincadeira. Tratei de encará-lo, e ele mirou-me com a ponta da sobrancelha erguida, uma reação que não deixava dúvida sobre a seriedade do que me dizia. O nervosismo invadiu meu corpo. Tentei extrair-lhe mais detalhes, mas foi em vão. Com muito respeito pediu-me para não perguntar-lhe mais nada, pois era um segredo e, quanto menos eu soubesse, melhor seria para todos. Fiquei quieta. Contudo, não me dando por vencida, busquei informar-me com a esposa de outro camarada, dona Catalina, sobre o que estava acontecendo. A muito custo, descobri que o Chê Guevara estava levando quinhentos mil dólares, a fim de financiar o levante que estava sendo planejado contra a ditadura recentemente instalada no Brasil.
-- Poderias explicar-me melhor, mamãe? -- perguntou o filho boquiaberto.

-- Sim, para que possas entender com clareza, pois vocês eram crianças naquela época, vou contar-te o que se sucedeu. Há um personagem muito importante nesta história que se chama Leonel de Moura Brizola e que, em 1965, no Uruguai, buscou unir os exilados com o propósito de organizar um levante armado. Para tanto, tentou fazer um acordo entre os partidos de esquerda, o famoso pacto de Montevidéu, com o PC do B, AP, PCB e o Partido Operário Revolucionário Trotskista. Dessa união resultou a Frente Popular de Libertação, cuja finalidade, como já te disse, era a retomada do poder por meio da luta armada. A maioria dos integrantes era formada por ex-militares cassados das Forças Armadas e da Brigada Militar do Rio Grande do Sul.
-- Nesse contexto que a senhora me conta, a esquerda Santanense apoiou esse pacto? – Paulo a fitava com ansiedade. Era incrível, mas sua mãe falava como se ainda mantivesse acesa a chama de civilidade e companheirismo daqueles tempos.
Ofélia suspirou e, com os olhos vidrados no filho, pausadamente continuou:
-- A esquerda de Sant´Ana do Livramento apoiou parcialmente. Muitos comunistas da fronteira não aderiram ao pacto. Uma minoria que falava em Marx, Hegel, Sêneca, reforma agrária, defesa dos oprimidos, paradoxalmente vivia entrincheirada em suas fazendas, numa atitude clássica de comunistas teóricos e de oligarcas feudais. Outros, mais cautelosos, calaram-se. Alguns membros mais afoitos para uma resposta imediata ao golpe militar, entre eles o teu pai, que defendiam uma postura coerente com os ideais pregados e até mesmo o enfrentamento, caso necessário, discordavam dos discursos moderados que outros proferiam, numa postura clara de passividade diante dos acontecimentos. Posturas e atitudes essas que, segundo comentava-se à época, principalmente entre os mais radicais, ficavam em descompasso entre as teorias que defendiam e a vida que tinham. Eram comunistas de dia, mas à noite brindavam com champanhe com os golpistas nos melhores clubes da cidade. Eram pontos de vista distintos dos nossos que, a muito custo, aprendi a respeitar.
Paulo, cada vez mais impressionado com a eloquência da mãe, que aos oitenta e tantos anos ainda demonstrava muita lucidez, perguntou-lhe se queria beber algo. Ofélia respondeu-lhe que não, preferindo continuar a história que estivera engasgada há muitos anos.
-- Devido a seu “nacionalismo anti-imperialista”, Brizola era o líder cujas ideias mais se aproximavam das de Fidel Castro para a Revolução no Brasil. E, após o golpe militar de 1964, o seu grupo no Uruguai obteve ajuda de Cuba em treinamento de guerrilha e auxílio financeiro. Falava-se em mais de um milhão de dólares. Comentava-se à época, que Fidel havia mandado no início quinhentos mil dólares para ajudar. Desta importância, um terço teria ficado com o Jango, pois a este estavam ligados vários exilados necessitados. Outra parte, com Darcy Ribeiro para “segurança” e o último terço teria ficado com o Brizola, que ficou aborrecido, tendo em vista ser pouca quantia, pois era o único entre os três que estava tentando, de fato, montar um contra-ataque. Importância essa que teria sido gasta, com pessoas no exílio, com os companheiros no Brasil muito necessitados, com os presos políticos e com os homens encarregados de fazer a comunicação entre os grupos arquitetando um plano maior de combate armado.
A surpresa de Paulo só crescia. Parecia-lhe impossível unir aquele corpo já deteriorado pelos anos ao discurso que ele ouvia, à altivez do tom, à propriedade no emprego das palavras. Pensou em elogiar a mãe, mas quando fez menção de abrir a boca, ela adiantou-se:
-- A primeira tentativa de restaurar o governo democrático brasileiro partiu de Montevidéu. O coronel Jefferson Cardim Osório e mais dois camaradas passaram por nossa casa, em Rivera, e teu pai participou fornecendo-lhes armas e suporte logístico para entrarem no Brasil. Vocês eram muito pequenos, talvez não lembrem em detalhes.
Na memória de Paulo imediatamente vieram-lhe as imagens dos três homens que chegaram de jeep, no dia que ele e seu irmão jogavam bolinha de gude na frente da sua casa e depois a lembrança horrível das fotos na revista dos três homens torturados, que seu pai mostrara. O que a mãe lhe narrava, nesse momento, era uma peça importante no mosaico de sua história familiar que ainda restava ser preenchida.
-- De lá, eles foram até a cidade de Três Passos onde arregimentaram, pelo caminho, alguns combatentes e tentaram tomar o quartel e uma rádio local. A ideia era formar uma coluna, aos moldes da coluna Prestes e, na medida em que fossem avançando, de quartelada em quartelada, iriam se juntar no Mato Grosso com o grupo que viria da Bolívia, sob o comando do ex-coronel da aeronáutica, Emanuel Nicoll. Mas essa tentativa foi frustrada depois da emboscada feita pelas forças militares no interior do Paraná, onde caiu preso o coronel Jefferson e outros companheiros. Suspeitava-se que haviam sido traídos. E estavam certos. Mais tarde soubemos o nome do traidor.
-- Quem foi o traidor, mamãe? --perguntou Paulo com ar de indignação e revolta.
Ofélia ficou com o nem do traidor na boca, mas optou por cautela.
-- Com o tempo saberás quem foi, meu filho. – falou-lhe com ar desolado. Mas o que tenho para te contar não acaba aqui -- continuou a mãe diante do filho atônito. -- Tendo sido frustrada a primeira tentativa do contragolpe revolucionário, os companheiros organizaram-se novamente e criaram em 1966 o Movimento Nacionalista Revolucionário, para implantar mais um ataque à ditadura militar, cujas ações seriam basicamente no meio rural, pegando resquícios, talvez, das ligas campesinas implantadas por Francisco Julião anos antes. Mas, para isso, necessitava-se de dinheiro, muito dinheiro. Fidel, então, enviou a segunda remessa de quinhentos mil dólares, totalizando um milhão em espécie, e quem levou pessoalmente essa quantia, disfarçado de monge, foi o Ernesto Guevara, contou-me teu pai.
Para Paulo a história de sua mãe começava encaixar-se e fazer sentido.
Ofélia calou-se e fitou o filho. Paulo viu na expressão suave da mãe o quanto lhe aliviara contar esse segredo. Aproximou-se dela e passou-lhe o braço por sobre os ombros. Finalmente comentou:
-- Então era esse o dinheiro que o “Chê” carregava disfarçado de monge...?
-- Sim, era esse dinheiro, pertencente à segunda remessa dos dólares enviados por Cuba, que o Ernesto carregava naquela tarde chuvosa em nossa casa.
A novidade era bombástica. Paulo tinha certeza de que o episódio narrado por sua mãe não fazia parte da história oficial. Acabara de ser informado de um acontecimento ultrassecreto e, portanto, não sabia direito o que fazer. Recompondo-se, perguntou impressionado:
-- Quanto dinheiro, mamãe? Ele foi todo gasto nesses movimentos?
Ofélia parou para pensar na resposta e, após alguns segundos, continuou com muita cautela.
-- Eu nunca soube ao certo sobre o destino total desses dólares, meu filho. Alguns comentaram que parte deles foi usado com treinamentos de combatentes e na alimentação de algumas famílias, pois tinham que sobreviver no exílio; o que é sensato. Outras pessoas disseram que o grosso dos dólares teve paradeiro desconhecido, e que isso teria causado um desconforto abissal entre Fidel e os líderes revolucionários brasileiros, já que estes nunca teriam prestado conta de seu destino e tampouco mostraram os resultados esperados pelos cubanos.
-- Mamãe o que a senhora está me contando é muito sério. Há provas disso?
-- Não, meu filho. Não há provas.
-- Tiveram algumas casualidades que deixaram a muitos exilados necessitados desconfiados. Algumas fazendas foram compradas no Uruguai nessa época, mas deverão ter sido heranças de família. Esses rumores geraram brigas, cizânias e descontrole. Mas isso não tenho certeza e tampouco conhecimento suficiente para opinar. Se o teu pai ou o Chê estivessem vivos, poderiam contar mais detalhes sobre o ocorrido, mas, como bem sabes, alguns meses depois mataram-no no combate do Cerro Chato, deixando-nos em profundas dificuldades financeiras, e o Guevara foi assassinado na Bolívia.
A maioria dos exilados que teu pai ajudou, seguiram seus caminhos e não apareceram mais. Enquanto teu pai vivia, éramos uteis. Depois sumiram sem deixar rastro. Poucos nos ajudaram e nos ajudam até hoje.
-- Sim, mamãe é verdade... A família que veio de São Borja são nossos amigos até hoje. E a eles somos eternamente gratos. Quando mais necessitamos, marcam presença e marcam até hoje.
-- Sim, meu filho é verdade. A estes somos gratos. Mas por incrível que pareça, quem, de fato, nos estendeu a mão quando mais necessitamos foram a nossa família e alguns vizinhos, colorados, blancos e apolíticos.
-- Mas, mãe e os dólares cubanos? Era muito dinheiro? Onde foram parar?
A verdade sobre o destino desses dólares eu nunca soube.
Ofélia segurou então a mão do filho, estreitando o abraço que ele, antes havia apenas insinuado ao passar-lhe o braço pelos ombros. Deu um suspiro profundo e longo, sorriu e, por fim, disse:
-- A verdadeira solidariedade não tem lado, nem esquerda nem direita, nem tendências políticas. Está no ser humano independentemente de raça, credo, cor e posição econômica.
Amanhã cedo estarei esperando-te com as malas prontas.

Fim

( Dedico este conto, quase crônica, aos nossos pais, Romeu Figueiredo de Mello, que hoje estaria completando 96 anos de vida e Orides D´Avila de Mello, de cujas histórias passadas no exílio, tais como solidariedade, conflitos e traições, “inspiraram-me” esta " ficção".)



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