quarta-feira, 10 de abril de 2013

Pelo fim do exilio


            Há um sentimento que me liga a Livramento: um sentimento de exílio. Amo essa cidade, o cheiro desses campos me faz bem, a água é boa, nada como tomar chimarrão embaixo de um cinamomo em qualquer lugar daí. Essa linha de fronteira é mágica, há misturas de sotaques e costumes. Foi nessa linha que Aparicio Saravia caiu em combate e embaixo de um guapuruvu centenário que fica na praça em frente à prefeitura Hernandez concluiu o Martin Fierro. Há uma cidade com memória, com história, com passado, mas parece que quase só isso sobrevive hoje: memória e passado. A cidade do já teve, exilada para sempre de uma glória perdida.
            Pouca coisa vinga em Livramento, tirando um comércio sobrevivente e o melancólico papel de ser apenas corredor de passagem ou dormitório para a onda consumista que leva gente aos free-shops. O maior empregador do município  é a prefeitura, o que já é por si só uma distorção: poder público é para atender o cidadão, não um cabide de empregos. O jogo político da cidade, assim, vira um toma lá da cá de baixo clero, onde em geral gabinete de vereador vira uma central de favores a seus eleitores e apaniguados. Enfim, a cidade navega na tábua rasa da política de resultados paroquiais. A pequena política que apequena a cidade.
            Faço essas observações de longe porque sou um santanense exilado, como tantos da minha geração. A falta de  perspectiva dessa cidade expulsa pessoas para tentar a vida em outros lugares. É grande a diáspora de santanenses por esse Rio Grande e Brasil afora. Jamais conheci algum que não declare um grande amor pela cidade, sob o amargo sabor de, de certa forma, ter sido rejeitado por ela. Porque, parece, Livramento não espera construir-se pela igualdade de oportunidades, pelo esforço coletivo, pela força de novas idéias criativas. Livramento espera um salvador e um favor de quem quer que seja para patrocinar a cidade como um mecenas. Talvez isso explique a dificuldade de processos de construção coletiva. Em Livramento, as pessoas não olham para o lado. Olham pra baixo.
            Na mentalidade do já teve, há uma quixotesca nostalgia de um frigorífico e um lanifício que eram os grandes pais da cidade. Até hoje ouço pessoas medirem se governos estaduais são bons ou ruins na medida em que “trazem alguma coisa pra Livramento”. Ou seja, a cidade espera presente de um pai sempre – seja uma empresa, seja um governo. Falta entender que a gente só amadurece quando anda com as próprias pernas, quando se emancipa do pai, quando constrói a própria história.
            Um novo ciclo histórico se inicia agora na prefeitura de Livramento. Como identidade principal dessa nova administração, a insígnia de ser um governo municipal alinhado com um Governo Federal que mudou a cara do Brasil: o país que olhava pra baixo agora olha pra frente. Esse desvio do olhar, essa mudança de mentalidade, esse resgate da auto-estima, talvez sejam o ponto inicial para Livramento mudar. E se o sentimento de exílio, para muitos que se foram daí, é uma marca pessoal, penso que ele se estende também coletivamente para uma cidade que parece exilada de si mesma. Ou seja, da possibilidade de construir o presente, da  indiferença do que pode melhorar no futuro.
            Semana passada, na sua coluna no jornal uruguaio Brecha, Eric Nepomuceno analisou os dez anos dos governos do PT  no Brasil. E entre acertos e contradições, concluiu que numa coisa esses governos avançaram: deram à maioria da população o direito de ser cidadão em seu próprio país. Transportando para o campo pessoal, posso dizer que me sinto um cidadão neste país, mas isso seria difícil de acontecer se vivesse na minha cidade.
            Porque queria estar em algum projeto construindo coisas ao lado de outras pessoas. Porque não há mágica ou salvador da pátria ou da cidade. Dois verbos movem a vida: trabalha e confia. Difícil trabalhar onde não há perspectiva, difícil confiar quando o interesse público é um favor que se troca na esquina ou no armazém. Livramento precisa pensar grande. No campo da política, saltar da lógica dos favores e acertos para a elaboração de projetos e renovação da matriz produtiva, aproveitando os recursos disponíveis a nível federal. Há um governo que pede projetos. Há um país que pede campo para crescer. É isso que pode incluir a cidade num outro caminho, abrindo cancha para uma mentalidade generosa. E enfim Livramento se reconcilie consigo mesma. Uma cidade acolhedora, sem exílios, sem exilados. Uma cidade altiva, olhos à frente, em paz com uma bela história que ainda pode construir.


Renato Dalto
Jornalista, escritor, roteirista de TV e cinema