segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Livramento, colônia cultural de Rivera ?


O local é um pequeníssimo sótão em um bar de Rivera. Ali acontece o show da dupla fronteiriça Nuevos Bayanos. Cercados por inúmeras velas, dispostas em garrafas e espalhadas pelo chão, os artistas vivenciam com um público completamente absorto a celebração de uma nova vanguarda roqueira da região, onde a afirmação do portunhol como pátria legítima e resistência cultural dá o tom. Lou Reed + Olyntho María Simões. Dois poetas que se encontram no inusitado sótão da cidade uruguaia, em uma fusão que emana o novo, recupera o poder da arte como aglutinadora de rebeldias e promotora de novos diálogos.

Fabián Severo já disse que daqui a 300 anos o que está acontecendo na fronteira será estudado como um movimento potente e renovador.

 Mas que fronteira é essa ?

Santana do Livramento comporta-se hoje como uma legítima cidade dormitório, onde a mesma raça humana que se percebe do outro lado da “linha imaginária” dorme em berço não-esplêndido. Alijados das praças iluminadas, dos espaços organizados, da agenda ininterrupta de eventos em seus variados aparelhos de cultura.

Sobrevive um “gauchismo” reducionista que não dá conta do “mais além” de suas fronteiras, e acaba ao mesmo tempo desarticulador e fanfarrão.

Nossas elites sociais e culturais (nossas, dos santanenses) não conseguem mais responder à altura desse tempo estranho – algo que já aconteceu nos anos 70 e 80, quando a cidade certamente viveu dias melhores.

Hoje basta um meme por dia, uma piada de péssimo gosto por dia, um ataque frontal de cunho pseudo-moralista de algum líder de ocasião. E um smartphone na mão, para que todos os funcionários voltem felizes para seus lares, escondidos lá nas entranhas dos bairros sem infraestrutura nenhuma. Negócio é ligar a TV e esperar a vida passar, com a boca escancarada, cheia de dentes.

Lembram da juventude engajada da União Santanense de Estudantes, nos anos 80 ?  Hoje a “juventude” – pelo menos a da Rua dos Andradas para cá – parece não ter mais por que lutar. Espaço público não há, ou se há está abandonado a inércia, e os amagos de caos ecológico chegam junto com as promessas de uma terceira guerra mundial.

 Estamos vivendo a falência de um modelo de representatividade política, onde quem tem míseros 5 mil reais a mais do que o concorrente consegue ascender ao posto de “vereador”, seja lá o que isso possa agregar de alento a um futuro coletivo melhor. Que o digam os votos brancos e nulos.

As propostas dos progressistas estão em baixa, o sonho está em baixa, a esperança está em baixa. Quando falo em progressismo, me refiro a todos aqueles que somaram forças ao lado dos que buscam um papel tutelar do estado sobre a sociedade, desde a promoção da saúde mas também da educação e cultura, da abertura de espaços para a dissonância. Mas quando se falou com seriedade em Cultura na recente campanha municipal ?

Recentemente tivemos de submeter parte substancial de nossos acervos históricos ao Museu da cidade vizinha, e depois de engolir a seco, tivemos de admitir que essa foi a melhor opção. O contrário seria o roubo, o descaso, a perda, algo que já conhecemos e que já vimos como funciona.

Temos instituições como a Biblioteca Municipal ou o Museu David Canabarro, entre tantos aparelhos de cultura, que afora estarem totalmente descaracterizados com o passar dos anos recentes  – quando reabertas, de tanto em tanto – são apenas fantoches maquiados, instituições esvaziadas, sem pessoas comprometidas ou ao menos com uma formação recomendada para gerir tais espaços. E assim vamos trocando cargos por favores políticos, eternamente, a despeito do bem comum e da promessa de um futuro. E infelizmente, isso não é mais uma questão apenas de eleições.

Na falta de um espaço de coletividade, incitada pelo poder público, sobra o espaço religioso, importante sem dúvida, porém nem sempre afastado de interesses manipuláveis.

Por outro lado, Rivera também vive décadas de um governo conservador e que todos sabemos de que maneira cresceu e se consolidou. Mas resiste ali um apelo republicano, que em última instância não permite que tudo desabe, como aconteceu do outro lado da “linha”.

Do lado lusitano da moeda, sobraram burocratas de partidos políticos enfraquecidos, tristes políticos “profissionais”, ex mandatários que se julgavam os reis da Pérsia, candidatos que sabem apenas espalhar paternalismo em época de eleições, como se o “pobre” fosse um burro irrecuperável. 

Frente a isso, o “novo” vem com tudo e com razão – como já prenunciava o trovador de Porto Alegre. Frente a isso, sobra o “novo” travestido de libertário, de “sem ideologia”, de tudo o que sabemos ser apenas nuvem de fumaça, bastante espessa é claro, alavancada pelas milícias digitais dos novos espelhinhos, que os nativos adoram.

E assim seguimos, bebendo nas águas castelhanas, nos alimentando da vanguarda dos hermanos, do Candombe, enquanto o samba é sistematicamente colocado em segundo plano. Restam os espaços planejados desde allá. Enquanto isso, no acampamento imperial, convivemos com o sono, a inércia, o desmando. E a falta de perspectivas.